32º Encontro Anual da Anpocs GT 27: Para onde vai a teoria social contemporânea? Você sabe com quem está falando quando fala consigo mesmo? Margaret Archer e a teoria das conversações internas Frédéric Vandenberghe Tradução de Gabriel Peters 1 Em Structure, Agency and the Internal Conversation (2003), Margaret S.Archer, a decana do realismo crítico, conclui de modo bem sucedido suas reflexões sobre a cultura, a estrutura social e a agência com uma investigação empírica do processo mediador que estabelece a conexão entre o mundo da vida e o sistema. Através de entrevistas em profundidade sobre as conversações que os indivíduos pesquisados mantinham consigo mesmos, ela ilustrou como projetos pessoais são formados e como estes projetos mediatizam o exercício de influências sistêmicas restritivas e capacitadoras sobre os agentes. O livro sob análise constitui o quarto episódio dos Archers1, uma impressionante série de obras na qual a abordagem sócio-teórica morfogenética é apresentada como uma alternativa realista à teoria da estruturação2. Nos dois primeiros livros, que podem ser conjuntamente tomados como a contrapartida polêmica à apresentação triádica da teoria da estruturação por Giddens (em Novas regras do método sociológico, 1976; Central problems in social theory, 1979; e A constituição da sociedade, 1984), Archer se apóia no funcionalismo marxista de David Lockwood e no realismo crítico de Roy Bhaskar para desenvolver uma sofisticada teoria morfogenética da emergência, reprodução e transformação de sistemas culturais e estruturas sociais. Nos dois livros seguintes do sexteto, os quais podem ser considerados como uma réplica prolongada a Ways of being, de Rom Harré (outra trilogia, composta de Social being, 1979; Personal being, 1983; e Physical being, 1991), ela se volta para o problema da agência humana e analisa como os seres humanos desenvolvem suas identidades pessoais e sociais na medida em que perseguem seus objetivos e preocupações últimas em projetos de vida mais ou menos coerentes e factíveis. A emergência do dualismo analítico Margaret Archer tem um problema – o problema da agência e da estrutura. Há mais de vinte e cinco anos, ela tem trilhado seu próprio caminho de resolução dos problemas de como pensar a cultura, a estrutura social e a agência e de como conectá-las sem redução ou “conflação”. Para construir sua própria solução, ela precisou, entretanto, realizar primeiramente um trabalho de limpeza do terreno deixado por seus predecessores. Nos primeiros três volumes do quarteto, uma ofensiva vigorosa é lançada contra as tendências reducionistas da teoria social 1 “The Archers” é o nome da mais popular radionovela da Inglaterra (protagonizada por uma família de classe média na vila ficcional de Ambridge), que vai ao ar cinco vezes por semana desde 1950. 2 A série será composta, ao final, de seis livros. O quinto foi Making our way through the world (2007a). 2 contemporânea. Revisitando os debates micro/macro que opuseram individualistas, coletivistas e dialéticos desde os anos 50, a teórica de Warwick rastreou sistematicamente tendências conflacionárias e criticou com vigor a teoria da escolha racional, os estudos culturais e a teoria da estruturação por cometerem, de um modo ou de outro, a “falácia da conflação”3. Individualistas metodológicos e teóricos da escolha racional como Max Weber, Karl Popper e Raymond Boudon, que resolveram o problema da relação entre estrutura e agência concebendo a primeira como um efeito agregado de ações individuais, apresentaram uma imagem excessivamente voluntarista da sociedade e foram culpados da “conflação ascendente” (upwards conflation). Se os individualistas explicam (e, assim fazendo, dissolvem) a sociedade como uma repetição de ações individuais, culturalistas e estruturalistas como Emile Durkheim, Talcott Parsons ou Louis Althusser tendem a conceber as ações individuais como meras emanações de estruturas sociais. Eles cometem a falácia da reificação e são culpados da “conflação descendente” (downwards conflation). Estruturacionistas como Peter Berger, Thomas Luckmann, Anthony Giddens e Pierre Bourdieu, que vêem a agência e a estrutura como dialeticamente implicadas e mutuamente constitutivas, cometem o erro da “conflação central”. Ao invés de articularem a agência à estrutura, eles dissolvem as diferenças entre ambas, com o resultado de que sua inter-relação não pode mais ser investigada. Incansavelmente, livro após livro, Margaret Archer tem