1 CELCIT. Dramática Latinoamericana. 108 O AMIGO OCULTO BULEVAR POLÍTICO-CULTURAL EM UM ATO E VÁRIOS DESMAIOS Augusto Boal PERSONAGENS DONA FLOR - senhora centenária, padece de distúrbios psíquicos, físicos e psicossomáticos; ROSA - leitora frenética de escritores revolucionários; MARIANA - empregada doméstica, religiosa às raias da loucura; MILORD - jovem filho de Elvira e Robertão, meigo e doce, mas não dócil; ELVIRA - foi capa de revistas eróticas; o tempo inclemente atropelou-a; hoje, observa rigoroso recato voluntário, regado a vinho e outros álcoois mais nutridos; ROBERTÃO - não se conforma em ter uma só esposa; pretende converter-se ao islamismo e oficializar as outras três a que terá direito; BARÃO - joga na Bolsa, trabalha no governo, não distingue lícitos de ilícitos, o que facilita sua vida, não a dos outros; EUDÓXIA - mulher do Barão, pragmática, a sociedade é como é, vamos aproveitar, esteio da família, último bastião da moral e dos bons costumes; JOAQUIM - pessoa simples, sabe dirigir tratores e caminhões, mas não pessoas. 2 POR QUE ESTA PEÇA? O AMIGO OCULTO é bulevar. Já usei o estilo de histórias em quadrinhos para falar do golpe de 68, no Brasil, (O Grande Acordo Internacional Do Tio Patinhas), e o estilo James Bond, sexo, sangue e violência, para falar do golpe na Argentina de 76 (A Deliciosa E Sangrenta Aventura Latina De Jane Spitfire, Espiã E Mulher Sensual). Agora, em bulevar, quero falar do Brasil de hoje, ano 2000. A decoração - bulevar não tem cenário, tem decoração - é a sala de jantar de ROSA, refúgio de quem estuda e trabalha, que ficará totalmente desfigurada e colorida com a decoração natalina. Os atores devem interpretar seus personagens com total e absoluta convicção, vivê-los e não apenas mostrá-los. Isto não é uma chanchada. Embora farsa, desejo que a peça seja emocionante. Pode o elenco inspirar-se nos atores de bulevar, tiques e truques, mas devem também ser stanislawskianos, sinceros, emocionais, verdadeiros, humanos. Devem-se ouvir, atentos; devem-se olhar fundo nos olhos, como não costuma acontecer no bulevar. Devem-se interrelacionar. O espetáculo, humanizado, deve funcionar como relógio. Teatro, como o amor, faz-se a dois. 3 ATO ÚNICO ROSA LÊ LIVROS E JORNAIS. TOCA O TELEFONE. ELA ATENDE. ROSA - Não é aqui, não. (VOLTA À LEITURA, TOCA OUTRA VEZ) Escute aqui, minha senhora, se quer falar com o Juvenal, telefone pra ele, porque aqui não é! (VOLTA À LEITURA. TORNA A TOCAR. BERRANDO!) Já lhe disse, aqui nunca morou nenhum Juvenal, pare de me amolar!!! (ATIRA OS JORNAIS NO CHÃO) Só tem anúncio de máquina de lavar americana, boneca chinesa, computador coreano, uísque paraguaio, Pokémon japonês... Pra quê Jesus Cristo foi nascer? Só pra inventar essa bobagem: Natal! (ENTRA A EMPREGADA, PURO ESTILO BULEVAR, ESPANANDO MÓVEIS) Pra que serve o Natal, Mariana? MARIANA - Pra mandar cartões da UNICEF, pra desejar Boas Festas e Próspero Ano Novo... ROSA - E não podia ser no meio do ano? Se a gente deseja Feliz Natal no dia 24 de Dezembro, podia muito bem desejar a mesma felicidade no primeiro de Maio: matavam-se dois coelhos com uma paulada só! MARIANA - Por quê? Primeiro de Maio também é o aniversário de alguém? ROSA - Natal dia 8 de Março, pra ver se pessoas como