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Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial PDF

47 Pages·2009·0.26 MB·Portuguese
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Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial* New trends in historiography of Minas Gerais in the colonial period Júnia Ferreira Furtado Professora Associada Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Bolsista de produtividade em pesquisa CNPq [email protected] Avenida Antônio Carlos, 6627 Belo Horizonte - MG 31270-901 Resumo Este texto pretende analisar a produção historiográfica sobre a capitania das Minas Gerais produzida a partir dos anos 1980, o que aqui denomino “Historiografia sobre Minas Gerais”. Esse momento recente da historiografia colonial mineira foi inaugurado com o livro Desclassificados do ouro, de autoria de Laura de Mello e Souza. Pretende-se mapear os temas hegemônicos, as tendências e os recortes teóricos utilizados, destacando a produção acadêmica realizada pelos pesquisadores, especialmente os brasileiros. O texto aponta para a pluralidade das temáticas, fontes e interpretações como característica dessa produção e que a originalidade das novas interpretações ocorreu num contexto de ampla renovação metodológica característica dos estudos históricos no Brasil nas últimas décadas. O texto também procura apontar os novos rumos, as tendências e os contrastes dessa produção historiográfica recente. 116 Palavras-chave Historiografia; Minas Gerais; Colônia. Abstract This text aims to examine historiography production on the captaincy of Minas Gerais produced from the 1980s, which we call the “Historiography of Minas Gerais”. This historiography’s recent period was initiated by the book of Laura de Mello e Souza, titled “Desclassificados do Ouro”. It is intended to map the hegemonic issues, trends, and the theories, specially the production carried out by academic researchers, mainly the Brazilians. The text points to the plurality of topics, sources and interpretations as characteristic of this generation and the originality of new interpretations occurred in a context of extensive renovation methodological feature of historical studies in Brazil in recent decades. The text also seeks to point the new directions, trends and contrasts the recent historiography production. Keyword Historiography; Minas Gerais; Colony. Enviado em: 14/11/2008 Aprovado em: 05/01/2009 * Este texto foi escrito inicialmente para apresentação no Seminário Internacional sobre Historiografia sobre Minas Gerais, promovido pelo Instituto Amilcar Martins - ICAM, realizado em Belo Horizonte de 19 a 21 de julho de 2004. (Agradeço à professora Laura de Mello e Souza a delicadeza de disponibilizar a consulta do levantamento bibliográfico sobre História de Minas por ela realizado para integrar a 2ª. edição dos “Desclassificados do ouro”, que compõe parte da bibliografia apontada neste artigo.). história da historiografia • número 02• março • 2009 Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial 1. Os desclassificados do ouro Até as últimas décadas do século XX, os estudos históricos sobre as Minas Gerais haviam se dedicado eminentemente aos acontecimentos políticos e econômicos da capitania no período colonial. Mesmo o barroco mineiro, enquanto objeto de análise, mereceu abordagens notadamente no campo da história da arte e da literatura (ÁVILA, 1967). Raras foram as exceções, como os trabalhos de Eduardo Frieiro, que abordaram a cultura mineira, os costumes ou a vida social da capitania. Seu livro sobre as leituras que inspiraram os inconfidentes, baseado na análise da biblioteca do Padre Luís Vieira, intitulado O diabo na livraria do cônego, (FRIEIRO, 1981) se tornou clássico. Até então, os estudos acerca da capitania das minas do ouro pouco tinham explorado os temas instigantes sobre a vida cotidiana e o universo cultural sugeridos por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, em “Metais e pedras preciosas”, ou mesmo em Caminhos e fronteiras (HOLANDA, 1994). Em contraste, por essa época, era o marxismo