exposto as tendências conflacionárias da teoria da estruturação. Apesar de suas críticas, Archer não é uma pensadora negativa. Ao mesmo tempo em que critica Giddens obsessivamente, ela avança uma teoria alternativa da constituição da sociedade capaz de superar não apenas a oposição entre agência e 3 N do T: A despeito da estranheza do termo, a tradução de “conflation” por “conflação” me parece a mais fiel aos propósitos teórico-metodológicos de Margaret Archer, sobretudo em face do fato de que as alternativas possíveis “redução” e “elisão” são explicitamente tomadas pela autora como de uso mais restrito (o primeiro termo designando as conflações “ascendente” e “descendente”, enquanto o segundo se refere ao pecado da conflação “central”). Dessa forma, a noção de “conflação” é a única capaz de fazer referência à sua tentativa de criticar, em bloco, todas as abordagens teóricas que negligenciam o caráter ontologicamente estratificado da realidade social, inclusive perspectivas sintéticas explicitamente não-reducionistas como as de Giddens e Bourdieu: “Basicamente, conflacionistas rejeitam a natureza estratificada da realidade social ao negar que propriedades e poderes independentes pertençam tanto às ‘partes’ da sociedade quanto às ‘pessoas’ no seu interior. (...)Na conflação ascendente, os poderes das ‘pessoas’ são tomados como orquestradores das ‘partes’; na conflação descendente, as ‘partes’ organizam as ‘pessoas’. (...)Entretanto, ...há uma terceira forma de conflação que não subscreve de modo algum o reducionismo. Há a conflação central, que é a-reducionista, pois insiste na inseparabilidade entre as ‘partes’ e as ‘pessoas’. Em outras palavras, a falácia da conflação não depende do epifenomenalismo, em tornar um nível da realidade inerte e assim redutível. O epifenomenalismo não é o único modo de destituir as ‘partes’ e as ‘pessoas’ de propriedades e poderes emergentes, autônomos e causalmente eficazes. Qualquer forma de conflação tem as mesmas conseqüências. Assim, a conflação é o erro mais genérico e o reducionismo uma mera forma assumida por ela” (Archer, 2000: 5-6, grifos da autora). 3 estrutura, mas também os defeitos da teoria da estruturação. A principal falha da teoria da estruturação consiste em sua rejeição da emergência e da superveniência ontológicas. Embora Giddens reconheça que as práticas podem resultar em importantes conseqüências não- intencionais da ação, sua ontologia das práticas desautoriza explicitamente a tese da emergência de um sistema relativamente autônomo e dotado de poderes causais que são irredutíveis e temporalmente anteriores às ações de indivíduos e grupos. A Professora Archer rechaça o teorema da dualidade de agência e estrutura, optando, ao invés disso, por uma concepção estratificada da realidade que não elide as diferenças entre os estratos sistêmico e interacional da sociedade, mas, ao contrário, reconhece a autonomia relativa dos sistemas culturais e das estruturas sociais, ao mesmo tempo em que distingue ambos das práticas do mundo da vida que os reproduzem ou transformam. Esta estratégia dualista não nega que o exercício dos poderes causais dos sistemas culturais e estruturas sociais seja sempre mediado pela agência humana (sem agência: sem sistema), mas, com vistas à elucidação da inter-relação entre estrutura e agência, separa analiticamente os dois estratos, mantendo-os constantes. Graças a este truque metodológico, o mundo da vida e o sistema, bem como as relações entre ambos, podem ser seqüencialmente analisados, por assim dizer, em câmera lenta. Quando não mais se assume que a agência e a estrutura ou cultura são mutuamente constitutivas e operam ao mesmo tempo, pode- se examinar suas inter-relações, verificar se a cultura tem maior peso do que a estrutura (ou vice- versa) e examinar como seus poderes causais são mediados pela agência humana. O ciclo morfogenético Diferentemente de Giddens, que é um pensador eclético e um teórico oportunista, Archer é uma pensadora de tipo mais sistemático que tece cuidadosamente uma série de conceitos fundamentais (e.g, dualismo analítico, seqüência morfogenética, estratificação sociedade/agência, etc.) e permanece resolutamente ligada a eles. Desconfiada de ondas e modas, a grand lady da teoria social britânica desenvolveu sua própria abordagem através de uma síntese teórica que integra densamente as complementaridades concomitantes entre a teoria de sistemas morfogenéticos de Walter Buckley, o marxismo funcionalista de David