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Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia Perennial fashion PDF

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Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia Perennial fashion - jazz, by Theodor Adorno and popular music as a subject for philosophy Arthur Octávio Dutra C. Reis Mestrando em Filosofia/ PPGF-UFRJ Bolsista CNPq RESUMO: Apresentar a problemática do pensamento adorniano sobre a música popular no contexto da abordagem de Philippe Lacoue- Labarthe ao ensaio Moda Intemporal - sobre o jazz, do autor alemão. Procura-se evidenciar suas contradições e apresentar algumas possibilidades de releitura de seus argumentos, tendo em vista a posterior constituição do jazz como universo artístico paralelo ao da música de concerto. PALAVRAS-CHAVE: THEODOR ADORNO; PHILIPPE LACOUE-LABARTHE; JAZZ; MÚSICA ABSTRACT: The article aims to discuss Adorno's criticism of jazz on his essay Perennial Fashion in the context of Philippe Lacoue- Labarthe's essay Remarque sur Adorno et le jazz. The author's contradictions, as well as some new readings of his thoughts, will be considered. The future constitution of jazz as a musical field in its own right, separated to the field of classical music, will guide us through this analysis. KEY-WORDS: THEODOR ADORNO; PHILIPPE LACOUE- LABARTHE; JAZZ; MUSIC INTRODUÇÃO Permanece como um ponto crucial no trabalho de um pensador a capacidade de interpretar as modificações ocorridas no campo da cultura em seu tempo, e de saber pensá-las de forma que o Arthur Octávio Dutra C. Reis 137 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia seu desenvolvimento posterior não transforme elementos antes tidos como centrais em periféricos, nem tampouco argumentos pioneiros em anacrônicos, de modo que o seu pensamento possa sobreviver e influenciar gerações de novos autores. Dentre os casos em que, no século XX, o olhar de um grande pensador sobre um fenômeno cultural recebeu críticas quanto a esta capacidade de sobrevivência está o dos artigos de Theodor W. Adorno sobre o jazz1. Por mais justas que sejam as restrições feitas à indústria cultural em sua relação com a criação artística; por mais que ela tenha se constituído como um instrumento de massificação muito mais do que como um veículo para uma difusão igualitária de todas as formas de arte, poucos negariam o valor do que se produziu no jazz e nas tendências musicais englobadas sob o seu rótulo. Cotejar o pensamento de Adorno com o posterior desenvolvimento do jazz como estilo musical central na história da música no século XX e, ao mesmo tempo, como “entroncamento” de gêneros musicais de origem popular2 que se calcam em procedimentos formais mais rigorosos do ponto de vista artístico; procedimentos estes que se tornaram, assim, cada vez mais distantes do campo de interesse da indústria cultural, oferece novas possibilidades de leitura do texto adorniano. Para uma tal tarefa pretendo me ater aos argumentos apresentados por Adorno no artigo Moda Intemporal - sobre o jazz, escrito em 1953 e publicado no mesmo ano pela revista Merkur. 1 No artigo Adorno e o jazz Elder Kôei Itikawa Tanaka resume as críticas do autor Peter Townsend a Adorno, as quais considero típicas: "(...) na primeira, [Townsend] afirma que o crítico alemão simplesmente não conhece o jazz. Argumenta que sua falta de conhecimento sobre o assunto é tamanha que é surpreendente o fato de ele se sentir preparado para discorrer sobre o jazz e justapor esse ensaio aos seus textos sobre Schoenberg e J. S. Bach, nos quais demonstra conhecimento técnico detalhado. A segunda crítica é em relação aos artifícios retóricos utilizados por Adorno para desqualificar opiniões contrárias à dele. A última crítica de Townsend é em relação à ausência de meio-termo entre arte elevada e aquela absorvida pela indústria cultural". (TANAKA, 2012, p.139). Discutiremos mais a fundo a primeira e a terceira destas críticas, ao apresentarmos os argumentos de Philippe Lacoue-Labarthe. 