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Memórias de uma alma PDF

197 Pages·2010·0.62 MB·Portuguese
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MEMÓRIAS DE UMA ALMA JOSÉ SURIÑACH Romance real de ADRIANO DE MENDOZA psicografado no CENTRO ESPÍRITA "CRISTÃO" Reminiscências Ao pairar na atmosfera radiosa, flutuando nas ondas do éter, a medir, de relance, os páramos do Infinito, sinto-me tão pequenino qual ínfimo grão de areia perdido no oceano, e, possuído de santo respeito, exclamo entusiasmado: — Meu Deus, como sois grande! Contemplando os jogos de luz que em apoteose excelsa se desprendem artisticamente da imensa catarata de mundos, rápidos a evolucionarem na imensidade do espaço e envolvendo-me na filigrana de um íris de indefinível policromia, deslumbrado, por completo, digo: — Meu Deus, como sois belo! Ponderando a perfeita harmonia das leis sábias, a que obedecem todas as forças do Universo, cujos efeitos se manifestam na fúlgida maravilha da Obra da Criação, curvo a fronte perante a vossa onipotência e, admirando a vossa ciência, repito: — Meu Deus, como sois sábio! Que seria de nós sem o divino impulso da vossa vontade soberana?! Não existiríamos, simplesmente! Se hoje, pequenino, já posso conceber-vos e imaginar o foco da vossa pura luz, que não será no dia em que, no templo da ciência, puder admirar vossa excelsa irradiação! Onde assentará o imaculado Oceano, no qual vai confundir-se a acidentada correnteza das nossas múltiplas existências? Arcano misterioso! Anacronismo do porvir! Podereis ser, jamais, desvendado por nossas pobres almas, que não têm um momento de repouso, ávidas de pesquisar o vosso princípio e fim, coisas ambas que permanecem envolvidas no denso véu de um mistério impenetrável?! Vejo-me rodeado de um formigueiro de mundos que atentamente contemplo e.. . todos habitados ! Compreendo, Santo Deus, que à alma lhe são necessários esses mundos transitórios, pontos de apoio no espaço, onde pode desviar, embora por um instante, o seu olhar do Infinito, cuja eterna contemplação chegaria a embotar-lhe os sentidos, pois a coisa que mais esmaga é a monotonia do incompreensível. Assim, nas diversas moradas espalhadas na imensidade, a alma vai aumentando o cabedal de conhecimentos que, cada vez mais, alargam o voo das suas percepções. Ao relembrar meu passado e dirigir retrospectivo olhar ao ponto mais afastado das minhas recordações, ó Santo Deus, que vejo? Um poético recanto, oásis encantador, que à minha vista se oferece qual miragem deliciosa de sonho paradisíaco. Uma relva abrilhantada pelos raios do sol nascente, onde as aves mais formosas fazem ouvir as cadências dos seus trinos e gorjeios. Árvores seculares ostentam, altivamente, ramagens frondosas revestidas de folhas verdes. Eu. . . sinto-me pregado ao solo, num tapete esmeraldino, matizado de florzinhas em cujas pétalas perfumadas perlífero orvalho cintila. A meus pés, alegremente, brinca cristalino manancial cujo burburinho suave acompanha o cântico das aves. As flores vizinhas comprazem-se, vaidosas, contemplando a própria imagem no límpido espelho das águas. Sentindo também veemente desejo de contemplar-me, inclino-me, instintivamente sobre a relva da margem. Olho e. .. oh! assombro! Desenhada na pura linfa vejo a plástica delicada de uma suave flor de lindo aspecto e alvinitente cor, que, impelida brandamente pela brisa matutina, suavemente balança no hastil alongado. Diante de tão belo espetáculo, sinto no meu íntimo algo de inexplicável, que não posso exprimir, mas que manifesta a harmoniosa unidade da corrente misteriosa que, suspensa na imensidade, se perde no Infinito. Do átomo à molécula, do grão de areia ao rochedo, da flor à ave ligeira, do reptil ao quadrúpede, vai o princípio anímico, de evolução em evolução, sofrendo transformações, ganhando faculda- des, até ser digno de entrar na própria Humanidade e, dela sem parar um instante, sempre em voo ascendente, desprendendo-se mais e mais das suas imperfeições, atravessando atmosferas, cruzando novos espaços, percorrendo vastos horizontes, entrando a fazer parte das humanidades que se agitam em belas e radiosas esferas até, finalmente, chegar vitorioso, cheio de glória, ao ponto culminante da obra da Criação, templo sacrossanto da ciência e da Perfeição, éden sublimado no qual a alma se identifica com Deus. Corria o mês de Dezembro de 1670. Acabavam de bater sete horas no relógio colocado na elevada torre da Giralda (catedral) , célebre relíquia arquitetônica erigida na Praça maior de Sevilha, formosa cidade de Espanha, que naquela hora matutina aparecia adormecida sob um manto de puro arminho. Quase fronteiro à Giralda, ostentava-se o antigo castelo do Barão de Calatrava, nobre cavalheiro possuidor de avultada fortuna. D. Armando, homem dos seus quarenta e cinco anos, era o