Matar sem dó: retomando a ambivalência da caça, do abate e do consumo de carne nas terras baixas sul-americanas Felipe F. Vander Velden UFSCar Resumo As noções de pena e de dó são operadores comuns na imposição de certos limites relacionados à matança de animais no Brasil, seja na caça ou no abate de espécies domesticadas. Em vários casos etnográficos relatados, elas produzem efeitos no momento do abate de animais (domésticos e selvagens, de criação e de caça), e levam a uma cuidadosa economia de afetos e de posições (sobretudo etárias e de gênero) relativas ao ato de matar animais a fim de torná-los alimento. Em um certo sentido, Stephen Hugh-Jones, em artigo já celébre, propôs, empregando a ideia de um “mal estar moral”, um mecanismo algo semelhante de relação com o abate de animais de presa entre os caçadores indígenas amazônicos. Esta sugestão foi logo duramente criticada – pelo que seria projetar um “sentimentalismo” urbano contemporâneo sobre mundos ameríndios – por, entre outros, Descola e Erikson. Neste artigo, retomo a sugestão de Hugh-Jones ao olhar para o que parecem ser casos em que um mal estar moral não só efetivamente controla a matança, mas também orienta as relações entre humanos e animais em geral: o que também poderíamos compreender como a existência de uma certa sensibilidade, operada por meio de uma economia de noções similares às de pena e de dó entre povos indígenas e não indígenas, na Amazônia as também alhures. Discuto esta possibilidade a partir de certos fragmentos de reflexão dos Karitiana – povo de língua Tupi-Arikém composto por cerca de 320 pessoas residentes no sudoeste da Amazônia brasileira – sobre os (seus) animais de criação, aliadas a materiais etnográficos de outras paragens, indígenas e não indígenas. Avanço, aqui, a hipótese – ainda muito preliminar – de que a operacionalização dessas formas de controle afetivo- moral do abate e do sofrimento está vinculada à relação entre caça e criação/familiarização entre os grupos ameríndios, como uma das formas de tratamento de uma bastante difundida (talvez universal) aversão à morte e ao derramamento de sangue animal. Humanos e animais são unidos por vínculos originários (a mitologia o diz abundantemente); assim, para que entre eles a morte seja possível, é preciso que animais sejam tornados outros em relação aos humanos, que esse nexo originário seja obliterado, donde a separação entre relações do tipo caça e do tipo criação. Desta forma, o que poderíamos denominar provisoriamente de “piedade” – usada, aqui, em sentido genérico, para indicar as conexões profundas entre humanos e não humanos – funcionaria como uma fenda que se abre na relação, que se quer estável, entre a morte e a necessidade ou desejo de infligi-la: é, portanto, preciso matar sem piedade, sem dó, porque quando estas existem, não se mata, não se logra matar. Nesse sentido, a familiarização de animais dá livre curso àquilo que não deve, de maneira nenhuma, emergir entre caçadores e presas de caça, sob pena de torná-la impossível: o afeto, o reconhecimento mútuo, a partilha do sofrimento – e, afinal, a troca de perspectivas. Pode-se, enfim, caçar, matar, apenas porque tais afetos são conjurados, embora permaneçam insinuando-se nas múltiplas prescrições e restrições relativas ao derramamento de sangue animal nas terras baixas sulamericanas e alhures. [1] “Mas até onde recuam os registros históricos, os humanos expressaram ambivalência sobre a presença inerente da violência e da morte envolvidas em comer animais.” Jonathan Safran Foer, Comer animais. Meu ponto de partida nesta incursão, ainda muito preliminar, sobre certos mecanismos de controle afetivo-moral do abate de animais e sobre a circulação de formas de sensibilidade na relação entre humanos e animais entre povos indígenas nas terras baixas