S : UBJETIVIDADE E MATERIALIDADE , CIDADE ESPAÇO E TRABALHO Maria Luísa Magalhães Nogueira(cid:204) RESUMO Discutimos, no presente texto, a relação estabelecida entre a categoria espaço (considerado socio-historicamente) e a dimensão subjetiva dos diversos atores sociais que dele, necessariamente, se apropriam. Partindo da cidade, objeto privilegiado de nossa análise, buscamos, além de uma breve discussão sobre alteridade, indicar a articulação do espaço com a formação e consolidação de identidades. Para a discussão deste processo, tomamos, especialmente, a centralidade do trabalho nos novos arranjos urbanos. Entendemos que é de suma importância a refl exão sobre a relação espaço/subjetividade. A partir de uma ótica transdisciplinar, buscamos destacar, na cidade moderna, a questão da segregação e seu impacto subjetivo. Palavras-chave: espaço; subjetividade; trabalho; cidade. S : UBJECTIVITY AND OBJECTIVITY , CITY SPACE AND WORK ABSTRACT The paper discusses the relationship between the subjectivity and the space occuppied, as it is historically and socially appreciated. For the purpose of the analysis the “city” is the chosen object of our present study. Besides discussing alterity, by checking the changes in that relationship, this paper tries to point out how space creates and consolidates human identities and the centrality of work in the actual urban arrangements. It´s really important to think about the relationship between space/subjectivity. Through a transdisciplinary point-of- view, the aim of the present article is to discuss the issue of segregation and its subjective impact. Keywords: space; subjectivity; work; city. (cid:43) Universidade Federal de Minas Gerais. Mestre em Psicologia Social/UFMG; Doutoranda em Geografi a (IGC/UFMG). Professora do Departamento de Psicologia da UFMG. Rua Desembargador Torres, 37/302 - Bairro Caiçara- Belo Horizonte/MG - CEP. 31230-080. E-mail:[email protected] Maria Luísa Magalhães Nogueira “Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. - Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. - A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refl etindo. Depois acrescenta: - Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: - Sem pedras o arco não existe.” (CALVINO, 1990a, p. 14) ESPAÇO – BUSCANDO A MATERIALIDADE DA DIMENSÃO SUBJETIVA A constante produção e apropriação que o ser humano faz do espaço revela a importância deste elemento na constituição do humano: no espaço, homens e mulheres imprimem sua marca, desenvolvem relações de poder e de subsistência (proposta). Afi nal, o espaço toca as diversas esferas da vida cotidiana. Buscare- mos no presente texto colocar em relevo a importância do espaço para a compre- ensão da dinâmica social, como pudemos perceber no desenvolvimento de nossa pesquisa de mestrado (NOGUEIRA, 2004), cujo conteúdo apontou para essa dis- cussão.1 Para tanto, tomamos a cidade como objeto dessa refl exão, especialmente pela possibilidade dada pelo espaço urbano: a de revelar de forma explícita as contradições do jogo social e a de ser, por excelência, síntese do capitalismo. A cidade revela aos atores sociais uma dinâmica específi ca, como já discu- tia Simmel em 1902 no clássico texto “A metrópole e a vida mental”. A metrópole – cidade moderna, capitalista e ocidental – apresenta determinados padrões de pro- dução espacial, levando a seus habitantes valores, reordenação simbólica e repre- sentações referentes aos lugares que ocupam: lugares sociais e lugares espaciais.2 Assim, por meio da exploração do objeto espaço urbano, a cidade, buscamos colo- car em relevo a discussão sobre a relação espaço-dinâmica psicossocial. Neste sentido, iniciamos a discussão refl etindo a respeito de como a psicolo- gia pode, em diversos momentos, desconsiderar a categoria espaço como elemento imprescindível para a realização de uma análise da vida social. Isto é: como pode- mos compreender a dimensão subjetiva desconectando-a da realidade, tratando-a como algo desconexo – autônomo? Assim, o objetivo do presente texto repousa no esforço de contribuir à discussão sobre a práxis da psicologia, reforçando nosso compromisso político de não desconhecer a complexidade do humano, tomando, para tanto, a produção da subjetividade em