que exercia influência marcante nas análises sobre a História do Brasil colônia e da capitania Minas em particular, o que fez com que os autores priorizassem os aspectos econômicos da colonização, procurando compreender os impasses e as contradições do Brasil contemporâneo a partir de sua herança ibérica colonial. Análises baseadas nos ciclos econômicos exportadores se tornaram referências 117 obrigatórias quando se tratava de analisar a mineração aurífera ou diamantífera colonial (FURTADO, C. 1980). Nesta dimensão, o período minerador foi compreendido como a fase áurea da história mineira, ao realizar plenamente a vocação exportadora da economia brasileira (PAULA, 1988). O ciclo do ouro seria, nesta medida, de expansão econômica, caracterizado pelo fausto da sociedade, por uma relativa democratização do acesso à riqueza e por uma expansão da vida urbana. Em oposição, o século XIX seria marcado pela ruralização da região, pela endogenia de uma economia agrícola não- exportadora, voltada para o mercado interno, simbolizando a idade das trevas mineira. Até essa época, a influência de Caio Prado Jr., com sua obra Formação do Brasil Contemporâneo (PRADO JR, 1942), de 1942, foi decisiva para a análise da administração mineradora. Em seu livro, ele investigou a sociedade brasileira contemporânea como desdobramento dos elementos constituintes do período colonial, (IGLÉSIAS, 1974) e salientou que o sistema então instalado pela metrópole era caótico e irracional. Transplantado diretamente do modelo português, não se ajustou às especificidades da colônia, pois, extremamente centralizador, parecendo uno e indivisível, provocou na imensidão da colônia uma sensação de desgoverno. A dificuldade de estender o poder metropolitano à periferia da colônia gerou uma situação de indisciplina, que marcou indelevelmente a formação da cidadania brasileira. Para o autor, a imensidão geográfica do Brasil foi determinante na incapacidade das instâncias administrativas portuguesas de se fazerem presentes e de instituírem com história da historiografia • número 02 • março • 2009 Júnia Ferreira Furtado eficiência o mando e a autoridade. Com efeito, a predominância do mundo rural deu vez ao aparecimento de potentados e régulos, que estendiam o domínio do privado, e faziam suas a voz do Estado. Em sentido contrário à tendência dominante, a urbanização mineira seria um freio a esse impulso centrífugo e tornaria em particular o distrito diamantino no raro lócus de uma efetiva presença do Estado metropolitano, representado na região por todo um aparato tributário e fiscalizador opressor (PRADO JR, 1979, 169-185). Os primeiros ventos de mudança no panorama histórico sobre as Minas setecentistas surgiram em fins dos anos 70. No célebre artigo Economia do Ouro em Minas Gerais, de 1978, Wilson Cano chamou a atenção para a necessidade de se estudar a história das Minas a partir de outro contexto que não o da opulência (CANO, 1977). Seu apelo encontrou eco em uma dissertação de mestrado, escrita na aurora dos anos 80, que, por suas perspectivas inovadoras, tanto metodológica quanto temática, se tornou importante marco na historiografia sobre Minas Gerais sobre o período colonial. Desclassificados do ouro, de Laura Mello e Souza, (SOUZA, L.M. 1982) provocou uma verdadeira revolução nas interpretações do século XVIII mineiro. Embalada pela influência do capítulo “Vida social” de Caio Prado Jr. e da moderna historiografia social européia, representada particularmente pelas reflexões de Michael Foucault sobre a microfísica do poder, (SOUZA, L.M. 2006, 9-10) o estudo salientava o universo 118 da pobreza e dos marginais, na esteira da centralização do estado moderno. A autora recusou a noção de riqueza da sociedade mineira e mergulhou no universo dos desclassificados, procurando ao mesmo tempo desvendar o processo de constituição da administração portuguesa na região. Em oposição à bipolarização senhor - escravo, o tema da vadiagem descortinou uma sociedade mineira multifacetada e plural. Nesta medida, o livro despertou o interesse por parte da nova geração de