você começariam a pensar nalguma coisa que não fosse missa das sete e novela das oito. Ou sete de setembro, pra quem ainda tem memória, ou 4 de Julho, pros alienados! Natal pode ser qualquer dia. MARIANA – Desculpe: não pode não. (EXPLICATIVA) Natal é a noite do dia antes de nascer o menino Jesus: nascimento tem dia certo. Já a Paixão, que é a morte, essa varia, cai sempre na sexta porque senão seria Quinta Feira ou Sábado da Paixão... Mas mesmo sendo Sexta, em cada ano é uma sexta diferente, porque a Paixão é 40 dias depois do carnaval e como carnaval não tem data certa, a morte de Cristo fica na dependência do carnaval. Todo ano o Cristo fica esperando o carnaval pra saber em que em dia ele vai morrer nesse ano. Agora, Natal é 25! ROSA - No começo da Revolução Cubana, Fidel Castro adiou o Natal pra Fevereiro pra não atrapalhar a colheita da cana. MARIANA (INDIGNADA) - Fidel é um herege! Não sei o que o papa foi fazer em Cuba, beijinho pra cá, beijinho pra lá! Não se pode misturar as coisas: Fevereiro é Iemanjá. (CANTAROLA). “Dia dois, de Fevereiro, dia de festa no mar...” (TOCA O TELEFONE. ROSA VAI COM RAIVA, MARIANA SE ADIANTA). Deixa, que é pra mim. (ATENDE). Feliz Natal pro senhor também. Está sim. Um pouco mal humorada, como sempre, acordou com o pé esquerdo, como sempre, mas isso passa, como sempre. Venha sim, claro que pode, a casa é sua, como sempre! Ela vai ficar contente... como nunca! 4 ROSA - Não pode não: eu não quero ver ninguém! Hoje é Natal! Hoje, eu sou eremita! MARIANA - Já está aqui embaixo, no orelhão? Por que não subiu logo? Que timidez coisa nenhuma, família não tem vergonha. Quer dizer, não é preciso ter vergonha entre familiares, foi isso que eu quis dizer. Venha logo, ela está mandando beijinhos pro senhor também... Na bochecha! (DESLIGA). ROSA - Quem é a patroa aqui?! MARIANA (DECIDIDA) - Natal não tem patroa, todo mundo é igual perante Deus: patroa é só pro resto do ano - hoje é dia santificado. Além disso, se esse menino veio, é porque estava combinado. ROSA - O quê estava combinado? Que menino? Por que você me desobedeceu? Quem manda aqui? MARIANA - Péra lá: uma pergunta de cada vez. Primeira: quem é ele. ROSA - Quem é? MARIANA - Seu sobrinho, o Milord! ROSA - Visitar família no dia de Natal é a coisa mais cafona que pode acontecer nesse dia. Ainda bem que o resto da parentela nem sequer telefonou: graças a Deus! Esse daí, espero que vá logo embora. Boas Festas e até mais ver. Quero ficar sozinha! MARIANA - Não é o que está combinado... ROSA - Combinado o quê?! Com quem?! (TOCA A CAMPAINHA, MARIANA ABRE). MILORD (ENTRANDO) - Feliz Natalzinho. MARIANA - Pro senhor também. MILORD - Feliz Natal, Rosinha de Luxemburgo! ROSA (RAIVA) - Próspero Ano Novo... e até o ano que vem. Adeus! MILORD - Estou precisando mesmo, pros-pe-ri-da-de: este ano que está acabando, está acabando é comigo, quase fui a falência e ainda faltam sete dias! Bancarrota! ROSA - Falência?! Você não trabalha... 