da América do Sul, é a narrativa, transcrita do caderno de campo de meu ex-aluno Fabiano José Alves de Souza1, em pesquisa entre os índios Pataxó que, deslocados do sul da Bahia, vivem hoje mais ao sul, na Reserva Indígena Fazenda Guarani, leste do estado de Minas Gerais. Tomo emprestadas as palavras dele: Eram os primeiros dias do mês de outubro de 2011. Eu estava na aldeia Imbirussu, (Carmésia, MG), acompanhando o cacique Romildo. Quando estávamos saindo da Mata da Racha, já em uma área aberta, descampada, ele viu uma cacinha de bambu (nome nativo), um roedor muito parecido com uma preá, porém, de tamanho maior. Romildo conseguiu capturar com as mãos o animal depois de uma intensa correria. Agachado, sentando sobre seus calcanhares, ele começou a bater com a ponta do facão na cabeça da caça, quando ele percebeu que o animal estava demorando a morrer. Desconfiado, Romildo ergueu a cabeça e me indagou se eu estava com dó da cacinha de bambu. Afirmando o que realmente estava acontecendo comigo, eu disse que estava com pena do bichinho. Balançando a cabeça, num gesto de insatisfação, ele começou a bater com mais força o facão na cabeça do animal e me disse: “esse bicho nasceu prá morrer mesmo, nasceu para ser comido mesmo, para servir de caça para nós. Não tem que ter dó”. Depois deste dia eu não mais fui convidado para participar das caças. Eu estava atrapalhando a morte dos bichos (grifos meus). Eventos como estes, nos quais se verifica uma cuidadosa economia de afetos e de posições (sobretudo etárias e de gênero) relativas ao ato de matar animais a fim de torná-los alimento, não são incomuns em várias regiões do mundo rural brasileiro, onde a interposição de noções de dó/pena – promovida, em geral, por mulheres e crianças 1 Registro meu agradecimento ao Fabiano ter me permitido utilizar este excerto de seus cadernos de campo. Muito mais a respeito do pensamento Pataxó pode ser encontrado em sua tese de doutorado (Alves de Souza 2015). [2] (mas também, note-se, de antropólogos) – entre homens e criaturas destinadas ao abate faz o animal “demorar a morrer” (Siqueira 2012: 21) ou “estraga a carne” (Dantas 2008, ver também Brandão 1999: 69-78). Tal fenômeno também se verifica na Amazônia, como neste caso, entre os Puruborá no centro do estado de Rondônia, de um cachorro, Bob, morto a pauladas pela dona porque insistira em devorar seus filhotes de pato no quintal. De acordo com Tarsila Menezes, outra ex-aluna (2016: 56, grifo meu): É interessante narrar a história do cachorro Bob, que morreu na tentativa de comer os patinhos do terreiro da única casa que os cria. A dona dos patos o matou com uma paulada (o mesmo que se usa para pilar) na cabeça. Conforme as Puruborá, o cachorro teve uma morte demorada porque a mulher que o matou estava grávida, e o bebê, ainda na barriga da mãe, teve pena do animal: “quando se mata com dó o bicho ressuscita”. Como consequência, a mãe da criança afirma que sua filha tem muito carinho pelos animais, não gosta de maltratá-los, e faz birra quando vê algum animal morto ou morrendo. Em todos estes casos – seja na caça, seja no abate doméstico – o sentimento de pena ou dó do animal, demonstrado por alguns indivíduos – mulheres, crianças e um etnógrafo – funciona como uma espécie de barreira contra o sofrimento imposto à vítima: o animal não deve sofrer (inutilmente e excessivamente), e sua morte deve ser rápida. Talvez essa ideia, aqui aplicada aos animais, derive da oposição, fartamente verificada no Brasil, entre uma morte bonita, tranquila e sem sofrimento, e uma morte feia, aquela “trágica, a patentear temores, pusilanimidade, pavor, a sentir dores cruciantes, com esgares, trejeitos” (Câmara Cascudo S/d: 591)2. Esta forma de controle afetivo-moral do abate e do sofrimento também poderia expressar um imperativo