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Mobilidade e materialidade dos textos: traduzir nos séculos XVI e XVII PDF

214 Pages·2020·31.668 MB·Portuguese
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Roger Chartier Mobilidade e materialidade ··. dos textos Tt"aduzii' 11os séculos XVI e XVII Tradução de Marlon Salomon e Raquel Can1pos .. t ...... ' .· :·, Editoro do Unochopeçô E D U F 8 A Este livro trata ela história de uma aventura bastante singular: da migração de livros e textos do mundo moderno que ultrapassaram fronteiras, circularam em inúmeras línguas, mudaram muitas vezes de gênero e sofreram profundas trans formações em seus sentidos. Graças aos tradutores, eles migraram de urna língua para outra. Estes, todavia, não vertem simplesmente um texto para uma outra língua; eles o interpretam, "mobilizam repertórios lexicais e estéticos" disponíveis em uma época. Não é, portan to, a estabilidade de uma identidade original dos textos o que aí importa, mas sim os diferentes significados que eles recebe ram nesse movimento. Ao propor em 1684 uma tradução para o francês elo assim considerado intraduzível livro de Baltazar Gracián, Ameldt de la Houssaie não altera apenas o seu título, mas atribui-lhe um novo significado. Essa tradução transforma o texto origi11al do jesuíta espanhol em um livro de corte. Seria essa versão francesa que circularia pela Europa e criaria uma significação curial para esse livro - da qual um Norbert Elias seria, em alguma medida, herdeiro. Do mesmo modo, o texto de Las Casas, traduzido em diferentes línguas, foi objeto de múltiplas e diversas apropriações políticas, seja no contexto elas guerras religiosas ou no das independências na l\.. mérica. A tradução, portanto, diz menos sobre a literalidade do texto do que sobre a "identidade de quem a propõe e da sociedade a quem se destina". Mas as migrações e traduções não envolvem apenas a passagem de uma língua a outra. Os textos viajam também de um gênero a outro, do palco à página e da página de volta ao palco. Nesses múltiplos trânsitos, antes de chegarem aos leito res, eles passam por inúmeras mãos, sofrem uma série de inter venções que também alteram sua forma e seu sentido - e que vêm inscrevê-los em registros e horizontes total mente outros. Assim, um livro como o Dom Qnixote, escrito originalmente como um romance, em língua espanhola, podia se transformar em uma peça para o teatro de marionetes de Lisboa. Mas a Vida do grande Dom Quixote de La Mancha ( 1733), de Antônio José da Silva, articula não apenas a história das adaptaçôes teatrais da Segunda Parte de Dom Quixote e a dessa forma teatral frequen- temente negligenciada, que é o teatro de marionetes. Nela é possível ler também, contra a perspectiva de Machado ele Assis, "a história de um dramaturgo três vezes confrontado à Lnquisição e à dolorosa condição dos 'conversos"'. Mais (ou menos) ainda, essa mobilidade podia se fazer também no inte rior de uma mesma língua, como no caso de Fwmle Ovejww, comedia de Lope de Vega sobre urna revolta popular ocorrida na cidade homônima, no ano ele 1476. Em sua tradução, para os palcos, da Crônica ele Racles )' Andrada, Lope alcançou uma ambivalência inexistente naqpela que foi