Lockwood e o realismo crítico de Roy Bhaskar em uma teoria social morfogenética unificada. Ainda que as idéias do dualismo analítico e da seqüência morfogenética já houvessem sido formuladas e colocadas em 4 bom uso em Social origins of educational systems (1979) - uma análise comparativa, desenvolvida ao longo de 800 páginas, de políticas educacionais na França, Inglaterra, Rússia e Dinamarca -, seriam necessários, entretanto, mais quatro livros para que a teoria morfogenética da mudança social, cultural e pessoal fosse apresentada em detalhe. Desde cedo, durante sua estada no Centro de Sociologia Européia de Bourdieu, Archer havia adquirido a forte convicção de que, para se analisar apropriadamente a emergência, reprodução e transformação de sistemas culturais e estruturas sociais, é preciso concentrar-se sobre a dinâmica entre o sistema e as interações socioculturais. Tomando de empréstimo alguns insights do estudo cibernético de Buckley a respeito dos mecanismos retro-alimentadores de “desvio-amplificação” que impulsionam a mudança sistêmica, ela decompôs essa dinâmica em uma série de ininterruptos ciclos morfogenéticos que envolvem condicionamento sistêmico, interação sociocultural e elaboração sistêmica: a configuração particular do sistema (no estágio T1) condiciona as práticas do mundo da vida (T2) que buscam reproduzir ou transformar o sistema, levando, eventualmente (T3), a uma nova elaboração do mesmo, que será contestada e modificada em um segundo ciclo, e daí em diante. Durante sua presidência da Associação Internacional de Sociologia (1986-90), Margaret Archer expandiu a abordagem morfogenética de modo a transformá-la em uma teoria geral da cultura, da estrutura e da agência. Em Culture and agency (1988), o primeiro e talvez o melhor livro do ciclo, ela constrói um complexo, embora poderoso e elegante, modelo analítico da mudança cultural, modelo em larga medida influenciado pela tentativa teórica de David Lockwood em casar o estrutural-funcionalismo com a sociologia do conflito. Perfazendo uma exploração de todas as permutações possíveis entre a “integração social” e a “integração sistêmica”, ela explica a morfogênese do sistema cultural em termos da disjunção entre as relações de contradição e complementaridade entre as “partes” do sistema, de um lado, e as relações de cooperação e conflito entre as “pessoas”, de outro. Quando as contradições entre as idéias do sistema cultural se combinam aos conflitos sociais do mundo da vida, a morfogênese acontece; no caso oposto, a morfostase é mais provável. Se Culture and Agency pode ser considerado uma brilhante tentativa de desenvolver os insights do artigo seminal de Lockwood em uma grandiosa teoria pós-estruturacionista da mudança cultural, Realist Social Theory (1995), seu sucessor, se inspira no realismo crítico de Bhaskar para dar profundidade ontológica à teoria morfogenética. Mais uma vez, Archer 5 demonstra suas admiráveis habilidades analíticas, mas agora o modelo morfogenético é elaborado para desenvolver uma caracterização robusta das relações dinâmicas entre sistemas culturais (relações lógicas entre idéias), estruturas sociais (relações internas de primeira, segunda e terceira ordens entre posições) e agentes humanos. Archer argumenta que os sistemas culturais podem influenciar as estruturas sociais e vice-versa, mas ambos só podem exercer tal influência indireta e mediatamente, ao estruturarem as situações de ação através de condicionamentos restritivos e capacitadores. A força dos últimos depende, objetivamente, da posição social dos agentes e, subjetivamente, de seus projetos, os dois estando relacionados até certo ponto pela “causalidade do provável” (Bourdieu) que ajusta projetos a possibilidades. Quando indivíduos e grupos agem em situações particulares para defender seus interesses específicos e realizar seus projetos, eles reproduzem ou transformam as condições estruturais e culturais com as quais se defrontam, mas, nesse processo, são eles mesmos transformados, passando de agentes involuntariamente posicionados a atores sociais e pessoas individuais (morfogênese dupla). Em seguida à análise da morfogênese estrutural, Archer investiga a morfogênese da agência em Being Human (2000), o terceiro e talvez o mais pessoal dentre os livros do ciclo. Em sintonia com os princípios fundamentais do realismo crítico, ela confere poderes causais à agência que não podem ser deduzidos dos (ou reduzidos aos) poderes causais da sociedade e da