ético diante de uma vida que precisa ser tirada para que outras floresçam, dada a profunda implicação – reconhecida, por exemplo, entre os povos indígenas na Amazônia – da “morte na vida” (death in life) (Kohn 2013: 18). Não quero sugerir, evidentemente, que o que descreve o rural brasileiro explique tudo a respeito dos Pataxó em Minas Gerais ou aos Puruborá em Rondônia, ainda que mais e mais autores venham destacando os rendimentos teóricos de não se isolar as sociedades indígenas de seus vizinhos, demonstrando que as redes de relações práticas e 2 Estas mesmas considerações estão por trás das discussões a respeito do abate humanitário, conjunto de normas técnicas aplicadas à indústria da carne e destinadas a diminuir o desconforto e o sofrimento envolvidos na ação de matar. Os complexos fundamentos afetivo-morais – que afetam, portanto, a racionalidade da produção industrial – desse conjunto de normas são analisados, entre outros, por Vialles (1994), Dias (2009), Pachirat ( ), Perrota (2015), Stefanuto ( ) e Froehlich (2016). De todo modo, cuidar de animais é permitir sua boa morte (Law 2010: 61). [3] simbólicas vão, sempre, muito além das fronteiras das aldeias (Mura Iglesias Lima ). Conforme a etnologia contemporânea vem lutando para afirmar a oposição entre uma mais pura “indianidade” na Amazônia e uma “baixa distintividade cultural” dos povos indígenas no leste e nordeste brasileiro é ilusória: todos os índios produzem-se como índios o tempo todo (Viveiros de Castro 1999) e, no Brasil, “todo mundo é índio, exceto quem não é” (Viveiros de Castro 2006). A própria riqueza do material recolhido por Fabiano no interior de Minas Gerais é testemunho disso (Alves de Souza 2015). Minha intenção, aqui, é retomar algumas ideias propostas anos atrás por Stephen Hugh-Jones (1996), ao sugerir abordar a ambivalência no consumo de carne (daí meu título) nas sociedades indígenas nas terras baixas por meio de uma leitura paralela às noções ocidentais ligadas à matança de animais e à alimentação carnívora. Meu ponto aqui é como as noções como pena, dó, sentir (ou sentimento) ou sofrer (ou sofrimento) – como expressões populares que se aproximariam do que se denomina, nos círculos cultos, de compaixão ou piedade – podem emergir nos discursos indígenas sem que isso signifique uma projeção de sentimentalismos urbano-ocidentais sobre cosmologias indígenas (como quer Descola 1998 criticando a sugestão de Hugh-Jones) ou a emergência de “novas sensibilidades” com respeito aos animais no mundo contemporâneo vinculadas, necessariamente, ao distanciamento (espacial e simbólico) intencionalmente criado entre humanos e não humanos (Thomas 2001) e a posterior erosão desse mesmo fosso no tocante aos animais de companhia, os pets, tornados, ao que parece, cada vez mais próximos de nós (Kulick ) e, por esta razão, merecedores dos mesmos afetos que dedicamos aos nossos co-específcos humanos. O que eu quero sugerir, seguindo os passos de Hugh-Jones, é que matar animais (e, posteriormente, comer a carne do animal abatido) jamais parece ser ato isento de considerações morais e afetivas/emocionais, e que há uma circulação destas noções – dó/pena/sofrimento, ou noções nativas correlatas – que torna possível a matança ao radicá-las nos outros – mulheres, crianças e estrangeiros – liberando, assim, particularmente os homens caçadores (e matadores por excelência) deste fardo. Nesse sentido, a operacionalização dessas modalidades de controle afetivo-moral da matança e do sofrimento dos animais funcionaria, antes, como um operador simbólico das distinções de gênero e idade que tornariam possível o derramamento de sangue: o caçador tem que matar sem dó porque este mesmo afeto protege os animais dos excessos; manifestar qualquer vínculo afetivo implica, seguramente, na impossibilidade