historiadores por objetos que estavam relegados ao esquecimento, entre outros, o cotidiano, o abastecimento, os pobres, as mulheres, as crianças ou o universo social da escravidão das Minas Gerais. Também na análise da administração e do estado, o texto exerceu profunda influência nos estudos que lhe seguiram. Ao amalgamar a análise de Caio Prado Jr, que via no desgoverno a marca da presença portuguesa, e a de Raymundo Faoro, que acentuava o centralismo e o controle efetivo da região por parte das autoridades, (FAORO, sd.) Laura de Mello e Souza cunhou a expressão “o agre e o doce”, como representativa da forma como o poder metropolitano se efetivou na colônia, a partir do estudo de caso das Minas Gerais. De um lado, as autoridades metropolitanas pareciam se agigantar, pois uma vez longe do centro do poder – o rei –, esses funcionários tomavam para si a voz do soberano, de outro, a imensidão rural da capitania facilitava o alargamento do poder privado e acentuava a sensação de desgoverno (SOUZA, L.M. 1982, 91-140). Desclassificados do ouro também se debruçou sobre a posição e o tipo de vida desfrutada por homens e mulheres na capitania, demonstrando que a mesma era decorrente de suas posses. A massa de pessoas de cor e mestiças que infestavam a região vivia em eterna instabilidade e à margem da sociedade história da historiografia • número 02 • março • 2009 Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial senhor-escravo que se institucionalizara. A autora aponta que a sociedade mineradora antes de ser a sociedade da riqueza, nivelou a população por baixo, democratizando a pobreza e gerando uma massa significativa de desclassificados sociais. Entre esses, a vida corria completamente fora do controle das instituições, sendo que desvios da norma, como concubinatos e bastardias, foram constantemente arrolados como crimes nas visitas episcopais que periodicamente esquadrinhavam as Minas. Foi a partir da obra pioneira de Laura Mello e Souza que a influência das novas metodologias, que há muito dominavam os estudos históricos na Europa, vão se fazer sentir na historiografia referente às Minas Gerais setecentistas. Só então, a Escola dos Annales e a História Social Inglesa, nos seus mais diversos matizes, vão se tornar parâmetros, tanto metodológica, quanto tematicamente para os historiadores da região. Este revisionismo histórico não significou a pura adaptação das análises sobre o continente europeu à realidade da capitania, mas permitiram uma releitura da história das Minas à luz de sua própria especificidade. Os novos estudos que se seguiram buscaram não apenas o particular, o rotineiro, mas, a partir do que fosse específico nas Minas Gerais, captar as linhas de força que caracterizavam a sociedade mineradora. Conseqüência dessa renovação foi também a ampliação nunca vista do conceito de fontes. Em consonância com as novas metodologias, deixou-se de privilegiar os documentos escritos e oficiais, de caráter eminentemente 119 administrativo, para que praticamente qualquer vestígio da ação humana na região mineradora se tornasse ferramenta para o historiador (MAGALHÃES, 1989; LIBBY, HARGREAVES E MARTINS, 2002; CASTRO, 1994). Isso permitiu a reconstrução do dia-a-dia de seus habitantes, utilizando, entre outros, os censos populacionais, os registros de batismo, as devassas episcopais, a iconografia, os ex-votos, os compromissos de irmandades, os livros que circularam na capitania, as edificações, o próprio espaço urbano e mais raramente, porque mais incomuns, as cartas, os diários, etc. Em relação às fontes, cumpre destacar o esforço recente de catalogação, organização e disponibilização de importantes acervos documentais sobre a História de Minas Gerais no período colonial, tanto no Brasil, quanto no exterior (BOSCHI, 1998; BOSCHI e FURTADO, J.F. 1998; MAGALHÃES, 1999; FIGUEIREDO, KANTOR e CAMPOS, 1999b; TUGNY, 2001; CAMPOS, 2004b; BOSCHI, FIGUEIREDO e MORENO, 2006; CARRARA, 2008). Uma das características marcantes destas novas abordagens sobre o período colonial mineiro foi o fato de tais estudos serem frutos das universidades, o