relação à produção do espaço. Nossa crítica a uma certa psicologia se justifi ca pela compreensão de que o espaço defi ne, em primeira instância, a possibilidade da existência do ser humano e da produção dessas condições de existência. O trabalho, fundamento do huma- no, é condição da existência humana. Neste mesmo sentido, o espaço, como já o 70 Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho propôs Milton Santos (SANTOS, 1999), é a condição à ação objetiva no mundo. Neste processo, percebemos que a geografi a se coloca no centro de nossas ques- tões, a exemplo do que relata Michel Foucault acerca de suas pesquisas: [...] agora me dou conta que os problemas que vocês colocam a respeito da geografi a são essenciais para mim. Entre um certo número de coisas que relacionava estava a geografi a, que era o suporte, a condição de possibilidade da passagem de uma para outra. Deixei as coisas em suspenso ou fi z relações arbitrárias (FOUCAULT, 1979, p. 164). Entre outras contribuições, consideramos a geografi a humana de Milton Santos suporte adequado de nossa viagem a esses “lugares” pouco explorados pela psicologia. Desta forma, vejamos as premissas ontológicas que orientam o desenvolvimento do presente texto: 1. A “subjetividade” humana (FURTADO, 2002), compreende um processo de construção social, intimamente relacionado com as mudanças nos modos de organizar o território e atuar politicamente. Essa experiência é construída pela ob- jetivação, pela ação humana na natureza (no “espaço”), no processo socio-histórico – logo, dada pelo “trabalho” (em cada contexto específi co de produção); a subjeti- vidade é o processo de invenção de si, a força da invenção da vida, de experimenta- ção e apreensão particular e única do mundo, através do modo como cada sujeito se produz como um indivíduo único, em transformação constante, na experimentação cotidiana. São os processos de subjetivação produzidos ao longo da vida de cada um de nós, no encontro com o outro, nas formas de apropriação simbólica das expe- riências vividas (no par material/imaterial, indissociável) e de invenção do mundo, onde estão a cidade e a reinvenção constante de si mesmo; o devir. 2. Amparados na formulação marxiana da centralidade ontológica do “tra- balho”, reconhecemos o sentido ativo do trabalho (ANTUNES, 2000), seu lugar central na experiência de autorrealização do homem e sua dimensão político-trans- formadora. A atividade sensível humana é a maneira do ser humano inscrever e reconhecer sua marca humana, genérica e individual, no mundo; e, para tanto, o espaço é indispensável. É justamente por meio da atividade que se dá a indissocia- bilidade desta relação genérica e individual; da relação exterior, interior. 3. Esse indivíduo ativo, sujeito sócio-histórico, possui uma unidade especí- fi ca e em constante mudança, a “identidade”: um exercício processual constante de externalização do psiquismo que, de forma dialética, novamente sofre a internali- zação, agora carregando os novos elementos trazidos pelo encontro com o outro (BARROS; NOGUEIRA, 2007). Essa experiência só é possível pela vivência da “alteridade”, pelo encontro especular ao olhar do outro, tanto pelo reconhecimen- to, quanto pelos antagonismos aí construídos e negociados. Sociohistoricamente, o ser humano constrói as suas condições de existência e satisfaz suas necessidades humanas, sempre sociais, fazendo do outro a garantia de sua existência. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 71 Maria Luísa Magalhães Nogueira 4. O “espaço” não pode ser tomado por si mesmo, mas deve ser compreen- dido através do conteúdo a ele agregado pelos atores que de alguma forma ali ins- crevem a história. O espaço é social e não existe sociedade a-espacial (SANTOS, 1999); a história não se escreve fora do espaço. No entanto, a história também não pode ser tomada por si só, pois precisa ser entendida de forma indissociável, por meio de sua espacialidade. Em suma, percebemos que o processo psicossocial é atravessado por ex- periências simbólicas intimamente relacionadas com a esfera concreta, material e social: a “subjetividade” só existe enquanto materialidade – o que aqui entende- mos como “a materialidade da dimensão subjetiva”. Orientados por essa trajetória