do abate. A própria circulação desses conceitos ou de conceitos similares parece indicar [4] uma sensibilidade possível no horizonte: aquela que é preciso obliterar para matar, e isso não apenas diante de animais domésticos ou familiares (aqueles mais próximos do convívio humano), mas também quanto aos animais predados nas atividades de caça na floresta, como bem ilustra o exemplo citado acima entre os Pataxó em Minas Gerais. No limite, a piedade sempre pode vir a se interpor ao ato, tornando-o impossível. A pouca atenção dispensada a esses estados emocionais pela antropologia, parece-me, está na raiz de uma certa naturalização da caça como atividade definidora não só da economia, mas também das masculinidades – e mesmo das indianidades – na Amazônia. * * * O evento vivido por Fabiano, assim como o sentimento – e, mais, os efeitos deste sentimento – experimentado por ele não são estranhos a muitos etnólogos em campo: recordemos Philippe Descola expressando seu desgosto em ter de atirar, pela primeira vez, em um bando de macacos que “zombava deles na copa das árvores”, encorajado pelos Achuar a estrear o rifle novinho adquirido especialmente para a pesquisa etnográfica (Descola 1998: 31); ou Paul Nadasdy (2003: 86), trêmulo e nauseado após matar pela primeira vez com as próprias mãos uma lebre branca, que resisistiu viva às várias tentativas desajeitadas do etnólogo-tornado-caçador. A mesma ambivalência – na forma da aversão – foi observada por Hugh-Jones (1996) entre seus filhos, pela primeira vez no alto rio Negro, diante da carne de animais que conheciam apenas dos zoológicos e livros infantis, ponto de partida para suas reflexões que nos mobilizam aqui. Em seu artigo de 1996, Stephen Hugh-Jones nota as similaridades, antes do que as diferenças, entre as atitudes quanto à morte de animais e ao consumo de seus corpos na Amazônia indígena e na Europa moderna: em ambos os contextos etnográficos, diz o autor, impera uma significativa ambivalência diante dessas práticas, um desconforto – velado ou obliterado, sempre, e esse é o ponto que nos interessará adiante – quanto ao fato de que a produção de toda a vida depende da destruição e da desintegração da vida (Hugh-Jones 1996: 126). Hugh-Jones elenca um conjunto bastante rico de evidências que apontam para uma problematização da matança de animais e do consumo de carne na Amazônia, mas seus dados, lidos em paralelo com estudos sobre o carnivorismo na sociedade ocidental – onde não parecem restar dúvidas sobre as profundas implicações simbólicas do [5] consumo de produtos de origem animal (Sahlins Vialles 1994; Fiddes 1991; Foer 2011) – , acabam por levá-lo à conclusão de que há muito em comum na forma como ameríndios e europeus veem a carne, significam e simbolizam a carne e se relacionam com ela, sobretudo quanto a uma má consciência manifesta em todo abate sangrento e consumo de animais (Hugh-Jones 1996: 131)3. Esta má consciência ou ambivalência estaria diretamente ligada, nas terras baixas da América do Sul, ao fato de que os animais são pessoas e à intimidade ou proximidade das relações que conectam humanos e não humanos (Hugh-Jones 1996: 134). Talvez em resposta antecipada às críticas de matriz estruturalista de Philippe Descola (1994 e 1998), Hugh-Jones (1996: 134) faz uma ressalva: a de que não está sugerindo que os povos indígenas sentimentalizam [are prone to sentimentalise] suas interações com os animais, e nem que suas atitudes para com esses seres sejam diretamente comparáveis aos modos de relação entre uns e outros no mundo contemporâneo. Meu ponto, contudo, é perguntar: é de sentimentalismo – no sentido de pieguice – que se trata? Ou de sentimento, no sentido muito mais produtivo – e não menos codificado – de afeto, daquilo que afeta? Os índios não podem ter compaixão ou