protótipo da bondade. A uma alma humilde e bondosa conjugava- se o coração magnânimo, generoso, verdadeiro coração de ouro. Sentia intensa devoção pelas letras, porém, sua paixão favorita era o estudo das ciências naturais, às quais dedicava grande parte do seu tempo. Isto não o impedia de adorar a estremecida esposa, com a qual se casara havia alguns anos. Homem de costumes sóbrios, suspirava constantemente pelo nascimento de um filho, que viesse perpetuar o nome preclaro dos seus antepassados. Após quinze anos de perspectivas esperançosas, engastadas no céu da sua felicidade, e quando já principiava a declinar ao amargor da realidade, Deus favoreceu-o com a realização de suas douradas ilusões. D. Marta acabava de completar trinta e dois anos. Dama formosíssima e virtuosa, que amava o marido, dedicava-se inteiramente a proporcionar-lhe uma existência feliz e venturosa. Vivia retirada, recebendo poucas visitas e saindo apenas para encaminhar-se ao templo, a cumprir os preceitos que lhe impunha a religião católica, que, desde criança, professava; ou, então, para transportar-se a algumas das míseras choupanas dos arrabaldes afastados, onde deixava o seu óbolo em benefício daquelas pobres criaturas que, ao se despedir, lhe inundavam as mãos com o benéfico orvalho do reconhecimento. A baronesa regressava ao solar, sensibilizada com as manifestações de alegria daquelas almas simples, algumas das quais, deitadas em miseráveis enxergas, pareciam ter nascido para sofrer toda a sorte de privações e beber, a grandes sorvos, a taça amarga da dor. Logo se dedicava às ocupações próprias de seu sexo, elevando uma prece ao Criador, prece que condensava a ideal aspiração de toda mulher que penetra nos domínios de Himeneu: — ter um filho no qual pudesse concentrar toda a meiguice da sua alma delicada, comunicando-lhe toda a vida, todo o calor do seu coração maternal. Possuir um ser, carne da sua carne, sangue do seu sangue e alma da sua alma! Um ser que lhe roubasse todo o seu tempo, ao qual pudesse apertar nos braços, beijar a seu bel-prazer e secretamente confiar-lhe suas dores, alegrias, desânimos e ilusões. .. Essa, toda a sua aspiração! Belo ideal que dignifica a mulher, colocando-a no ponto mais elevado das posições sociais. Belo ideal, que transforma a mulher, para convertê-la em mulher- mãe. Mãe! Que é mãe? É um ser todo-amor, todo ternura, todo meiguice, todo suavidade. Um ser que não tem vida própria, pois a sua vida é a do filho. Um ser que reúne todos os amores da Terra. Um ser que, qual divina vestal, sabe sustentar sempre vivo o fogo sagrado do amor. Haverá amor mais nobre, mais sublime, mais puro e santo que o materno? Não! Jamais! Depois do amor de Deus, o amor materno é o que mais sobreleva a todos os amores. E a mulher que em seu coração o sente, sob o influxo poderoso dessa divina vibração, deixa de ser mulher para transformar-se em anjo. Chegará, pois, o instante desejado e ao mesmo tempo temido de toda mulher. O instante em que, finalmente, se quebraria o dique que continha a impetuosa corrente dos arroubos do seu coração, para que a corrente se precipitasse em ondas harmoniosas do mais puro dos amores — o maternal. Armando de Calatrava passara toda a noite na antecâmara, sentado numa poltrona e com um livro na mão, livro que nem sequer via, apesar de fitá-lo com os olhos fatigados, pois sua atenção estava toda concentrada na alcova da baronesa, assistida pela parteira e pelo médico da família. De repente, o barão levantou-se, abandonando o livro. Acabava de surgir o doutor, que vinha felicitá-lo pelo feliz nascimento do seu primogênito. — Meu amigo, disse o doutor, dignai-vos receber meus parabéns. Que o vosso lar seja envolvido numa atmosfera de felicidade com a vinda desse anjinho. — Mas.. . doutor, interrompeu o barão. . . Marta? — Está livre de perigo. Agora, só depende do trabalho da parteira. O doutor saiu. No mesmo instante em que o eco da última badalada das sete horas se perdia no espaço, a porta que comunicava com a alcova da baronesa se abria, aparecendo no limiar a austera figura da dama de companhia, a sustentar uma almofada de veludo escarlate, sobre a qual se debatia um robusto menino de fresca e rosada carnadura. — Senhor barão, disse a dama, eis aqui o vosso nobre rebento. Nuvens róseas em alvos horizontes Armando precipitou-se para o recém-nascido, cobrindo-o de apaixonados e repetidos beijos, que muito bem demonstravam o entusiasmo do seu coração . — Meu filho, exclamava — meu tesouro, quero que perpetues o meu nome: por conseguinte, cha-mar-te-ás — Armando de Calatrava. E, louco de alegria, entrou no dormitório, correndo, para depositar a criança no leito, junto da baronesa, que, embora palidíssima pelo transe perigoso por que passava, dirigiu ao inocentinho um olhar de infinito amor. — Não é verdade, minha