teórica, buscaremos trabalhar com o cotidiano da cidade, observando a apropriação do espaço, condição para as práticas sociais. Assim, entendemos ser necessária uma aproximação mais atenta dos signifi cados e desdobramentos do espaço, enquanto referência do acontecer, elemento essen- cial da vida cotidiana – merecedor de rigorosa atenção da psicologia. O ESPAÇO E A PSICOLOGIA O conceito de espaço é alcançado apenas após trilharmos um árido cami- nho: teórico e prático, transdisciplinar e histórico. Gostaríamos de explorar dois aspectos que nos auxiliarão neste percurso de compreender o conceito: primei- ramente, diante de sua difícil defi nição, devemos nos perguntar, afi nal: o que é espaço? Em seguida, considerando que por meio do espaço a existência humana é possibilitada, levantar apontamentos para a discussão de sua importância frente às propostas da psicologia. Afi nal, nossas categorias de compreensão do modo de vida humano são, necessariamente, atravessadas pela dimensão espacial. O modo de vida humano é, a priori, atravessado pela lógica espacial. Encontramos aí a refl exão que sustenta nossa proposta de discussão, nesta oportunidade, como bem aponta Boaventura de Sousa Santos (2000, p.197): Todos os conceitos com que representamos a realidade e à volta dos quais constituímos as diferentes ciências sociais e suas especializações, a sociedade e o Estado, o indivíduo e a comunidade, a cidade e o campo, as classes sociais e as trajetórias pessoais, a produção e a cultura, o direito e a violência, o regime político e os movimentos sociais, a identidade nacional e o sistema mundial, todos esses conceitos têm uma contextura espacial, física e simbólica, que nos tem escapado pelo fato de os nossos instrumentos analíticos estarem de costas viradas para ela mas que, vemos agora, é a chave da compreensão das relações sociais de que se tece cada um destes conceitos. Sendo assim, o modo como imaginamos o real espacial pode vir a tornar-se na matriz das referências com que imaginamos todos os demais aspectos da realidade. 72 Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho Tal contextura espacial nos leva a observar que a psicologia praticamente se ausentou quanto a uma leitura (imprescindível, contudo) sobre os processos de subjetivação que levassem em conta a dimensão espacial. E se a psicologia não for capaz de enxergar o sujeito considerado socio-historicamente, encontrará sua própria impossibilidade. Acabará por buscar compreender relações descontextua- lizadas, elevando uma psiquê sem corpo (sem história, sem materialidade), sem contexto, ao status de objeto de estudo, como tantas vezes temos, infelizmente, reconhecido nas ações dos psicólogos. Recorremos a Jurandir Costa na problema- tização dessa questão pois, apesar de seu texto se referir mais especifi camente à questão do consumo, suas idéias vão ao encontro de nossa discussão, posto que: [...] sentimentos sem expressão material é uma fi cção idealista desprovida de sentido. Experiências emocionais ou se exteriorizam em coisas e eventos extracorporais ou desembocam no beco sem saída da psicopatologia. Emoções são feitas de imagens e narrativas de caráter mental, mas também das propriedades que lhes são emprestadas por objetos e situações materiais: peso, cor, cheiro, som, altura, largura e profundidade. Não conhecemos criaturas humanas que não tenham parte de suas emoções extrovertidas nos objetos do ambiente. Imaginar um eu, uma consciência ou um inconsciente confi nados no ‘interior da mente’ ou ‘dentro’ dos limites do corpo físico é ir de encontro à mais corriqueira evidência. Todos temos relações emocionais com objetos, que, inúmeras vezes, são mediadores necessários à aproximação com o outro (COSTA, 2004, p. 18). Negligenciar a materialidade da dimensão subjetiva seria constituir, no dis- curso e na prática da psicologia, uma falácia. Tal deslize serviria à manutenção de uma dada psicologia, aquela que desconsidera o sujeito humano enquanto sujeito, o apreende como objeto e o perde em relações de poder, focando-se na manuten- ção de tais relações: adaptando o indivíduo à sua condição de desigual. Essas observações se baseiam na noção de espaço como produzido e apro- priado; não como elemento puramente físico, a priori. Isto é, a