2 Penso aqui no conceito de 'Festival de jazz' como o de festival de músicas populares do mundo. Arthur Octávio Dutra C. Reis 138 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia Em seu texto Remarque sur Adorno et le jazz Philippe Lacoue-Labarthe traz à cena o conceito adorniano de Entkunstung, o qual teria aparecido pela primeira vez em Moda Intemporal. De passagem, à moda de um improviso, sem se deter muito no termo que acabara de cunhar, Theodor Adorno afirma que, com o jazz, “A arte é desartizada [entkunstet]: ela mesma se transforma em peça daquela adaptação que é contrária a seu próprio princípio.” (ADORNO, 1998, p. 129) A frase aparece no penúltimo parágrafo do texto, que chega ao fim com a notória sentença de Adorno, de que “O jazz é a falsa liquidação da arte: a utopia, em vez de se realizar, sai de cena.” (ADORNO, 1998, p. 130) Precisamente este trecho é utilizado por Lacoue-Labarthe para sustentar a sua hipótese inicial, de que neste artigo Adorno, de certo modo, nega ao jazz o “direito à existência artística.” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p. 131, tradução nossa) DESARTIFICAÇÃO DA ARTE E CRÍTICA AO JAZZ Como afirma o filósofo francês, Entkunstung (desartização, desartificação, desarte) designa em Adorno a “decomposição ou o definhamento da arte, sua dissolução naquilo que a Kunstkritik chama de 'indústria cultural'.” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p. 132, tradução nossa) 3 Ocorre que, por ter perseguido um aperfeiçoamento artístico nos moldes do “extremismo estético” que Adorno atribuiu a Schoenberg, o jazz4 se configurou como um campo musical que, principalmente a partir da segunda metade do século XX, rivaliza com o universo da música de concerto. Não só isso, justamente em razão de sua busca constante por um desenvolvimento técnico e artístico, o jazz deixou de interessar à indústria cultural, tendo - em decorrência de sua não-conformidade com o princípio de massificação da música de consumo imediato - passado a ocupar apenas os espaços periféricos da mesma. É assim que, segundo Lacoue-Labarthe, pode-se reler a conclusão de Moda Intemporal num sentido diverso daquele que Adorno teve em mente ao escrevê-la. Para tanto o autor francês traz à tona uma nova acepção de Entkunstung, constante em Teoria Estética. 3 No original: “(...) décomposition ou l'effondrement de l'art, sa dissolution dans ce que la Kunstkritik appelle 'l'industrie culturelle'.” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p. 132) 4 Seria mais correto falar em 'tendências englobadas sob o rótulo de 'jazz''. Arthur Octávio Dutra C. Reis 139 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia Por meio desta Adorno agora nos faz pensar que a desarte é, por assim dizer, constitutiva da própria arte no decurso de seu processo em busca de autonomia. Para “tornar-se o que é”, a arte deveria abandonar a sua antiga vocação - a propósito a única reconhecida por Hegel como “autêntica e grande”: a “apresentação sensível de um conteúdo espiritual” -, o que, como afirma Labarthe, faz refletir sobre o essencialismo de Hegel, o qual está na raiz de seu decreto sobre o fim da arte. Segundo Lacoue-Labarthe, Adorno teria se ocupado em combater o veredito hegeliano, com a premissa de que a arte sobreviveu sob o regime de questões sobre o seu modo de existir: “como?” ou “como é feita?” O que se entende por desarte, nesse sentido, seria, por que não dizer, a origem da arte; dessa tensão em direção à autonomia de formas artísticas que não suportam mais a própria submissão. Ou a “sua destinação - à expressão de grandes conteúdos.” (LACOUE- LABARTHE, 1994, p.140, tradução nossa.) 