5 MILORD - Descobri que meus amigos me roubam. Vão dormir lá em casa, dou guarida, dou banho, comida, e me esvaziam a carteira... Pode, uma coisa dessas? MARIANA - Hoje é Natal, pense só em coisas boas. Olha só pra ela, não está bonita? É a patroa mais linda que existe... no bloco B do condomínio. ROSA - Menina, cala essa boca! MILORD - Menina, vai botar esse pacote embaixo da árvore. ROSA - Que árvore? (MARIANA DESCOBRE UMA ÁRVORE DE NATAL). Mariana! Que árvore é essa? Onde é que você foi arrumar essa porcaria? (EXPLOSIVA). Você não sabe que eu detesto Natal, detesto dia dos Pais, das Mães, dos avôs e das avós, dia dos namorados, dos casados, desquitados, amigados, dos amantes e das concubinas, dia da criança , do recém-nascido e dia do moribundo, dia do raio que os parta! Detesto! MARIANA (CALMA) - Sei! ROSA (ENÉRGICA) - Você não sabe que eu odeio essa exploração sentimentalóide que faz as pessoas comprarem porcarias de que ninguém gosta, mas todo mundo recebe o presente e diz (RIDICULARIZANDO) - “Que bonito! Eu estava precisando mesmo! Estou ansiosa pra usar amanhã à noite! Como é que você adivinhou?” - quando todo mundo sabe muito bem que esse livro você não vai ler nunca, esse CD você nunca vai escutar, essa camisola você vai jogar no lixo, esse broche horroroso você vai dar pra empregada (MARIANA MURMURA Muito Obrigada). Você é minha empregada há quinze anos, sei lá, vinte ou trinta, a vida inteira você foi minha empregada, nasceu no quarto da empregada e no dia seguinte já começou a botar a mesa pra mim, você, minha empregada, eterna e vitalícia, compactua com o comércio varejista e compra essa coisa escandalosamente feia e de mau gosto, que ainda por cima me dá alergia, porque é feita de plástico envenenado! MARIANA - Com o dinheiro que a senhora deu só pude comprar essa de plástico envenenado, porque a outra, muito mais bonita, era mais cara, não ia dar pra comprar a árvore e o bife do seu regime, os dois não dava, e a senhora ia desconfiar se eu não comprasse o bife. Assim, a senhora não está desconfiando de nada, viu? ROSA - Não tinha que comprar nem cara nem barata, nada!!! MARIANA - Eu só fiz o combinado. (ARRUMA A ÁRVORE). Olha como é linda. ROSA - Combinado? Quem combinou o quê? Com quem? 6 MARIANA - E eu sei, dona Rosa? (ENÉRGICA). A senhora pensa que alguém aqui me diz alguma coisa? Aqui eu sou tratada pior que empregada doméstica! ROSA - O Milordezinho!!! Que raio de combinação é essa? O que é que você veio fazer na minha casa? MILORD - Primeiro, mais respeito com o meu heterônimo. Eu me chamo My Lord, para os íntimos, Milord, mas nunca Milordezinho. É aviltante! Só faltava me chamar de Milordezinho de Merda! ROSA (ENÉRGICA) - Olha aqui, seu merda de milordezinho: com que direito você pensa que pode entrar na minha casa numa data funesta como esta... Sobrinhos, sobrinhos, privacidades à parte... MILORD - Alto lá, data funesta! (ENTUSIASMADO) Natal é manjedoura, nascimento, presépio, burricos... Coisas belas, camelos, Reis Magos, um deles bem pretinho... Democracia racial! Isso é Natal! MARIANA - Êpa!!! Reis Magos, seis de Janeiro, não misture santos e datas. MILORD - Funesta é Sexta Feira da Paixão, bom ladrão, mau ladrão, sepultura... É melhor não pensar em morte, principalmente agora que a vovó não está nada boa e eu fui o primeiro a desaconselhar, disse que ela não devia sair de casa, não pode nem ir até à sala ver televisão, como é que vai andar de taxi?! Mas combinaram assim, está combinado, quem sou eu pra dizer não: nossa família é muito autoritária, sabe? Cada