noção de espaço, com a qual trabalhamos, leva-nos a pensá-lo a partir do movimento que sobre ele e com ele os atores sociais realizam a construção de suas emoções e representações. Assim, o espaço deve ser considerado a partir de sujeitos sociais e de sua história que é, por sua vez, inscrita no espaço, no construído e no que se apresenta também pela invisibilidade. Rigorosamente, somos então orientados a pensar a subjetivi- dade também através da dimensão espacial. Ora, também não é possível construir uma análise do espaço “em si” – seria o mesmo que fazer uma análise do tempo. O espaço deve ser percebido “pelos sujeitos” que nele se movimentam, pela apro- priação que dele é feita. Desta forma “é o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social.” (SANTOS, 1994, p. 15). Entendendo a importância do espaço, nesta perspectiva, o compreendemos como um “sistema de objetos e sistema de ações”, vinculando-se necessariamente à atividade humana e aos produtos históricos dessa atividade. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 73 Maria Luísa Magalhães Nogueira Nota-se que a compreensão do espaço nos remete necessariamente ao trabalho: o espaço é um elemento fundamental desse complexo categorial, on- tológico, que é a atividade sensível humana visto que o espaço possibilita a “conexão materialística de um homem com o outro” como apontam Marx e Engels (1947, p. 18-19), conexão esta “sempre tomando novas formas”. Em outras palavras, voltando a Milton Santos (1978, p. 137): “o espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos objetos sociais tem tanto domínio sobre o homem, nem está presente de tal forma no cotidiano dos indivíduos” . A intro- dução da variável espaço em nossas leituras leva-nos a uma aproximação da re- alidade vivida, do vivido humano, do cotidiano (centro do acontecer histórico). Trabalhando com o espaço, somos conduzidos a uma perspectiva consistente da totalidade da questão social: O espaço como produto social, é sempre especifi cado por uma relação defi nida entre as diferentes instâncias de uma estrutura social: a econômica, a política, a ideológica e a conjuntura das relações sociais que dela resulta. O espaço portanto é sempre uma conjuntura histórica e uma forma social que recebe seu sentido dos processos sociais que se exprimem através dele. O espaço é suscetível de produzir, em troca, efeitos específi cos sobre os outros domínios da conjuntura social, devido à forma particular de articulação das instâncias estruturais que ele constitui (SANTOS, 1987, p. 81). No território, na apropriação do espaço, os lugares são defi nidos. No es- paço, os sujeitos sociais inscrevem sua marca. Sabemos, ainda, que esses ato- res (“nós”) são efetivamente marcados por esses lugares, de diferentes formas – denunciando uma relação dialética. Justamente, é a existência desses atores que atará os “nós” que ligam a dimensão subjetiva à materialidade do espaço e da história, que dá sentido ao mundo;3 e, na mesma medida, é pelo movimento de apropriação ativa do mundo, histórico, social, que o ser humano constrói sua subjetividade – como sujeito humano: histórico, social e ativo. Enfi m, por que é o espaço um objeto privilegiado de estudo das ciências so- ciais? Porque, como explica Milton Santos (1999) o espaço compreende a interre- lação de “um conjunto de objetos e de um conjunto de ações”, logo, uma categoria histórica: compreendendo tanto a forma quanto o conteúdo histórico, ao mesmo tempo, “forma e função”. A forma está ligada a uma imagem, a um mapa, a um de- senho: a distribuição dos objetos – como a fotografi a de uma favela, por exemplo. A função está ligada à ação, ao processo que moldou aquela paisagem denominada de favela – o trabalho, o processo histórico propriamente dito. Nota-se que essas duas esferas da dimensão espacial (forma e função) não podem ser dissociadas, de modo que uma dá sentido à outra, num processo constante e inesgotável. Ora, é o espaço condição, meio e produto da reprodução da sociedade, apresentando-nos a história humana – logo, a dimensão política – no espetáculo cotidiano e na forma da escrita dessa história na arquitetura da cidade, hoje. Podemos olhar a cidade aprendendo a ler em seu desenho, nas formas de nossos 74 Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho modos de vida, concretas-materiais, a lógica social que a engendra. A história está escrita na cidade, em sua arquitetura, em suas imagens e marcas, no que está explícito, exposto, e naquilo que é invisível e despercebido. Buscamos construir uma compreensão da vida social a partir da análise da lógica espacial: na própria escrita da cidade, na fl uidez das relações que se constroem a partir de um de- terminado lugar que, de forma dialética, determina esta fl uidez, pois “o homem não vê o universo a partir do universo, o homem vê o universo desde um lugar” (SANTOS, 1987, 81), o que faz toda a diferença. Ao olharmos a cidade, como aponta Milton Santos, percebemos que “cada homem vale pelo lugar onde está”4 – aí está a dinâmica urbana cotidia- na. A constante luta pela apropriação do espaço se perpetua e se mistura com as formas de produção, vemos assim que o espaço é um elemento decisivo no estabelecimento do poder. Lembremos que o poder é, ele mesmo, um lugar na relação social (ENRIQUEZ, 2001), ou seja, o poder não é nunca um atributo ou uma posse. Por isso, deve ser sempre reconquistado e precisa ser legitimado, nesta relação. Portanto, o espaço servirá como norma – na forma do território – para a relação de poder e seus confl itos. Caminhar por nossas cidades, nos leva a ler em seu cenário, nas formas de nossos modos de vida, o resultado de nossos confl itos (confl ito entre capital e tra- balho; confl itos que emergem nas negociações inescapáveis da diferença, como discutiremos brevemente): a naturalização das desigualdades sociais reafi rma a incompetência histórica/espacial na administração da relação igualdade/diferen- ça. Interessa-nos nessa dinâmica, o processo que no espaço urbano se inscreve cotidianamente, em muros simbólicos e reais, em trajetos, acessos, fronteiras e olhares. O espaço é usado como limite e determinação social. A necessidade de ordenação do território é uma das condições que funda o fenômeno social e a cidade é o lugar onde vão se dar essas práticas sociais, o lugar da concretude dos confl itos, da visibilidade do poder (sempre presente) e a invisibilidade do processo de dominação. Como vemos, a cidade é produto de lutas: trabalho social materializado, objetivado – produto de uma organi- zação das relações sociais, da negociação política das diferenças. Nela, pode- mos conhecer a dimensão política da vida coletiva, ineliminável: a cidade é um fenômeno de origem político-espacial; nela encontramos a expressão física e dinâmica da estruturação das diferenças e, segundo Gomes (2002, p. 13), “poderíamos mesmo dizer que esta é uma de suas condições fundadoras”. O tecido urbano é uma obra histórica que se produz continuamente, revelando as contradições das relações históricas que ali se movimentam – contradições pro- duzidas a partir do desenvolvimento desigual das relações sociais que atingem efetivamente a dimensão subjetiva. CIDADE: ENCONTROS E DESENCONTROS A desqualifi cação social possui variadas formas de expressão, dentre elas podemos apontar como as mais frequentes – e efi cientes – o trabalho desqua- lifi cado e a segregação espacial, gerando o não reconhecimento ao ator social. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 75 Maria Luísa Magalhães Nogueira Quem sofre esse processo (como a estigmatização) vê sua condição de sujeito “esvaziada”, enquanto é colado a um lugar desvalorizado, sofrendo, por meca- nismos ideológicos vários, pela responsabilização exclusiva de sua condição, de forma que todo o processo social que engenha aquela determinada condição é desconhecido e/ou ignorado. Nossa leitura não desconsidera, naturalmente, as operações de resistência dos grupos desqualifi cados, mas não poderemos, neste momento, nos ater a essa esfera. Ao localizarmos esse sujeito no jogo social ampliado, percebemos que, in- sistentemente, essa condição de desqualifi cação serve àqueles que, em posições favoráveis, aproveitam-na exatamente para o reforçamento de seus lugares so- ciais, valorizando sua identidade de pertencimento em contraponto àquela desqua- lifi cada. Deste modo, a relação de alteridade reforça unicamente uma identidade valorizada: nós, a norma, os dominantes; eles, diferentes, anormais. Nesse mo- vimento, se