sua principal fonte. Produziu, assim, uma obra aberta a "interpretaçôes e encena ções contraditórias", "tida por heroica ou carnavalesca, subver siva ou reacionária" e dotada, talvez por isso, de uma "força perpétua". O objetivo ele Roger Chartier, portanto, não é apenas o de traçar a geografia dessa mobilidade textual. Importa, no fundo, compreender os diferentes dispositivos materiais de publicação dos textos que atuam na sua reconfiguração semân tica: o trabalho dos copistas que preparam o manuscrito e dos corretores que entregam a versão a ser impressa; a ação dos censores que o alteram ou reprimem; o labor dos tipógrafos que dão ao texto sua forma final; enfim, dos editores que deci dem, muitas vezes, a sorte de uma publicação. Nesta época de digitalização e transformação da cultura escrita, uma advertên cia e uma lembrança se impôem aos historiadores do livro e das epistemigrâncias: "somente o estudo dos próprios objetos, em sua existência física, permite penetrar nas múltiplas existências do 'mesn1o' texto". Marlon Salornon Raquel Campos Rogcr Charticr MOBILIDADE E MATERIALIDADE DOS TEXTOS Traduzir nos séculos XVI e XVII Tradução: Marlon Salomon e Raquel Campos .. t . .·· ' . ..• •, Ecltoro do Uno.,rcp.có E O U f B A Ch:-.pccó, 2020 ô ]=UNDESTE fUND~ÇAO UNJV!RSJTAIU~ 00 DESENVOLVJ.\1ENTO noorsn Prc~ic.kntc Vinc:cnzo Francc.-sco MastrogiJcomo Vict'·l7rsidrntt h·onei Bilrbiero Reitmil (~ Reitm: Chut.lin Alckk~ )Jcudd Pn)-Rcitnl'3 Je Gr:tt!u.:tç:;o ~ Vkc-Rdtur;t: Silv:m:t Muraro \Viltlncr UNOCHP.PECÓ PPrróó--RRceiitlomr3 d ce.lc .P· Pl3ens<')'ujai.m.::Jc, nE.tot1 ccm (.)ic~.,-:.slcnnuvvo.h:>tç'i:miol" cn tPo:ú 1$\-HGrr.daodu d:JJç !Pin.l:i x,\ânl>d rR~o:dJ rdigeu Jc.\'l$m citb l.c:itc: :\1amccu Pró·R<'itCir ~te r\dministr.tçâl>; Jost~ Akxi'lndrc de Toni I., Diretora de P-.·squis.l c Pós-Gr.lCfu:~ç:\o Strirto Scmu: Va.ncss:a d.t SilvJ. Corra Reitoria Jteitor: João Carlos Salles Pir~s d.t Sil\'a Vice-reilor: Paulo Ctsar Migutz Jt Oliwir3 Ass.es.sor do Htitor: I'. tu lo Costa Lima Est~ livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem autorização escrito do Editor. C486rn Chartier, Hoger Mobilidade e materialidade dos textos. Traduzir nos séculos XVI e XVII/ Rnger Chartier; I tradução de: 1'-·!arlon Salomon e Raquel Campos).-Chapecó, SC: Argos; Salvador, BA: EDUFBA, 2020. 209 p.: 16 em. . - (Grandes Temas; 31)- Inclui bibliografias ISBN: 97R·65·88029·09·1 (Argos Editora da t:nochapcctl) ISBN: 978-65·5630·067·2 (Editora da Uni,·ersidade Federal da Bahia) I. Literatura. 2. Literatura espanhola. 3. Ensaios. 4. Tradução. I. Salomon, Marlon. li.C ampos, Raquel. JJJ. Título. CDD: Ed. 23 .. 808.4 Catalogação elaborada por Viviane Formighieri Müller CRB 14/1598 Biblioteca Central da Unochapecó ~f~i<Un.\n~.cbCju;~fd...NS I)-R•im•l:f,_pi M(:h~"l«cH!-C) ~ S'Y..C!Yll iiOI)-C;~iu l't•~<t~o~) 11.&1 f~9) J~21 to:~ li!-~t~s.~. ... oo.:b•r«.,·~"\t~r-"'''""'I.I.I)O(h.af'('(c•.N\J'-'rh'G~ t:\on<,t.IOO Ui~Ofla! Tllt~bn-ç f;klo.ln:~IJ... . An1611in Jt N lrrr:n&nld, Cn~i.ln lbu 1>.-d !·1.:;-;n• (\'kl'·JYC':loi..kntd. ktls.mt S:.~õl!i:.:.. Mtnt'Sb<ttl S.ílv('if"-AJIJ:,(~ dt Almo:lu J,t;t(' ~f~rocco. Cku.Aiet l.I.M.U.... Hiboo h:r.lo.>r~ Somtns. Vm<s~ d.15-l~'l Con.a!."