que evidencia a influência da implantação e expansão das pós-graduações no Brasil após os anos 1950. Num primeiro momento, grande parte desses trabalhos foi oriunda da pós-graduação em História da USP, para depois se descentralizar progressivamente, destacando-se também os programas da UFMG, UFF, UNICAMP e mais recentemente UFU, UFJF, UFSJ e UFOP.1 De caráter monográfico, 1 Para fins desse artigo, como o levantamento de teses e dissertações foi realizado até 2006, não contempla as defendidas nesses três últimos Programas, criados posteriormente a essa data. história da historiografia • número 02 • março • 2009 Júnia Ferreira Furtado esses estudos apresentavam, no seu conjunto, aspectos mais analíticos, com rigor metodológico e preocupação de se nortearem a partir de um viés teórico e de uma problematização do objeto, o que lhes imprime um caráter eminentemente científico. Para se fazer uma análise das características e perspectivas da produção historiográfica sobre as Minas Gerais no período colonial, realizada nos últimos vinte e oito anos, torna-se necessário escolher um eixo norteador. Como exemplo, pode-se optar por arrolar a produção pelos diferentes recortes metodológicos, tentar perceber os temas escolhidos pelos historiadores, partir da tipologia das fontes empregadas ou ainda utilizar recortes geográficos locais ou regionais, tomando como eixo as vilas mineradoras ou as comarcas de que se compunha a capitania (IGLÉSIAS, 1973; GOMES, 1994; FIGUEIREDO, 1995c; DUTRA, 1996; FURTADO, J.F. 1999b; GONÇALVES, 1998). O presente texto tentará fazer uma mescla dessas abordagens, analisando as várias perspectivas inovadoras, seja nos temas, nas fontes ou na metodologia, como também o processo de releitura das grandes temáticas da História de Minas Colonial em suas diversas dimensões espaciais a partir de 5 grandes eixos: 1) as relações de poder, as revoltas e as inconfidências; 2) a escravidão; 3) o universo da vida social e familiar; 4) a vida cotidiana e material; e, finalmente, 5) a cultura e a religiosidade. Em relação aos grandes marcos temáticos, a produção histórica 120 sobre a Inconfidência Mineira será analisada apenas de forma tangencial, apesar de representar uma vertente pujante dessa historiografia, pois uma análise mais esmiuçada do tema mereceria um artigo a parte. Pelo mesmo motivo, se privilegiará a produção nacional – doravante denominada genericamente historiografia sobre as Minas Gerais - em detrimento dos estudos realizados pelos estudiosos estrangeiros, os chamados brazilianistas, os quais serão citados apenas de forma ocasional e não sistematicamente. É necessário chamar a atenção para o fato de que, ao se privilegiar a análise da historiografia sobre a capitania de Minas Gerais, não significa que esta seja produzida ao largo da historiografia sobre a América portuguesa de forma mais geral. Os pontos de contato entre a sociedade mineradora e a das demais regiões coloniais é estrutural e não apenas circunstancial. Por isso, o diálogo e o intercâmbio de análises, temas, fontes, etc. entre a historiografia sobre a capitania de Minas Gerais, a América portuguesa, o Reino e o restante do império tem sido imperativo e constante. (FURTADO, J.F. 2001a; PAIVA, 2006) Tanto os trabalhos sobre Minas têm sido influenciados pela renovação historiográfica mais geral sobre a colônia, como sua influência têm se feito sentir nesses trabalhos. Porém, para os fins desse artigo, pela amplitude decorrente dessa perspectiva analítica, se restringirá a análise aos estudos produzidos sobre a capitania, sem destacar a sua relação direta ou indireta com a historiografia brasileira. A primeira dificuldade em analisar essa produção historiográfica consiste em conseguir delimitar em unidades estanques os diferentes tipos de estudo. Devido ao caráter interdisciplinar, à fluidez dos temas e das abordagens, as linhas demarcatórias de cunho metodológico são muito tênues, situando muitos história da historiografia • número 02 • março • 2009 Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial dos estudos nas áreas de