piedade, não podem ser afetados pela percepção da proximidade ou da similaridade com seres outros? Não podem ter empatia, sendo mobilizados pela compreensão do sofrimento alheio? Não estarão esses afetos potencialmente sempre no horizonte das relações entre humanos e animais? É em torno dessas questões que circula o texto que se segue. De passagem, apenas desejo lembrar que desde Lévi-Strauss ( ) sabemos que sentimentos humanos conformam um código, uma gramática que prescreve e sanciona afetações individuais; nesse sentido, a crítica de Descola equivoca- se, me parece, ao apostar numa distinção entre intelectual e afetivo (entre estrutura e sentimento), alertando para a primazia do primeiro em relação ao segundo, e igorando, assim, o que dizia seu mestre (Lévi-Strauss ) a respeito da expressão etnográfica do pensamento selvagem em seu duplo aspecto, justamente, e invariavelmente, afetivo e intelectual. Ademais, ainda que a atenção às práticas de cuidado (care) sugira um movimento intelectual que se afasta de “versões racionais do humano” (Mol, Moser & 3 Entre estas evidências das questões colocadas aos povos indígenas pela necessidade de matar e comer animais está a conhecida conversão da carne de animais abatidos em vegetais inofensivos pelos xamãs Piaroa (Overing Kaplan 1975: 39). Note-se que a vegetalização também não é estranha às formas de consumo de corpos animais no ocidente: peixes, com frequência, tendem ao vegetal, o que fica expresso no vocabulário empregado nas relações fágicas com animais aquáticos: frutos do mar, coleta ou colheita de pescado (Bérard 1993). [6] Pols 2010: 15), deve-se reconhecer que o aspecto afetivo não se refere à sentimentos, ou a emoções românticas, mas a um conjunto de práticas enraizadas na vida real e que conformam uma economia de sentimentos ou do cuidado (Harbers 2010: 163). Assim, pode-se dizer que os sentimentos ou afetos referidos aqui estão entre as emoções e as estruturas, duplamente enraizados no intelecto e no afetivo (o que seria, talvez, o estofo da moral). * * * Algumas poucas evidências etnográficas apontam para a existência de afetos análogos ao que vou chamar aqui, por economia, de piedade com relação aos animais caçados na Amazônia e em outras paragens das terras baixas. Laura Rival (1996: 150) argumenta que, às vezes, certo animal pede por sua vida aos caçadores Huaorani (Amazônia equatoriana) sendo, desta forma, poupado nas caçadas; essas “relações pessoais”, de acordo com a autora, são estabelecidas por meio do contato visual, que tem o poder de “levar humanos à compaixão” (Rival 1996: 162, minha tradução). Rival fala em “compaixão” (compassion) ao insistir sobre a possibilidade da troca de olhares que garante aos Huaorani que ali, naquele corpo de macaco, há uma vida que deve ser poupada com base em laços interpessoais. Entre os Xukuru no agreste de Pernambuco, nordeste do Brasil, Clarissa Martins Lima (2013) documentou a ambiguidade envolvida na morte de animais entre domesticados e silvestres. No primeiro caso, os Xukuru – de maneira análoga ao caso dos marchantes seridoenses (no Rio Grande do Norte) descritos por Dantas (2016) – afirmam que, apesar de não possuírem alma, alguns animais domésticos são criaturas “abençoadas por Deus”, o que faz com que, nas palavras de uma informante da autora, “quem mata gado e ovelha não é feliz, não, que eles são abençoados” (Lima 2013: 135- 137). No caso dos animais selvagens a presença de alguma “força espiritual” pode ser detectada em uma presa em potencial que, ao contrário do que se espera, não foge à presença humana e encara o caçador de frente. Lima (2013: 137) conta o caso de um caçador, conhecido como Bacurau, que: “[...] na sua infância, costumava caçar. Mas parou quando, durante uma caçada, se deparou com um veado que ficou encarando