\ íi.OOn~ ibrkh~ki.And:( l.t1it Ongll('ft\Çi~..-(' M;;rJ ~brlJI.l'l"'-(j.ll\1-) I ~Ctll;w.t~i. (>..li$«i:~. A~noci-1.& ~k~o.l..• l•>l'liJnA. An<l..rn J>iM (~lili.)IN Mo~•io ,\!c:nJu .\tbldt'l. Su&•nl:UI.t. Su~-.ltntt~: ,\l.ut.. Msunl.a ltu~o.ttn. RNntp 0lr.T1n (I(' Oli\'tiu.. . I04i~IX ~IJ.Iit ~Sol'l('f'tln dt ;\ldk\, R~i114l~trl PC're'in. ldh C.J.n.ri. ~Uni" I uil.a l'it 1>~1 ~t~m. K\IJ S.U~o .. k ku·m(t,ab\1 s:n-C..."t'lpt.~ Jt Oodm.a-tOI'i'O·IIS Nlv.ad«-B.ahi.a (BM F ll )lJI).f.l60-rJvfh.a,."''ulhõa..br ....... w.~a:.n~vlh:~..br 01H1CU. Fll\'lo\ C<lulm MC'IA G•Ni.a Ruu ..:onA'lho Ulton~J EDUFBA TMr;!uiuol.~n Jt>.~,: CA.atbtrnoton S l.,l,r..u. om dr.t; •F"-u:wi-t~u A.n ~f1,.lt'lt.t.•. .\ 1\I.JJJt1lli «dlti !i-'!tcrsrr<rt" •~rots ~c..m ( :u;,.siuol,.y Ah·n .1..a C("'L~ Clll!rl"~ :O.'ii1u t.l ft:.ni. C1d.K 1\.lll,Jv MukSn, [or.._{ioa. dt Cal" k''.v s.i Hvhil Sumário Introdução 7 I. PUBLICAR 11 As sete vidas da Brevíssima relacíon de la destruycíon de las Indias 13 II. REPRESENTAR 61 Fuente Ovejuna 63 III. TRADUZIR 109 Do Oráculo Manual a EHomme de Cour [O Cortesão] 111 IV. ADAPTAR 157 Dom Quixote e as marionetes de Lisboa 159 EPÍLOGO. REESCREVER 193 Cervantes, Menard, Borges 195 Introdução Uma mesma questão subjaz aos quatro ensaios aqui reunidos: a mobilidade das obras. As migrações dos textos implicam interven ções, competências e decisões de inúmeros atores: dos escribas que passam a limpo os manuscritos dos autores; dos censores que dão sua aprovação ou introduzem as correções que julgam necessárias; dos tradutores que interpretam os textos mobilizando os repertórios lexicais e estéticos disponíveis; dos editores, impressores ou livreiros, que decidem publicá-los; dos corretores que estabelecem o texto des tinado à impressão; ou ainda dos tipógrafos, cujos hábitos e preferên cias, constrangimentos e erros contribuem, também eles, para a ma terialidade do texto. Em certos casos, a cadeia das intervenções que conferem formas e sentidos às obras não se limita à publicação das páginas impressas; graças às decisões dos diretores de trupes teatrais ou de empresários de espetáculos, os textos são oferecidos ao ouvido dos espectadores de teatro antes de sua eventual edição. São essas múltiplas trajetórias que estes quatro estudos pretendem reconstruir ,a partir de casos singulares, que são, cada um à sua maneira, exem plares das operações que conduzem da escrita à publicação, da crô nica histórica ou do romance à representação dramática, ou ainda de uma língua à outra. 7 A forte presença dos textos espanhóis do Século de Ouro nesses estudos não é devida somente a um gosto de leitor ou aos estudos que dediquei previamente às edições francesas do Buscón, de Quevedo, à Arte nuevo de hacer comedias en este tiempo, de Lope de Vega, ou a ' certos episódios de Don Quixote - por exemplo, a visita a uma gráfica barcelonesa pelo hidalgo ou a descoberta do librillo de memoria de Cardenio na Sierra Morena. Essa presença enraíza-se nas próprias realidades históricas. No Século de Ouro, a língua espanhola é tida como a menos imperfeita da Europa e a Espanha é vista como uma terra que propõe a todo o continente os gêneros mais novos da escrita da imaginação: o romance de cavalaria, a autobiografia