um quer mandar mais que os outros, prepotentes. (SEM TRANSIÇÃO). O Juvenal já chegou? ROSA (FURIBUNDA) - É muita prepotência sua entrar pela minha casa a dentro, quando eu estava lendo um romance policial comunista e estava quase descobrindo que o assassino era mesmo o capitalista desalmado dono da fábrica de remédios falsificados, quando você... Escuta aqui: minha mãe vai sair de casa pra ir aonde? MILORD - Ela não vai, não... (PEQUENA PAUSA, SORRINDO) Ela VEM! MARIANA - Está tudo combinado. ROSA (SENTA-SE) - Esses dois energúmenos não vão nunca me contar a verdade. Seja o que Deus quiser... MARIANA - Finalmente eu escuto uma palavra cristã aqui nesta casa: Deus! (CAMPAINHA). Pode deixar, eu sei quem é... (ABRE, ENTRA ELVIRA COM PACOTES). Pensei que fosse o Juvenal, mas é essa outra. (PARA ELVIRA). Vai entrando, como se estivesse na sua casa. Só como se estivesse, viu?... 7 ELVIRA - Ele ainda não chegou, aquele bruto? MILORD - Ele quem? O Juvenal? ELVIRA - Não, o meu marido... enfim, esse cara... Robertão... teu pai... (EXPLOSIVA). O cretino disse que vinha mais cedo pra fazer uma surpresa. Aposto que sei com quem é que ele está. Traidor! Adúltero! MARIANA (ESPANADOR EM PUNHO, DIDÁTICA, DECIDIDA A IMPOR A ORDEM) - Olha aqui, dona Elvira: hoje é o aniversário do menino Jesus, que ninguém sabe quando morreu, só se sabe que foi sexta feira... qual? Nem o Papa... (ORDENANDO). Hoje é festa, eu não quero brigas aqui nesta casa, quero todo mundo alegre, os bolinhos de bacalhau vão ficar crocantes, comportem-se! Dona Rosa - que esse aqui tem a mania de chamar de Rosinha de Luxemburgo, às vezes chama até de Rosa dos Ventos quando ela está de ovo virado! - ela nem queria que vocês viessem: se fosse por ela, vocês desapareceriam da face da terra, mas a vida é assim mesmo, ninguém é de ninguém, na vida tudo passa, então antes que passe, vamos fazer de conta que todo mundo ama todo mundo, (ENÉRGICA) vamos comer bolinhos de bacalhau com um sorriso na boca aberta, e vamos todos dizer: Feliz Natal! Noite Feliz! (CANTAROLA BEM ALTO). Noooite... ELVIRA - Uísque aqui nessa casa, nem pensar, não é? MARIANA - Estava tudo combinado (MOSTRA O UÍSQUE). ROSA (VENDO A GARRAFA) - Com o meu dinheiro? MARIANA - Este (MOSTRA A GARRAFA) foi esse aí que pagou. Ele disse que festa em família, só mesmo anestesiado! E como ele sabe que a mamãe dele adora uma boa anestesia geral... ROSA - Eu ouvi alguma coisa sobre bolinhos de bacalhau... Com o meu dinheiro?! MARIANA – Já estão a caminho, mas não é com o seu dinheiro não... (TOCA A CAMPAINHA. ROSA ABRE). É o Juvenal! ROSA - Não é aqui não! Toca na porta do vizinho. (TORNA A FECHAR). MARIANA - É aqui sim! Pode deixar que eu sei quem é. (ABRE: JOAQUIM ENTRA COM UMA MULTIDÃO DE PACOTES E O INEVITÁVEL SOTAQUE). JOAQUIM - Os bulinhos de bacalhau, só falta fritá-los. O Juv´nal estava lá embaixo com os pacotes. Estava nervoso porque não qu´riam deixá-lo entrar. (RINDO) E quer que lhe paguem a conta... é natural, coitado! Quem paga? ROSA - Juvenal então era isso? E esse aí quem é? 8 MILORD - Surprise!!! Esse é o meu novo motorista. Pode levar pra cozinha, Joaquim, meu caro Lord. Como o nome indica, o meu piloto de provas nasceu em Trás-Os-Montes, Vila Real. MARIANA - Vem, Joaquim, vem comigo! (SAEM LEVANDO OS PACOTES). MILORD - É bonito o meu motorista lusitano, não é? As mulheres ficam loucas por ele. Mas eu não empresto! Assanhadas... ainda mais com esse calor natalino... O cio da Terra faz misérias! ROSA - Você morre de ciúmes? MILORD - Eu, não, Virgem Santa! (CONVICTO). Quem dá o que é seu, não desmerece... (PAUSA). Não, não é bem esse o ditado, mas serve assim mesmo: espero que vocês tenham entendido o espírito da coisa. ROSA - Onde é que você achou esse motorista? MILORD - Tua empregada me indicou, é da igreja dela, varria a casa do padre, limpava latrina, sei lá, com esse desemprego galopante, fiz caridade cristã, assim é capaz que o Senhor perdoe meus pecados menores, quando chegar o Juízo Final... se é que eu vou viver até lá. Por falar nisso, quando vai ser o Juízo Final? Já está marcada a data, horário? Não quero ser pego desprevenido, tenho que me preparar. ELVIRA - E você não trouxe a sua namorada? MILORD (RINDO) - Não ia fazer essa maldade com vocês, logo no dia de hoje, santificado. (ESPANTADO). Dominique, nesta casa? Nunca! Nunquinha!!! ELVIRA - Maldade por que? Você disse que agora é pra valer, que está apaixonado, morre por ela: se é verdade, é bem capaz de cometer a suprema burrice de casar, apesar do exemplo que tem dentro de casa - casamento é o fim do amor! Faça como a sua tia, que ficou pra tia! Não é, Rosa? ROSA - Olha, se eu encontrasse um homem como o teu marido, eu casava. Na hora. Casava e ia viver infeliz pro resto da vida, bebendo as mágoas on the rock... ELVIRA - Vamos fazer de conta que ninguém ouviu nada. MILORD - A galinha no quintal dos outros põe ovos mais dourados... (PERCEBE QUE O ÊRRO). Não tinha um ditado mais ou menos assim? Era alguma coisa que, no quintal dos outros, ardia menos... (EMBARALHADO). Olha, não sei, esqueci o ditado, mas vocês entenderam o espírito da coisa, não entenderam? Então?! 9 ELVIRA - Entendi a galinha e achei muito adequado pra definir teu pai. (FURIOSA). Ele mente o tempo todo. Vai chegar atrasado duas horas e vai dizer que esteve trabalhando: esteve foi na cama com uma das amantes que tem. E você, meu filho, não case nunca: (ENÉRGICA) porque se você tiver o mesmo bom gosto pra escolher mulher como teve pra escolher esse uísque, eu vomito quando você me apresentar à sua noiva, vomito no tapete! ROSA - Não exagera, Elvira. Você não precisa de pretexto pra vomitar! ELVIRA - Eu só espero que o Robertão não tenha ido pra cama com nenhuma das minhas amigas: isso eu não posso perdoar! Amiga, não! O marido pode ser de todas, mas a amiga é minha! ROSA - Homem é isso mesmo, uma traiçãozinha aqui outra ali, não tira pedaço de ninguém... ELVIRA - Não tira pedaço de você, materialista dialética, mas de mim, sim: arranca o meu melhor pedaço, o meu coração! Não quero que meu marido durma com minhas amigas, não quero, é um direito meu! Não quero! Tem tanta desconhecida por aí, por que uma amiga?! Por quê??? (TOCA A CAMPAINHA). É ele! MARIANA (NA PORTA) - Ih, é a sua irmã carola, pendurada no marido. ROSA - Carola? Olha quem fala! MARIANA - Alto lá: eu sou re-li-gi-o-sa. Sua irmã é carola. Tem diferença. Ela peca à vontade, se esbalda, depois confessa ao padre, toda contente, alvoroçada, excitada – ela adora