fronteira, ao integrarem as esferas do social, do econômico, do político ou do cultural. Também este artigo não pretende dar conta de toda a produção historiográfica dos últimos vinte anos, tarefa dificultada por essa produção ter crescido em ritmo vertiginoso, mas lançar mão de obras que possam exemplificar as tendências marcantes desse conjunto. Nesse sentido, também devido ao volume de trabalhos, se privilegiou a análise de livros (até 2008), teses e dissertações (até 2006) respectivamente e, em menor grau, de artigos (até 2008). A lista das obras consultadas (longe de esgotar o conjunto total da produção realizada no período) encontra-se no final do artigo e apresenta-se como uma ferramenta estimulante de pesquisa. 2. Minas de todo o delírio: relações de poder, motins, revoltas e inconfidências Um dos campos de estudo em que a historiografia sobre as Minas Gerais no período colonial mais contribuiu para a renovação historiográfica no Brasil e em Portugal, tema sugerido a partir de Os desclassificados do ouro, foi o da conformação do poder metropolitano nas Minas Gerais. Ao dar um novo significado às interpretações clássicas de Caio Prado Jr. e de Raymundo Faoro, redimensionando o papel das autoridades coloniais na capitania, o livro inaugurou uma pujante veia historiográfica que elegeu como vertente de estudos as formas 121 como a administração colonial se conformou na região mineradora. Ao longo dos últimos 28 anos, as análises sobre as formas como as relações de poder se configuraram na capitania se transformaram e, mais recentemente, grande parte dos trabalhos realizados sobre a temática da administração colonial na capitania de Minas Gerais passou a se insurgir contra a dicotomia colônia versus metrópole como o modelo ideal para explicar as relações entre Portugal e seu império ultramarino na época moderna. Muitos desses estudos têm procurado salientar que a fidelidade ao trono português e a percepção de serem súditos de um império transoceânico foram fundamentais para a manutenção e a expansão do poder real na América portuguesa. Nesse sentido, a historiografia sobre as Minas Gerais tem servido de referência para a análise da administração metropolitana em toda a América portuguesa (FURTADO, J.F. 1999a; SILVEIRA, 2000; PAES, 2000; CAMPOS, M.V. 2002; MONTEIRO, 2003). Estes estudos têm convergido para a percepção de que a compreensão das formas como o poder se estruturou nas Minas só é possível a partir de entendimento dos mecanismos de legitimação da monarquia portuguesa, considerados elementos-chave para a análise da questão (HESPANHA E XAVIER, 1993, 381-393). Essas formas eram decorrentes do discurso jurídico formulado para justificar a Restauração portuguesa, que defendia a autonomia nacional e a Coroa como pertencente de direito a dom João IV, e que se baseou no axioma de que o poder político pertencia ao povo, que o concede ao rei na forma de um contrato que, apesar de perpétuo, pode ser retomado em situações história da historiografia • número 02 • março • 2009 Júnia Ferreira Furtado de tirania (XAVIER, 1998). Essa concepção de que o poder real se legitimava por meio de um pacto constituiu-se no mecanismo central que garantia a fidelidade dos governados tanto no reino quanto no império oceânico, estendendo-se às Minas Gerais no primeiro quartel do século XVIII. Era o amor, e não o temor, o principal valor intercambiado entre o rei e seus vassalos, não importando em que espaço geográfico do vasto império se encontrassem. Mas era esse mesmo poder, emanando diretamente do povo para seu soberano, que impunha limites à atuação dos monarcas, os quais buscavam o constante beneplácito dos governados ao se apresentarem como reis magnânimos e misericordiosos, o que acabou por conferir à Coroa portuguesa a sensação de fragilidade e revelava os limites desse mesmo poder (VILLALTA, 1999; CAMPOS, M.V. 2002; MONTEIRO, 2003). Em geral, o que a nova historiografia sobre Minas Gerais tem buscado foi de que forma a articulação entre esses mecanismos infra-estruturais, descritos no parágrafo anterior, como a legitimação do poder