ele. Nesse dia ele se deu conta de que poderia ser um sinal de Deus, ou mesmo algum parente falecido que estava ali, no corpo do animal, para lhe dar um recado”. [7] Caçadores ribeirinhos (não indígenas) na Reserva de Desenvolvimento Sustentável Piagaçu-Purus (Amazonas, Brasil) por vezes manifestam sentimentos semelhantes, especialmente dirigidos aos primatas (considerados “parecido com gente” ou “já ter sido gente”), mas não apenas: O apelo antropomórfico dos primatas é também evidenciado em diversos relatos dos moradores da RDS-PP e reflete experiências e relações afetivas pessoais que restringem o consumo de diversas espécies pelos entrevistados, como pode ser percebido nos seguintes relatos: “Atirei em um barrigudo uma vez, quando fui cacetar pra matar, ele colocava a mão de todo jeito, pra não matar, dava pena dele”; “Atirei numa macaca-prega prenhe, fiz o parto, era todinho uma pessoa... Me deu muita dó daquele bichinho” (Vieira & Shepard 2017: 48, meus grifos). O meu próprio material, proveniente de quinze anos de pesquisa entre os Karitiana, povo falante de uma língua Arikém, do tronco Tupi, e localizado no norte do estado de Rondônia (sudoeste da Amazônia brasileira)4, nada diz sobre os sentimentos envolvidos nas caçadas, exceto os temas gerais elencados por Hugh-Jones (1996): restrição quanto ao exagero, excesso ou falta de propósito no abate de animais, atitude circunspecta e respeitosa para com as carcaças, tratamento adequado dos despojos e as muitas sanções aplicadas pelos donos/mestres dos animais contra caçadores desavisados, excessivamente violentos ou mal-intencionados. Para além da sugestão de Hugh-Jones de que esses são mecanismos que apontam para o caráter ambivalente da matança e do consumo de carne nas terras baixas – mais do que formas de manejo ambiental ou de racionalização do acesso a proteínas – a relação dos Karitiana com seus animais domesticados (animais de criação, como dizem) parece-me indicar que as noções de pena/dó/sofrimento podem espreitar, também na Amazônia, as relações entre humanos e animais. Sofrer pelo animal parece estar no horizonte da reflexão dos Karitiana sobre suas relações com estes seres, e isso não é só assunto de mulheres e crianças, ou dos excessivamente sensíveis antropólogos. Estaríamos, assim, frente a um contexto em que caça e criação/familiarização seriam relações opostas no que tange ao 4 Os Karitiana somam cerca de 320 indivíduos, que habitam cinco aldeias, três no interior e duas fora da Terra Indígena Karitiana, com 89 mil hectares, e em processo de revisão de limites (lamentavelmente paralisado pela justiça federal em 2013). Para informações gerais a respeito deste povo, consultar Storto & Vander Velden (2005) e Vander Velden (2012). [8] sentimento: não há pena da presa na floresta, mas pode havê-la no caso daqueles seres comensais, que se criam nas aldeias e que é necessário, muito eventualmente, matar. Creio que a chave para a compreensão do que estou propondo aqui está nos processos de familiarização de animais, ou seja, nos mecanismos de transformação de animais em princípio estranhos em membros, em certo sentido, das famílias humanas “como filhos” – note-se a metáfora, que não é uma afirmação literal – , tal como dizem os Karitiana. Não tenho espaço para detalhar as múltiplas dimensões do fenômeno, algo que fiz mais aprofundadamente em outro lugar (Vander Velden 2012). Quero aqui, apenas, destacar um aspecto da consolidação do vínculo humano-animal entre os Karitiana, com especial foco nos cachorros, algo que nunca pude explorar detalhadamente até o momento. Atentemos para o que dizem alguns Karitiana sobre os cães, legião em suas aldeias, como é comum em outras comunidades indígenas no Brasil. Cachorros caçadores são preferidos porque “ajudam as pessoas”; no entanto, a caça