cultura. De modo a garantir que o ator não seja engolido pela sociedade ou engolfado pela linguagem, ela desenvolve uma teoria da agência humana que destaca os aspectos não-sociais da humanidade. Conferindo prioridade à prática diante da linguagem e da sociedade, ela desenvolve um retrato seqüencial da constituição de nossas identidades em que o sentido de self (selfhood) emerge da consciência, a identidade pessoal emerge do sentido de self e a identidade social emerge, por fim, da identidade pessoal. Contrapondo-se ao retrato construtivista do self discursivo de Rom Harré, Archer argumenta, com Jean Piaget e Maurice Merleau-Ponty, que, mesmo antes da aquisição da linguagem e portanto independentemente desta, a “diferenciação” do self em relação ao mundo ocorre por meio do seu engajamento corpóreo com este. Uma vez que um senso contínuo de self seja adquirido na primeira infância, a formação da identidade pessoal é iniciada como uma busca de autenticidade que dura toda a vida. Na esteira de Charles Taylor e Harry Frankfurt, a teórica realista argumenta que nos tornamos quem somos através da deliberação reflexiva a respeito de nossas “preocupações últimas”. O que nos define, em última instância, qua pessoas é aquilo a respeito do que mais nos preocupamos e que importa 6 genuinamente para nós. Archer afirma que todos nós temos necessariamente três preocupações – bem-estar físico, competência performativa e auto-estima4 – e que é através de nossas conversações internas que ordenamos tais preocupações, definimos nossa visão da “boa vida” e, assim, adquirimos uma identidade pessoal autêntica que seja unicamente nossa. Enquanto a auto- identidade é o alfa e a identidade pessoal o ômega da vida humana, a identidade social intervém entre ambas como um aspecto da identidade pessoal que expressa quem somos como pessoas na sociedade. É neste ponto na estrada do auto-desenvolvimento que a “guinada lingüística” ocorre e a história da transformação morfogenética do agente individual em um ator social pode ser contada (como uma sub-história da morfogênese da estrutura). Primeiramente, o ser humano é um agente (bourdieusiano) que ocupa involuntariamente uma posição social definidora de suas oportunidades de vida. Na medida em que se torna consciente dos interesses que compartilha com outros membros de sua classe, o agente é transformado em um agente corporativo (tourainiano) que transforma a sociedade de tal modo que ele, a esta altura já um ator social capaz de assumir papéis, possa não apenas ocupar e personificar o papel social que assume, mas também personalizá-lo de acordo com as suas preocupações últimas. A mediação da meditação Levando mais adiante a morfogênese dupla da agência e da estrutura, o quarto episódio dos Archers está ocupado unicamente em especificar como o poder causal de estruturas sociais e sistemas culturais é mediado através da agência. A principal tese de Strucuture, Agency and the Internal Conversation estabelece que as deliberações reflexivas por meio das quais os agentes sociais delineiam e ordenam suas preocupações últimas, constituindo um projeto existencial e pessoal com o qual se comprometem, assumem a forma de uma conversação interna. Esta 4 As três preocupações estão relacionadas às três ordens da realidade com as quais temos inescapavelmente de lidar como seres humanos: as coisas da ordem natural, os artefatos da ordem prática e as pessoas da ordem social. No entanto, dado que Archer define a identidade pessoal em termos do compromisso com preocupações últimas e diante de seu forte interesse na religião, pode-se perguntar se a ordem transcendente não deve ser introduzida explicitamente como uma ordem distinta (ao invés de contrabandeada para a ordem prática). É exatamente isto que acontece em Transcendence. Neste livro sobre o realismo crítico e Deus, Margaret Archer, Andrew Collier e Douglas Porpora saem coletivamente do armário religioso e introduzem Deus como um mecanismo gerativo não- observável que não apenas cria e sustenta o universo a cada momento, mas também se revela ao ser humano e transforma interiormente aquele que encontra e experimenta o amor divino: “Para nós [três], Deus é o alfa e o ômega, o início e o fim...Deus é o fundamento último ou verdade mais profunda de todas as coisas e, assim, de todos os seres. Em Deus, a realidade encontra sua totalidade coerente. Existencial e essencialmente, Deus é o fundamento de todos os fundamentos, Aquele que torna possíveis todas as