régio na forma de um pacto com os soberanos, essenciais à reprodução do poder régio, se reproduzia no império, e de que maneira o governo das Minas foi uma experiência ímpar, redimensionando as próprias maneiras de governar no império: “a experiência da coroa em Minas foi renovadora, pois refundiu, revigorou e aprofundou modelos de centralização monárquica iniciados no governo geral” (CAMPOS, M.V. 2002, 122 23). Também tem apontado que, durante o período pombalino, as tentativas de transformações nesse axioma, até então base de legitimidade do poder régio, na busca de um reforço do absolutismo monárquico, pretendia diminuir o poder de negociação aos súditos, conferindo-lhes um novo status na ordem política. Essas ações trouxeram apreensão e inconformismo e se refletiram em inúmeros levantes ocorridos em Minas, no terceiro quartel do século XVIII (VILLALTA, 1999; ANASTASIA, 2002; CATÃO, 2005). Na mesma direção, parte desses trabalhos atentou para a reprodução do poder fora das instituições, procurando demonstrar que vários mecanismos informais se situavam além do aparelho de Estado, tornando inseparáveis e não simplesmente opostos os interesses que ligavam a colônia e a metrópole (SILVEIRA, 1997; FURTADO, J.F. 1999a; CAMPOS, M.V. 2002). Muitos deles buscaram apontar que os mecanismos de identificação entre os súditos e os soberanos remontavam na capitania ao período de expansão das fronteiras para a região mineradora, quando os bandeirantes paulistas alargavam o território do ultramar. Esses eram motivados não apenas por interesses econômicos, mas estavam em busca de serviços e de práticas que pudessem ser usados como moeda de troca na concessão de honras, mercês e títulos que conferiam prestígio e os inseririam nas cadeias hierárquicas que se teciam desde o reino (ANDRADE, F.E. 2008; SANTOS, 2004; ROMEIRO, 2008). Essas cadeias hierárquicas se estendiam desde Portugal e envolviam as autoridades que se deslocavam não só pelas diferentes capitanias, mas por diversos territórios do império oceânico português. Nesse sentido, os historiadores que têm trabalhado sobre Minas Gerais têm apontado para a história da historiografia • número 02 • março • 2009 Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial necessidade de articular a atuação desses funcionários não apenas na capitania, mas no desempenho de inúmeros outros cargos em diversas porções do império. Novo campo temático que tem se apresentado para auxiliar a compreensão das práticas políticas e das relações de poder que se estabeleceram na região e que promoveram a identificação ou o embate entre os administradores e a população local é o do estudo vertical da composição da elite mineradora e da trajetória de vida e administrativa dos funcionários régios, com destaque para o caso dos governadores (SOUZA, L.M. 1995; VALADARES, 1997, 175-199; SOUZA, L.M. 1999; SOUZA, L.M. 2006; FIGUEIREDO, 1999; 175-199; ROMEIRO, 1999; FURTADO, J.F. 1999c; FURTADO, J.F. 2003, 207-224; ALMEIDA, 2001; ALMEIDA, 2007; MYRUP, 2002; VALADARES, 2004; SILVA, V.A.C. 2004, MIRANDA, 2006; MATHIAS, 2007; PIRES , 2006; PIRES, 2008). Mas como introjetar nos vassalos o poder da coroa? Em muitos casos a lei se tornou o campo de intermediação do poder entre o rei e seus vassalos, como também campo de conflito. A partir desse entendimento, as novas abordagens não se limitam a repetir o paradigma de que a realidade era um simples reflexo da legislação, pois “a história local não se limita à execução de uma legislação perversa, formulada pelos impiedosos legisladores e ampliada pelo autoritarismo dos administradores” (FURTADO, J.F. 1996, 219). A lei passou a ser estudada como um instrumento dinâmico, que refletia os embates que a sociedade enfrentava, e que procurava enquadrar e se adaptar à realidade da 123 capitania sempre em transformação (ANASTASIA, 2002; ANTUNES, 2004, 169- 221). Na mesma direção, tem-se buscado analisar as instituições jurídicas em vigor nas Minas Gerais e o papel de seus funcionários no desempenho de seus cargos e funções administrativas (LEMOS, 2003; ANTUNES, 2004; SOUZA, M.E.C. 