oferece um risco considerável aos animais, fato que não só podemos acompanhar com relativa frequência no transcorrer dos dias nas aldeias, como se converte em tópico constante das conversas dos índios. Diz Gumercindo Karitiana: “Eu que não tenho cachorro, só gosto de cachorro caçador, para matar caça, pois ele ajuda as pessoas, mas criar por aí [sem razão utilitária?] eu não gosto, não, é muito cheiroso [fedido]. Tempo eu criava muito cachorro caçador, mas a pessoa sente muito quando morre, [porque] cachorro mata caça, e ajuda o pessoal, e cachorro também não vive muito, porque caça brava mata muito cachorro”. Não ter cachorros porque se “sente” sua morte, no jogo perigoso e imprevisível (ainda mais na Amazônia da circulação das perspectivas) entre predador e presa: esta é uma objeção comum que muitos caçadores Karitiana têm verbalizado para justificar que não se fazem mais acompanhar na mata por seus cães de caça. Mas esta capacidade de sofrer pela morte violenta de um animal estimado – porque útil, mas não só – pode aparecer na vida mais amena do cotidiano das aldeias, na forma de um sentimento de compaixão direcionado não a animais em particular, mas à situação dos cães em geral, sabidamente precária. Narra Antônio Paulo: “Eu não quero pegar mais cachorro, porque eles sofrem muito com fome, apanha. Eu não gosto de ver cachorro sofrer. Eu não quero, mas mulher pega assim mesmo.”. [9] Com o que concorda com seu filho Antônio José, adicionando um motivo frequente do sofrimento canino, o abandono temporário dos animais nas residências, quando as famílias se deslocam para as cidades: “Eu não quero mais cachorro, não tem mais, morreu tudo. O pessoal tem que sair da aldeia, aí cachorro fica sozinho, com fome, ninguém dá comida, sofre muito”. “Quando tem criação, sofre muito por causa de criação”, diz-se com frequência. Antônio Paulo diz que não gosta de ver os animais sofrerem, e Cizino diz ser “feia” a atitude de deixar os cachorros solitários na aldeia, com fome e sem cuidados. Isso leva à demonstrações dessa atitude que pode ser denominada de piedade, como a atenção dispensada pelo pajé Cizino a um gatinho que, na Casa do Índio de Porto Velho, teve uma das patas quebradas ao ser espancado. Os exemplos de atos de compaixão e expressões de afeto e preocupação para com animais entre os Karitiana poderiam ser multiplicados. Estaremos, aqui, diante da emergência de uma nova sensibilidade (cf. Thomas 2001) para com o sofrimento envolvido na vida ou na morte de cães e outros animais familiares? Estarão os Karitiana emulando a afeição que observam muitos não índios dirigirem a seus animais domésticos, evoluindo neste quesito, por assim dizer, da barbárie para a civilidade, como teria feito o ocidente (Thomas 2001)? Haveria, nisso, alguma influência da intensa penetração, tanto efetiva quanto discursiva, da pecuária na região norte de Rondônia, conduzindo os Karitiana a uma reconfiguração de suas relações com os animais nos moldes da fazenda, coisa que parecem fazer em outros domínios (cf. Vander Velden )? Estarão, por outro lado, os Karitiana reconfigurando os animais de presa por meio de novas relações com eles em função da difusão e penetração aceleradas dos discursos das várias denominações evangélicas com as quais o grupo têm contato desde meados dos anos de 1970, da mesma forma como os Ifugao convertidos ao Pentecostalismo nas Filipinas reconstituem os porcos por meio da reconfiguração de suas relações com estes animais e com os humanos em geral (Remme 2014: 140-141)? Ou, alternativamente, estarei eu mesmo projetando um sentimentalismo todo meu (se é que o tenho...) sobre os modos Karitiana de pensar e tratar animais, incorrendo, mais uma vez, no erro anti-estruturalista denunciado por [10]
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