mantém o jogo econômico e de poder. Tal manutenção é construída a partir da relação de desigualdade própria do mecanismo do modo de produção capitalista, agindo pela necessidade da exploração que gerará o lucro, bem como pela via simbólica, a partir do mecanismo de oposição e negação do outro, não apenas diferente como desigual. Nota-se a cristalização e valorização de determi- nados lugares de pertencimento. Vemos assim que a precarização de determinados vínculos sociais vai servir à defi nição de outros. Obriga-se o sujeito a ocupar um lugar social que o desqualifi ca, porque esse lugar ocupado por esse sujeito tem a função de permitir que outro sujeito ocupe um outro lugar (valorizado). Bader Sawaia (2000) compreende esse quadro a partir da “dialética inclu- são/exclusão”, denunciando a desigualdade constitutiva da nossa sociedade que oferece diversos obstáculos a uma maioria impedida de movimentar-se no espaço público. Esses, incluídos de forma perversa (e não simplesmente “excluídos”, à margem) têm seu afeto e desejo desvalorizados, impedidos que estão de manifes- tar sua produção cultural e, mesmo, de apropriar-se da produção material, cultural e social valorizada em sua época. A partir da experiência de dor originada em questões sociais (contextualizadas em cada época histórica), o sujeito é colocado numa condição de inferioridade e subalternidade, sendo considerado como in- capaz e inútil como parte da sociedade, como também já apontou Castel (1999). Neste quadro, a nosso entender, encontram-se as favelas brasileiras. Recebem, historicamente, um olhar de desqualifi cação e não reconhecimento, de segrega- ção espacial imposta, como aponta Teresa (1997, p. 174): Nas cidades em que os enclaves fortifi cados produzem segregação espacial tornam-se explícitas as desigualdades sociais. Nessas cidades, as interações cotidianas entre habitantes de diferentes grupos sociais diminuem substancialmente e os encontros públicos ocorrem principalmente em espaços protegidos e entre grupos relativamente homogêneos. O próprio tipo de espaço vai contribuindo para que os encontros públicos sejam marcados por seletividade e separação. Na materialidade dos espaços segregados [...] fronteiras sociais vão sendo rigidamente construídas. 76 Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 Subjetividade e materialidade: cidade, espaço e trabalho Como percebemos, mais do que o não reconhecimento, impõe-se à favela a condição de bode expiatório de toda a cidade,5 responsabilizam-na pela sua existência e transformam a violência de que são vítimas em um atributo exclusi- vo e generalizado de favela; este cenário mostra-se como expressão evidente do processo de desqualifi cação social a que seus moradores são sujeitos, construin- do um quadro de sofrimento social (GAULEJAC, 1997), onde a viabilidade da sobrevivência, material e simbólica, exigirá o desenvolvimento de diferentes e delicadas estratégias de busca de reconhecimento, tais como a saída pela cultura e pela arte (NOGUEIRA, 2004), pelo adoecimento (CARRETEIRO, 2000) e até pela criminalidade (ZALUAR, 1994; SALES, 2005). Assim, a cidade se vê como vítima do surgimento das favelas e se coloca à parte de tais localidades, insistin- do numa separação que é falsa, desconhecendo e negando as questões presentes no processo de surgimento e crescimento das favelas e o uso que se faz de sua existência: que é tanto material quanto subjetiva – como mão de obra barata e, ainda, como público incapaz de consumir o que é valoroso, e que se torna de valor exatamente porque é escasso. A cidade se mostra um lugar privilegiado para o estudo de tais questões, confi gurando-se como expressão ostensiva da desigualdade, historicamente ins- crita em sua arquitetura, assim como do antagonismo político e simbólico, locali- zado nas relações de classe, bem como nas relações intragrupos, pois nem sempre detonadas por processos econômicos. Podemos apontar diversos antagonismos grupais estabelecidos dentro da mesma classe social. Somos, pelas vias da cida- de, levados a refl etir sobre a esfera da alteridade: A abertura para o outro que habita em nós é uma condição para a tolerância, pois uma das bases da intolerância é o mecanismo defensivo de projetar sobre o outro – meu semelhante