5 A desarte seria, então, a inscrição da transcendência como a finitude da arte. A busca do jazz por uma autonomia artística seria, assim, constitutiva da história de muitas formas de arte, e seu caminho em direção a esta “independência” (no caso, da indústria cultural, mas também dos grandes conteúdos espirituais) seria representativo da própria gênese da arte. Lacoue-Labarthe apresenta ainda os três aspectos da crítica de Adorno em Moda Intemporal, os quais resumirei aqui. O primeiro, de “natureza socio-etnológica” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p.134, tradução nossa), é o de que o jazz, como fenômeno de massa, seria um instrumento de submissão numa sociedade reificada. O segundo é o de que ele se presta às leis do mercado, ao “imperativo da comercialização” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p.136, tradução nossa). O terceiro diz respeito ao aspecto propriamente musical do jazz e é, nas palavras de Lacoue-Labarthe, de uma “extrema severidade”: o jazz, em Adorno, é “de uma pobreza total” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p.137, tradução nossa). Este terceiro aspecto, por sua vez, tem como base as seguintes características ressaltadas pelo autor alemão: “O caráter repetitivo da síncope”; “a falta de estilo, no sentido em que Beethoven e Brahms o tiveram, o qual não seria o mesmo que a marca de uma sonoridade ou um estilo de interpretação” (LACOUE- 5 No original: “sa destination - à l'expression de grands contenus.” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p. 140) Arthur Octávio Dutra C. Reis 140 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia LABARTHE, 1994, p.137, tradução nossa) 6; “o caráter estereotipado, estandardizado, da improvisação.” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p.137, tradução nossa)7 O JAZZ E O PENSAMENTO DE ADORNO Mas o que faria do jazz uma “desarte” ou, como queria Adorno, uma “falsa liquidação da (ou de sua) arte”? Lucia Sziborsky, em seu ensaio sobre o autor, nos ajuda a responder a esta questão. Para Adorno, diz SZIBORSKY (2003, p. 238, tradução nossa), é a “verdade da sociedade” que pode ser conhecida através das obras de arte, ainda que a sociedade não esteja consciente disso. No processo composicional, o envolvimento com a sociedade entraria na produção da obra musical de duas maneiras: objetivamente, através dos “conteúdos sociais que estão sedimentados no material musical”; e “subjetivamente, através da experiência do zeitgeist contemporâneo que forma a mais avançada consciência do músico. As duas são mutuamente mediadas no ato da composição” (SZIBORSKY, 2003, p. 239, tradução nossa). Por outro lado, a recepção da música é “dominada pelos interesses da indústria cultural” e “submetida às leis do mercado” (SZIBORSKY, 2003, p. 241, tradução nossa). São estes interesses que definem se uma obra musical será executada ou não. E ainda que o seja, a questão apresentada será: qual a possibilidade real que a tal obra terá de alcançar os ouvidos de ouvintes “deformados” pela propaganda da indústria cultural? Isto leva então a uma aporia entre as esferas da produção (criação) e da recepção da música, que só será resolvida pela possibilidade de uma “reconciliação das contradições” e de uma “redenção.” (SZIBORSKY, 2003, p. 241, tradução nossa) Daí que a “nova música”, de Arnold Schoenberg, exista em Adorno sob o signo da “salvação dos sem esperança”, uma vez que a sua mensagem se apresente em contradição com a sociedade e, em teimosa resistência ao que é, aponte para além do que existe. Desta forma, acrescenta Lucia 6 No original: “l'absence de style, au sens où il y a un styl de Beethoven et de Brahms, que l'on ne saurait confondre avec la 'marque déposée d'une sonorité', (...) ou un 'style d'interprétation' (...)” (LACOUE- LABARTHE, 1994, p.137) 7 No original: “le caractère stéréotypé, voire standardisé, de l'improvisation (...)” (LACOUE-LABARTHE, 1994, p. 137) Arthur Octávio Dutra C. Reis 141 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia Sziborsky, toda a obra filosófica de Adorno está imbuída com o propósito da salvação. Centrada num olhar sobre a filosofia da história, a teoria estética de Adorno deve, ainda segundo Sziborsky, ser entendida como uma teoria dialeticamente estruturada da vanguarda do modernismo, mas uma tal que seja potencialmente aplicável à música de todos os tempos8. Deve ainda ser compreendida como uma teoria social que torna possível conceber as obras de arte como “história inconsciente” ou “congelada.” (SZIBORSKY, 2003, p. 239, tradução nossa) Este olhar de Adorno, oposto a uma teoria da “arte pela arte”, hostil aos procedimentos e atento às intenções veladas