se confessar! Confunde confissão com fofoca! Confessa os pecados delas e os das amigas! Eu não, eu não peco! Em hipótese nenhuma! Não peco! Odeio o pecado! Sou pura, sou virgem! ELVIRA - Está bem, não peca, não peca, pronto, não peca!!! ROSA - Nessa idade, campeã de virgindade! MARIANA - Em hipótese nenhuma! Pecado, vade retro!!! (ABRE A PORTA. ENTRAM BARÃO E EUDÓXIA, TRAZENDO COMIDAS). BARÃO - Nós pensávamos que íamos ser os primeiros a chegar, mas o Juvenal já está lá embaixo, reclamando. Quem vai pagar? MILORD- Pendura. EUDÓXIA - Feliz Natal. (TODOS SE DIZEM Feliz Natal VÁRIAS VEZES, MESMO QUEM JÁ SE TINHA VISTO, MULTIPLICANDO-SE ASSIM OS Felizes Natais). 10 BARÃO - Eu, a rigor, não podia nem ter vindo. O homem pediu que eu fosse lá no Palácio dar uns conselhos pra ele, eu disse: “Não: política tem hora - a política não deve nunca invadir o espaço da família, nem a família o espaço da política!” Essa é uma boa política, não é verdade, minha família? ROSA (VIGOROSA) – Isso quer dizer que nós estamos todos proibidos de perguntar quando é que você, um político governista, acha que vai acabar essa maldita recessão, quando a terra improdutiva vai ser entregue aos camponeses sem terra, até quando o nosso dinheiro vai tapar os buracos dos bancos quebrados fraudulentamente, quando é que... quando é que... quando é que... Todas essas conversas agradáveis e adequadas pra uma noite de Natal Feliz são temas proibidos! EUDÓXIA - Pára, pára! Fui eu que proibi o Barão de falar em política esta noite. Aqui, hoje, não se fala em política. Está certo que no mundo existem ricos e pobres, mas isso sempre foi assim, até na época de Jesus Cristo, quando existiam escravos. (DOUTA). Sabiam? Ah, ah! Até escravos havia naquela época, sim senhora! Mas nunca a sociedade, globalmente, esteve tão bem como hoje. Hoje, os pobres passam o Natal sem fome, sem Aids, sem emprego, sem nada... Nada! O resto do ano, sabe-se lá! Mas vamos por etapas, devagar se vai ao longe. Hoje, todos comem. Claro que não tem peru pra todos, mas sempre alguma coisa sobra, cai da mesa! Comamos, minha gente. (COMEÇAM A DECORAÇÃO NATALINA. LIVROS PRA COZINHA. A SALA SE TRANSFIGURA, COLORIDA). MILORD - Des-fome-lização lenta, gradual e segura... não tinha um ditado assim? ROSA - Não, mas nós compreendemos o espírito da coisa. EUDÓXIA - Temos que ser modernos! A Modernidade acabou com tudo! Agora começa tudo de novo. ROSA - Tudo o quê? EUDÓXIA (APAIXONADA, ESCANDINDO ALGUMAS PALAVRAS) - Por exemplo: esquerda e direita! Isso já não existe mais, são coisas do pas-sa-do. Ricos e pobres, nada disso: só existe a Mo-der-ni-da-de. Norte e Sul, acabou! Branco e preto, (COM ENTUSIASMO) tudo agora é uma cor só: o verde da esperança! BARÃO (FELIZ COM O INESPERADO DISCURSO DA ESPOSA) - Já que eu não preciso explicar porque a Bolsa quebra na Ásia e os juros sobem no Brasil, vou explicar minhas preferências vinícolas. Eu prefiro os Bordeaux e explico: são os únicos vinhos franceses com direito a se chamarem Chateau e, sendo Chateau, embora não pareça, a qualidade do vinho e a do milésimo... ROSA - Por que vocês escolheram a minha casa pra essa palhaçada? Eu não tenho o menor interesse nesse tipo de conversa!
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