na diferença – tudo aquilo que eu rejeito em mim mesmo. Se não quero admitir o ‘mal’ e a contradição em mim mesmo, vou projetá-los no outro, e eliminar no outro aquilo de que não quero saber, em mim. E, quanto mais próximo for o próximo, mais ele serve de suporte para esse mecanismo de defesa [...] (KEHL, 2004, p. 122). A CIDADE – O MAIS SIGNIFICATIVO DOS LUGARES? O conceito (e a experiência) de polis desenvolvido pelos gregos, cujo fun- damento implicava a criação do espaço público (a ágora) e da convivência demo- crática como forma política (possibilidade de negociação das diferenças), é hoje ironicamente desvestido da relevância da convivência entre as pessoas, milhões, na mesma cidade, empurradas a práticas de segregação e medo frente ao espetá- culo da violência urbana. Ao mesmo tempo, o termo cidadania se desgasta nos discursos ideológicos e perde-se na prática desse nosso determinado sistema, o capitalismo, de produção de nossas condições de existência. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009 77 Maria Luísa Magalhães Nogueira A inauguração da experiência política já nasceu, vale lembrar, sob a égide da segregação, da desigualdade, já que cidadãos gregos não eram todos os gregos – ainda que não seja possível estabelecer um paralelo com a questão da cidadania contemporânea, já que os modos de subjetivação ali engendrados são rigorosa- mente distintos do que hoje é produzido. Contudo, ao que indica o cenário urbano, o processo experimentado e conduzido por nós hoje na esfera política, que é toda a cidade, reitera uma conjuntura de manutenção da desigualdade. Perguntamo- nos, a partir da leitura de Alba Zaluar (ZALUAR; ALVITO, 1999), se a palavra e a persuasão perdem lugar para a força e a violência, hoje, na cidade moderna. O que movimenta a presença constante do medo, a “fala do crime” (CALDEIRA, 2000)? A quem interessa esse medo? E a violência? É a violência urbana um espetáculo? Um efeito colateral? Um “atributo” das classes sociais vulnerabili- zadas? Será que segregação e participação social podem conviver lado a lado na construção de nossa história política? Tem a cidade a vocação de favorecer os encontros? Ou os desencontros? São os desencontros formas de encontro? Não temos a pretensão de explorarmos todas essas questões, mas al- guns desses pontos podem ser, com certa facilidade, discutidos, a saber: a vio- lência, a política, a exclusão e os desdobramentos de tais questões no âmbito psíquico. Os apontamentos para essas questões, e suas respectivas respostas, estão no texto da cidade. Assim, vemos que a violência aparece com maior intensidade e recorrência nos discursos sobre a cidade hoje: ora como causa de graves problemas, ora como consequência de outros – sempre como um espetáculo a ser visto, ou evitado.6 As narrativas de crime são um tipo de narrativa que engendram um tipo específi co de conhecimento. Elas tentam estabelecer a ordem num universo que parece ter perdido o sentido. Em meio aos sentimentos caóticos associados à difusão da violência no espaço da cidade, essas narrativas representam esforços de restabeler ordem e signifi cado. (CALDEIRA, 2000, p. 28) Não poderemos analisar os diversos elementos que se relacionam na ma- nutenção e funcionamento da violência e do respectivo espetáculo que é feito dela, todavia não nos furtamos a colocar em relevo, para a sua compreensão, a questão da desigualdade estrutural de nosso sistema de produção que interdita a possibilidade da “reciprocidade” necessária à boa administração das diferenças intrínsecas aos seres humanos, como sugere Gilberto Velho (2000). O espaço é condição e convite à ação, de acordo com o pensamento de Milton Santos (1999). E o espaço é também limite a essa ação. Hoje, esses limi- tes tocam os processos de “inclusão perversa” (SAWAIA, 2000).7 Em que pese a percepção atual da cidade – o caos, a violência, o mal-estar generalizado, a fragmentação e a exclusão – localizamos a gênese desta representação nestes pro- cessos contraditórios. As leituras que focam uma fragmentação da cidade geram práticas que reforçam essa desigualdade: estratégias, geralmente imperceptíveis, 78 Fractal: Revista de Psicologia, v. 21 – n. 1, p. 69-86, Jan./Abr. 2009
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