picaresca, a comedia nova e, inclassificável entre os gêneros estabelecidos, Don Quixote. Se os textos do Século de Ouro retiveram nossa atenção, é também porque os mestres dos ateliês tipográficos empregam neles as metáforas que fazem do livro uma criatura humana e de Deus o primeiro dos impressores; porque os escritores constroem suas histórias ao se apoderar das mais humildes realidades da escrita e da publicação, surgidas em um mundo ainda dominado pela palavra viva, a conversação popular ou letrada e as técnicas da memória; e porque dois livrinhos escritos em castelhano viajaram por toda a Europa. Aquele publicado por Las Casas em 1542 foi a mais forte denúncia das tiranias e crueldades perpetradas pelos espanhóis no Novo Mundo e a mais violenta advertência para todos os povos que temiam sua força; aquele que Gracián mandou publicar em Huesca em 1647 tornou-se, graças ao seu tradutor francês, o mais lido dos manuais que ensinavam as condutas necessárias à vida na corte. Os quatro estudos de caso publicados aqui, dos quais três fo ram apresentados no Material Text Seminar dirigido por Peter Stally brass, estão amplamente fundados na consulta das coleções de livros raros e manuscritos da Biblioteca da Universidade da Pensilvânia. As 8 coleções legadas à Biblioteca por Robert Dechert e Charles Lea tor naram possível o estudo das traduções do tratado de Las Casas, assim como a consulta dos documentos da Inquisição portuguesa que per seguiu Antônio José da Silva. A impressionante coleção de edições de comedias do Século de Ouro, constituída em parte por meio das aquisições do Conde Harrach, embaixador do Imperador em Madri no último quartel do século XVII, assim como a presença de dois manuscritos autógrafos de Lope de Vega, forneceram as bases pa ra a análise de Fuente Ovejuna. Finalmente, a rica série de edições tanto do texto espanhol de Gracián, como de sua tradução francesa por Amelot de la Houssaie, permitiu dimensionar as dificuldades de tradução de uma obra que, de oráculo enigmático, transformou-se em uma coletânea de preceptivas. Relembrar o papel essencial das bibliotecas nas démarches de pesquisa tem aqui um duplo propósito. Essa lembrança permite, em primeiro lugar, sublinhar que em um mundo no qual a reprodução di gital permite, fácil e rapidamente, acessar os textos, compreender os significados que a materialidade de suas diferentes edições lhes deu permanece uma exigência essencial. Somente o estudo dos próprios objetos, em sua existência física, permite penetrar nas múltiplas exis tências de um "mesmo" texto, quando seu sentido e seu uso são trans formados pelo formato do livro (tal como entre o pequeno in-24 que é o Oráculo manual e o grande Quarto de sua tradução), pela forma da publicação (por exemplo, a circulação da mesma comedia em uma edição separada, em uma coletânea de peças de diferentes autores ou em um volume que reúne as obras de um único dramaturgo) ou ainda pela presença das ilustrações, no interior do texto ou fora dele (como nas traduções de Las Casas). Essa lembrança é também uma maneira de indicar a impor tância da contribuição dos diretores e funcionários de bibliotecas 9

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