2000). Esses novos estudos têm acentuado o papel de intermediação ocupado tanto pelas elites locais, quanto pelos funcionários régios em atuação na capitania. O controle estatal nas Minas se manifestou em grande parte por meio do fiscalismo e da tributação. O aspecto exógeno da produção da riqueza mineral na capitania e sua importância para a manutenção do exclusivo metropolitano foi em menor grau a problemática que norteou os novos estudos sobre a tributação (RENGER 2006), superada pelas tentativas de compreensão dos significados da tributação tanto para o poder que a instituía, quanto para os súditos que a pagavam. Importante prerrogativa do poder régio, o pagamento do tributo pelos governados implicava na aceitação da legitimidade desse mesmo poder (FIGUEIREDO, 2002; CAMPOS, M.V. 2002, 105-134; ARAÚJO, L.A.S. 2003). Desta forma, os tributos também se tornaram fonte de embate entre governantes e governados, conflito esse intermediado pelos contratadores, que conferiam à administração dos tributos na capitania um caráter privado (FURTADO, J.F. 1999c; ARAÚJO, L.A.S. 2003; FERREIRA, 2004). “O elemento de maior originalidade na política tributária em Minas Gerais (...) esteve representado no peso representado pelo contrabando e pelo descaminho. (...) A intensidade com que transcorria o contrabando trazia novos história da historiografia • número 02 • março • 2009 Júnia Ferreira Furtado conteúdos ao pacto que constituía a relação entre governantes portugueses e súditos mineiros”. (FIGUEIREDO, 2002, 4) O contrabando de ouro e diamantes passou a ser visto não apenas como atividade ilegítima, mas também na medida em que impunha novas formas de governar e redimensionava a relação de poder entre a população local e os administradores metropolitanos (PINJING, 1997; OLIVEIRA JUNIOR, 2002; PARRELA, 2002). Para as Minas, ao mesmo tempo que se tem procurado compreender a dimensão total do volume alcançado pelo contrabando, buscou-se analisar a dimensão social e o significado dessas redes de contrabando e em que medida elas reproduziam as cadeias hierárquicas que eram os mesmos mecanismos de identificação formal e informal da sociedade colonial. Redimensionar as intricadas relações entre a prática do lícito e do ilícito, mesmo no interior do próprio aparelho administrativo, e de que maneira a população local usufruiu dessas atividades ilegais têm sido o desafio dos historiadores. Desses estudos se conclui que mesmo com inúmeros mecanismos de reforço das identidades no interior do império, a sociedade mineira não era puro espelho da do reino e se apresentava de maneira múltipla e plural (FURTADO, J.F., 1996; FURTADO, J.F. 1999a; STUMPF, 2001). Nesse sentido, era constante a dificuldade dos administradores de controlar uma população que se caracterizava, em parte, pela fluidez e pela indistinção social (SILVEIRA, 1997). 124 A violência individual e interpessoal foi fenômeno constante nessa sociedade, onde muitas vezes os conflitos resultavam em práticas agressivas que, não raro, terminavam em mortes (SOUZA, L.M. 1982; ANASTASIA, 1989; ANASTASIA, 2000; ANASTASIA 2005; ARAÚJO, 1993; GROSSI, 1999; SILVA, C.N. 1998; SILVA, C.N. 2004; REIS, 2002; REIS, 2004). Muitos estudos têm se direcionado para o entendimento dessa violência cotidiana que marcava o viver nas Minas, que se evidencia a partir de várias fontes como os processos crimes e outras menos evidentes como os tratados de medicina (DIAS, M.O.L.S. 2001, 45-105). Nas páginas do Erário Mineral, Luís Gomes Ferreira, preocupado em contar seus feitos médicos, retrata a violência interpessoal que marcava as relações do espaço urbano minerador nos inúmeros casos, por ele tratados, ocasionados pelo uso de armas brancas e de fogo (FURTADO, J.F. 2001d). Novos trabalhos têm se debruçado sobre a política de militarização da capitania, buscando compreender os diferentes níveis de organização das forças militares – Ordenanças, Pedestres, Dragões, etc – e seus diversos papéis. Também têm procurado desnudar a superposição e os enfrentamentos dos interesses das elites locais, recrutadas nos diversos