da indústria cultural, aliado ao rigor da formação musical de sua juventude - como aluno de composição de Alban Berg e de piano de Eduard Steuermann -, por si só tornariam difícil qualquer condescendência com os estilos musicais utilizados para entreter uma sociedade - a americana - que é, para Adorno, o supra-sumo da reificação. Afinal, como evitar que ouvidos moldados pelo dodecafonismo de Schoenberg fossem capazes de receber, pela voz rouca e o trompete tonal e lírico de Louis Armstrong, bem mais que o talento de um entertainer, isto é: o nascimento de um novo modo de expressão no âmbito da música, e mais, um novo estatuto do instrumentista9 no campo das artes? Estes dados nos ajudam a situar melhor o rigor da crítica feita por Adorno em passagens como esta, do parágrafo final de Moda Intemporal: O trabalho do músico e também do conhecedor de jazz apresenta-se como superação de uma sequência de testes. Mas a expressão, verdadeiro suporte do protesto estético, é atingida em cheio por aquele poder contra o qual ela luta. Diante desse poder, ela assume o som do miserável e desgraçado que ainda se 8 Embora este artigo procure de início criticar o olhar de Adorno sobre o jazz, procuraremos mostrar também a possibilidade de releitura de suas ideias sobre a música popular. 9 Refiro-me ao fato de que com o jazz o instrumentista não deve apenas executar com a intermediação do regente ou interpretar, como solista, obras concebidas nos mínimos detalhes pelo compositor. O instrumentista é no jazz o lançador de estilos de interpretação e de improvisação, que chegam a influenciar, quando apropriados pela tradição, todos os demais músicos, sejam eles instrumentistas, cantores, compositores ou arranjadores. Arthur Octávio Dutra C. Reis 142 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia disfarça furtivamente em um som deslumbrante e provocante. O sujeito que se expressa, expressa o seguinte: eu não sou nada, eu sou lixo, é bem feito que se faça isso comigo. Já se tornou potencialmente um daqueles acusados à moda russa que, mesmo sendo inocentes, cooperam de antemão com o procurador do Estado e não acham nenhuma punição severa demais para si mesmos. Se outrora o âmbito estético, enquanto uma esfera de leis próprias, surgiu do tabu mágico que separa o sagrado do cotidiano, para deixar o sagrado em estado puro, agora o profano vinga-se no sucessor da magia, a arte. Esta apenas tem o direito à vida quando renuncia a ser diferente e enquadra-se no domínio total do profano, no qual se transformou finalmente o tabu. Nada deve ser que não seja como o que já é. O jazz é a falsa liquidação da arte: a utopia, em vez de se realizar, sai de cena. (ADORNO, 1998, p. 130) Não é o propósito deste texto investigar as aproximações da utopia citada por Adorno com a utopia schilleriana da igualdade através da educação estética do homem; de uma humanidade emancipada e da fruição da arte como uma terceira via para o poder político. Lembre-se apenas que é frequente a menção à faceta social e política do jazz que, ao unir brancos e negros numa gravação ou num palco num momento em que a sociedade americana não estava preparada para absorver tal integração, teria atuado na vanguarda da luta pela igualdade racial nos Estados Unidos. Mas se - como fica claro na passagem citada - Adorno não leva em conta dados como este é porque para ele a expressão do trato com a sociedade precisa estar acima de tudo na relação do compositor com o material (musical) utilizado. Se não, vejamos esta passagem da Filosofia da Nova Música: “(...) a discussão do compositor com o material é também discussão com a sociedade, justamente na medida em que esta emigrou para a obra e já não está à frente da produção artística como um fator meramente exterior, heterônimo, isto é, como consumidor rival da produção.” (ADORNO, 1989, p. 36) Ao conferir à onipotência do compositor a responsabilidade pela relação da música com a sociedade Adorno elabora uma noção que na essência não pode encontrar ressonância no campo do jazz, uma vez que aqui os conceitos de “criação”, “interpretação” e “composição” são redefinidos à luz