Marta, que se parece contigo? — Não sei. — Sim! Ouve-me: gostas que se perpetue o meu nome? — Sim. Para mim qualquer nome satisfaz. — Neste caso, ajuntou o barão com ênfase, chamar-se-á Armando de Calatrava. Passaram-se quinze dias. Marta quis, ela mesma, amamentar o filho; dizia que ela própria lhe dera a vida, por isso não consentia que outra lhe desse o leite, máxime estando ela forte e robusta. O barão, sempre condescendente, acedeu. Dois meses depois, a criança era batizada na capela do Castelo, seguindo-se pequena festa para a qual o barão convidara as mais íntimas pessoas de suas relações. No decorrer da festa, chegou um mensageiro com uma carta. Rasgando-lhe o envelope e, lendo o conteúdo, o barão empalideceu, embora a seu pesar. Marta, que estava perto dele, reparando na sua comoção, perguntou: — Armando, de quem é essa carta? — De quem há-de ser? — De Carlos. A baronesa experimentou um rude choque. — Dele? E que te diz nessa carta? — Toma-a e verás, respondeu o barão, entregando-lha. Ela pegou o papel e leu: "Querido irmão. Acho-me em situação bastante precária. "Se tu e Marta acreditassem no meu arrependimento, eu pediria para ser admitido novamente junto de ambos. "Ousarias negar-te, meu irmão, agora que o céu enriqueceu o teu lar com a vinda do teu primogênito ? "Espero ansiosamente a tua resposta. "Carlos de Calatrava". Terminando a leitura, Marta fechou os olhos e permaneceu muda, como se estivesse concentrada nalguma dolorosa lembrança. Armando, que a contemplava ansioso, atreveu--se a perguntar, embora timidamente: — Que pensas, querida? Ela abriu os olhos, sobressaltada, e olhando em volta de si, como a certificar-se de que não eram observados, respondeu com esta pergunta: — E tu? — Não me atrevo a dizê-lo. — Porquê? — Temo contrariar-te. — Não, meu Armando, jamais me contrarias. Conheço muito bem a nobreza da tua alma e a generosidade do teu coração sempre disposto a perdoar; mas acho, meu amigo, que não deves ser tão condescendente com ele, pois meu coração me diz que acabará sendo o instrumento da tua perdição! — Não te atemorizes, Marta! São apreensões vãs. Eu bem sei que devia mostrar-me severo para com ele, mas. .. é o único irmão e não posso deixá-lo abandonado de todo. Nossa mãe pediu-me, no seu leito de morte, que jamais o abandonasse e que procurasse guiar-lhe os passos pela senda difícil do bem. Jurei obedecer e devo fazê-lo. — Sim, respondeu prontamente a baronesa, mas ele sempre ouve os teus conselhos como quem ouve chover, e obedece às tuas ajuizadas instruções semeando o mal por toda a parte, destruindo tudo quanto toca... — Mas, se o deixo sem proteção, fará pior ainda; demais, é ainda novo. Quando adquirir mais idade e possuir mais experiência da vida, estou certo de que tomará juízo. — Não. esperes por isso, Armando; aí, o que há é que ele é a antítese da tua alma. Tu, todo amor, todo bondade; ele, todo perversidade, nem parece que o mesmo sangue corre nas veias de ambos. — Bem, querida Marta, concluiu o barão humildemente. Jamais me permitiria desgostar-te, máxime, podendo socorrê-lo sem necessidade de o termos junto de nós. — Isso não, exclamou ela abraçando-o. Se o teu gosto é que ele venha, seja benvindo! Perdoar--lhe, porém, ajuntou com firmeza, não posso; sinto que jamais o poderei, enquanto não se me apagar da mente a triste lembrança da pobre Helena. Sua sombra querida se interporá, sempre, entre nós dois. — Isso agora, enquanto o ato é recente. .. Mais tarde conseguirás esquecer. . . principalmente se chegares a convencer-te de que todos estamos sujeitos à lei da fatalidade e... — Nunca! Jamais me convencerei da realidade dessa tua teoria, meu Armando. Como? Então haverá almas condenadas a serem o ludíbrio, o escárnio das outras almas suas semelhantes?! Como ex- plicar, assim, a lei da igualdade que deve ser perfeita em todos os seus pontos, para que reine a harmonia na obra universal? — Sim, minha bela; todos, ao nascermos, já trazemos nosso destino assinado. Nossa trajetória pelo planeta já está preparada de antemão. Muitas vezes, somos nós próprios que traçamos o percurso a fazer; e, todavia, a lei de igualdade não deixa de ser feita em todos os seus pontos. Marta, não há efeito sem causa; por conseguinte, não deixa de ser a consequência, isto é, a resultante duma existência anterior. Helena, flor delicada, toda sentimento e poesia, quem sabe se não precisava passar pelos sofrimentos por que passou na sua breve encarnação? Quem sabe, também, se alguma falta por ela cometida, em alguma existência passada, maculava a sua alma? Certo é que, só no cadinho da dor, as almas se libertam das suas imperfeições. — Mas, se assim é, ela teria falido... — Certamente, pois matou-se, quando devia respeitar o dom da sua existência material.

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