destacamentos, além de procurar compreender os interesses metropolitanos em jogo nessas forças militares (MELLO, 2002; COTTA, 2003; COTTA, 2004; REIS, 2004). Esse longo século XVIII nas Minas se caracterizou pela lenta afirmação e consolidação do poder real na região, mas também foi marcado por constantes ameaças à dominação da monarquia, seja por meio dos perigos internos – os motins, os atentados e as conspirações – ou externos – as guerras e as invasões estrangeiras. Tema abordado por vários trabalhos foi o da violência coletiva, história da historiografia • número 02 • março • 2009 Novas tendências da historiografia sobre Minas Gerais no período colonial manifesto nos diversos motins e revoltas coloniais, que apontaram para a importância e a generalização dos movimentos de rebeldia nas Minas setecentistas (SOUZA, L.M. 1992; SOUZA, L.M. 1995; ANASTASIA, 1998; ANASTASIA E SILVA, 2001; FIGUEIREDO, 1995b; FIGUEIREDO, 1999; FIGUEIREDO, 2001; ROMEIRO, 2007; ROMEIRO, 2008), inclusive de escravos (GUIMARÃES, C.M. 1988; GUIMARÃES, C.M. 2000, 324-338; GUIMARÃES, C.M. 2002; ANDRADE, M.F. 1996; SOUZA, L.M. 1999, 83-150; REIS, 2004). Recentemente, estas análises mais aprofundadas desses movimentos buscaram os padrões de comportamentos, de objetivos, do papel e do perfil dos atores na tentativa de esboçar uma tipificação desses movimentos e os padrões que se repetem no diferentes levantes que sacudiram todo o império. Também de que maneira a rebeldia nas Minas se configurou em padrões inéditos de comportamento e violência, e como introduziu práticas novas no espectro da cultura política rebelde do império. O trânsito de idéias entre os dois continentes constituía pano de fundo comum capaz de unificar o mundo transoceânico português, configurando semelhanças que se revelam não só no compartilhar das formas de submissão, mas no próprio espectro político das rebeliões (FIGUEIREDO, 1995b; ANASTASIA, 1998; CATÃO, 2005; ROMEIRO, 2008). Em geral, as rebeliões não questionaram a fidelidade ao rei, mas imputavam aos administradores locais uma ação tirânica, que poderia ser revogada por meio da violência direta, na medida em que 125 visavam o retorno a uma situação anteriormente pactuada com o soberano. As justificativas para a rebeldia se colocavam, assim, no próprio universo das próprias práticas políticas que legitimavam o poder real. A repressão também se pautava e encontrava seus limites nestas mesmas práticas e, a menos que se conjugassem a ameaça externa e a interna, privilegiava-se uma política de cooptação dos rebeldes, conforme demonstrou o desenrolar dos motins mineiros. O estudo da Inconfidência Mineira se destaca como um tema relevante para a compreensão do espectro rebelde que de tempos em tempos sacudiu as Minas, das novas formas de dominação do estado, das formas de conflito e acomodação entre colonos e a administração portuguesa, do trânsito de antigas e da produção de novas idéias de rebeldia. Ao longo do tempo, muitos autores mergulharam na história desse movimento, sufocado antes mesmo de nascer, para tentar compreender as motivações, idéias, projetos, inspirações e alcances de seus planos de revolta. Nesse sentido, apontaram não só para a importância das tensões internas que se acumulavam no interior da capitania, a composição social dos rebeldes, como para o compartilhar das idéias iluministas, para o redimensionamento das antigas formas de compreensão da legitimidade do poder régio, e para as novas práticas administrativas decorrentes da tentativa de mitigar os conflitos entre governantes e governados (MAXWELL, 1978; MAXWELL, 2001, 389-414; FURTADO, J.F. 1993/1994, 70-91; LEITE, 1991, 18-23; VILALTA, 1992; VILALTA, 1999; FURTADO, J. 1995; FURTADO, J. 1997; FIGUEIREDO, 1996, XIX-XLIX; LUCAS, F. 1998; GONÇALVES, A. 1999; MILLIET, história da historiografia • número 02 • março • 2009

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sobre Minas Gerais, promovido pelo Instituto Amilcar Martins - ICAM, realizado em Belo Horizonte de 19 a 21 de julho de 2004. (Agradeço à
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