do trabalho híbrido do instrumentista e da preponderância dada à improvisação. O conceito de Adorno é preciso para o campo da música de concerto, pois defende uma “interação Arthur Octávio Dutra C. Reis 143 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia imanente” (ADORNO, 1989, p. 36.) do compositor com o material, interação esta que também consubstancia um tipo de relação da matéria prima musical com a sociedade. Nesse aspecto, Adorno permanece fiel à ideia de que o compositor, quando se debruça sobre a especificidade da escrita musical, é tributário de toda a história da música, tendo para com ela um dever. No cumprimento ou não dos desígnios do desenvolvimento histórico da matéria prima musical é que se expressa um olhar sobre a sociedade, com o potencial de fazer dele um crítico da cultura e de seu tempo ou de transformá-lo num retrógrado repetidor de fórmulas arcaicas. A música, em si, não está jamais alienada em Adorno. Quando o que se escuta são sequências de acordes ouvidas pela primeira vez já no século XVIII, ela lamenta e, em sua mudez10, reclama conservadorismo. E é isso o que nela Adorno 'escuta'. A audição do intelectual da música se assemelha a um raio-X que o faz enxergar além dos contornos melodiosos e da harmonia das formas; busca lá o modelo ideal daquilo que, em relação ao momento histórico da música em seu tempo, mereça ser considerado 'criação'. Os clichês seriam marcas do passado apresentadas como novidades e por essa razão não poderiam ser utilizados pelo criador consciente. Até o desenvolvimento técnico das formas e dos músicos do jazz e de outros estilos de música popular o estudioso e o intelectual da música de concerto raramente chegavam a ouvir as sequências de acorde se cristalizarem numa construção de sentido que caracterizasse, lentamente, uma forma de dizer11; mais 10 Esta análise também pode ser lida no contexto da caracterização adorniana da poesia no contexto pós-guerra, segundo nos lembra Márcio Seligmann-Silva: “Se Benjamin analisou como Baudelaire transformava entusiasticamente a vivência moderna do choque em poesia, agora o tom da poesia, no pós-guerra, era totalmente outro. Havia-se passado de uma vida pontuada por choques para uma vida destruída por um acúmulo até então inimaginável de violência. Adorno, na sua Teoria estética, retornou diversas vezes a esse paradoxo da poesia pós-Aushwitz, do seu ser uma poesia muda”. (SELIGMANN- SILVA, 2009, p. 111). O autor cita uma passagem em que Adorno amplia o conceito à arte em geral: “As obras de arte são arcaicas na época do seu silêncio. Mas, ao deixarem de falar, é seu próprio silêncio que fala”. (ADORNO, 1982, p. 318). 11 Este esboço de uma caracterização da identidade do músico de jazz ajuda a compreender o olhar de Adorno sobre o 'estilo', conforme caracterizado anteriormente, no sexto parágrafo do presente artigo. Arthur Octávio Dutra C. Reis 144 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia raramente ainda aceitariam que um estilo retirasse da matéria prima musical12 apenas o que considerasse indispensável nesta13. Isto porque para eles havia algo anterior, que saltava aos ouvidos numa primeira escuta14, e que tornava desnecessária qualquer análise aprofundada: o tipo de matéria prima utilizado, e o preparo técnico dos intérpretes nos moldes dos códigos de valor da música de concerto. Tal fato talvez explique por que um intelectual da estatura de Adorno tenha sido acusado de incultura15 justamente em relação a este que foi um de seus principais objetos de estudo; justamente em relação àquilo que com mais propriedade se pôs a rechaçar. Que não se acuse o autor de displicência: Adorno não teria jamais se furtado a estudar a fundo o jazz 12 Adorno utiliza o termo “material”. Ao utilizarmos “matéria prima musical”, pretendemos mostrar que o material em que se baseiam as composições das músicas populares de improvisação são como a demarcação de um território para o exercício das diversas atitudes criativas de seus diferentes intérpretes. 13 Estes são aspectos estruturais da constituição do jazz como forma de arte, que comprometiam a sua recepção por parte dos músicos de concerto. 14 Este tipo de escuta permanece como um modelo para os músicos, mesmo não sendo sempre praticado. 15 Philippe Lacoue-Labarthe aborda o tema com propriedade em seu ensaio. Segundo ele Adorno não teria jamais escutado artistas fundamentais na história do jazz, como Charlie Parker, Duke Ellington, Thelonious Monk, Miles Davis, Charlie Mingus e John Coltrane. Nas palavras do autor: "Les références d'Adorno sont d'une pauvreté ahurissante : c'est à peine s'il cite Armstrong (au titre des musiciens), le Saint-Louis Blues et le Tiger, comme il dit (au titre des "morceaux"), le ragtime, le swing et le be-bop (au titre des "mouvements" inscrits dans la pseudo-histoire du jazz, dans sa "mode intemporelle" et répétitive, où le nouveau est toujours le même (...). On dirait qu'il n'a jamais entendu Ellington ou Parker, Monk ou Miles Davis, sans compter qu'il ne pouvait pas même avoir eu l'occasion d'écouter, en 1953, réinstallé en Europe, Mingus et Coltrane, les percées les plus décisives du Cool et du style dit West Coast, les compositions de Gil Evans, le Free, et tout ce qui se passe entre le très éphémère et très énigmatique Giuseppi Logan et les obstinés Ornette Colemann et Steve Lacy. (Ce n'est pas un palmarès, juste quelques références indispensables ; ou l'on ne sait pas de quoi l'on parle.)" (LACOUE-LABARTHE, 1994, p.133) Arthur Octávio Dutra C. Reis 145 Ítaca 29 ISSN 1679-6799 Moda intemporal, de Theodor Adorno, e o jazz como tema para a filosofia se julgasse necessário. Mas a escuta musical de seu tempo aliada ao seu conhecimento da história das formas musicais lhe dava conhecimentos (leia-se motivos) suficientes para 'se precipitar', isto é, para julgar o jazz mesmo sem conhecê-lo. Se o músico de concerto16 não escuta 'uma música'17, uma proposta de percurso que por existir defende a sua própria condição de criação; se escuta um modelo d 'A Música', mesmo e principalmente quando ali ela, para ele, 'falta', pode-se inferir que Adorno não terá jamais ouvido 'jazz', e, sim, algo fadado a ser sempre uma desarte, um desvão no percurso da música rumo ao dodecafonismo18. Daí que nos interstícios de acordes simples e antigos, a música, em Adorno, murmure uma leve ironia em relação à sua história. E seria esta a verdade que fala, enquanto o compositor cria, como “advertências que o material transmite ao compositor, e que ele transforma enquanto as obedece.” (ADORNO, 1989, p. 36) Esta espécie de 'voz' que a própria música dirige ao compositor se traduz, na obra de Schoenberg, no olhar crítico sobre a já citada aporia entre a produção e a recepção da música em seu tempo. Isto serve para explicar por que a autonomia da música de Schoenberg, como nos lembra Jacques Rancière, aparece em Adorno como uma “dupla heteronomia: para denunciar a divisão capitalista do trabalho e a concordância de comodificações, teria que levar a divisão mais longe, ser ainda mais técnica, mais ‘inumana’ que a produção massificada do capitalismo.” (RANCIÈRE, 2004, p.14, tradução nossa) Então a estética double-bind se torna a contradição da obra, “a contradição selada em sua textura sensorial.” (RANCIÈRE, 2004, p.14, tradução nossa) Sendo uma contradição in actu, a obra assim manteria a promessa de emancipação. Num outro extremo o jazz, por seu vínculo com o mercado, teria que se constituir como o oposto disso, teria que se apresentar, aos olhos do autor, como a falsa realização de uma utopia estética. Precisaria se constituir como uma forma de arte que não possui, absolutamente, história. A instauração de um universo musical particular dentro do campo teórico da música foi lido pelo autor como 16 Procura-se compreender o olhar do autor a partir da escuta musical do músico de concerto naquele momento histórico. 17 Queremos dizer: 'uma música' no contexto do universo criativo da música popular. 18 Posteriormente, no ensaio Vers une musique informelle, Adorno defenderá um futuro de liberdade total para a criação musical, liberdade esta que também transcenderia o dodecafonismo. Arthur Octávio Dutra C. Reis 146

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