possibilidades” (Archer et.al, 2004: 25) 7 meditação do self pensativo constitui o mecanismo mediador que conecta os poderes causais da estrutura à agência. Estruturas sociais e sistemas culturais exercem seus poderes causais estruturando a situação de ação através de influências limitadoras e habilitadoras, mas, na medida em que a ativação destes poderes causais depende dos projetos existenciais que os atores forjam in foro interno (sem projetos: sem restrições ou oportunidades), pode-se concluir que os atores mediam ativamente seu próprio condicionamento cultural e social. Reformulando a tese nos termos do estruturalismo gerativo de Bourdieu, poderíamos afirmar que a conversação interna intervém entre o habitus e o campo. Como resultado, a reprodução da sociedade torna-se uma realização dos próprios agentes. Os atores são, de fato, determinados, mas apenas na medida em que determinam a si mesmos. O livro está dividido em duas partes: a Parte I, na qual o argumento teórico da conversação interna é desenvolvido em e através de uma discussão do pragmatismo americano (James, Peirce e Mead), e a Parte II, a análise empírica que explora a natureza e as formas da deliberação reflexiva dos agentes. A análise das trilhas sonoras da conversação interna revela três modos distintos de reflexividade e três posturas concomitantes em relação à sociedade, consistindo em respostas diferentes ao condicionamento social. Invertendo conscientemente os retratos sociológicos tradicionais sobre o assunto, Archer abre a parte teórica do livro com a afirmação de que a vida privada é uma pré-condição da vida social: “Se os seres humanos não fossem reflexivos, não poderia haver algo como uma sociedade” (p.19). Antes de poder levar a cabo sua crítica aos construtivistas sociais, entretanto, nossa distinta teórica social tem primeiro de estabelecer a existência da vida privada e rechaçar retratos behavioristas e cognitivistas que buscam exorcizar o “fantasma (da introspecção) na máquina”. Por meio de um desvio pela filosofia analítica da mente (não do espírito), ela argumenta que dificilmente pode-se negar a existência de deliberações reflexivas ocorrendo no interior da mente, bem como que estas só são acessíveis a partir da perspectiva da primeira pessoa. Em acordo com a crítica do empiricismo de Bhaskar, ela substitui o critério perceptual de existência pelo critério causal e avança sua principal tese: “Deliberações reflexivas possuem poderes causais, isto é, poderes intrínsecos, que nos habilitam a monitorar e modificar a nós mesmos, e poderes extrínsecos, que permitem que mediemos e modifiquemos nossas sociedades (p.46). 8 Uma vez demonstradas a interioridade, a subjetividade e a eficácia causal de nossas deliberações reflexivas, o próximo passo consiste em mostrar que estas deliberações introspectivas assumem a forma de um diálogo interno em que deliberamos com nós mesmos a respeito de nossas preocupações últimas e forjamos nossa identidade pessoal. Para passar da introspecção à conversação interna, a teórica social britânica estuda o pragmatismo estadunidense e emprega a abordagem semiótica do self desenvolvida por Peirce, de modo a desenvolver sua própria abordagem morfogenética da comunicação intrasubjetiva. Enquanto Peirce é celebrado como uma figura canônica, James é considerado como uma figura de transição e Mead descartado como um externalista que teria desperdiçado o legado de Peirce ao socializar e colonizar o self. Nesta leitura triangular do pragmatismo, James aparece como aquele que sugeriu inicialmente que observamos e monitoramos a nós mesmos não olhando para nosso interior, mas “ouvindo a nós mesmos”. Entretanto, James conceitua o pensamento como um monólogo, não como um diálogo em que falamos, ouvimos e respondemos a nós mesmos. Peirce corrigiu essa falha e conceituou as deliberações internas como “um diálogo entre diferentes fases do ego” em que este se dirige ao seu antigo self como um Mim e invoca seu futuro self como um Você. Enquanto o Ego pesquisa criticamente seus hábitos e suas disposições sedimentadas do passado para responder, de um modo pré-arranjado, a dadas circunstâncias, ele se projeta no futuro e imagina um Eu contrafactual como um Você futuro capaz agir de outra forma e superar, assim, as repetições do passado. Utilizando mais uma vez a seqüência morfogenética, Archer formaliza essa conversação interna como uma infinita repetição de um processo trifásico básico em que o self pré-existente condiciona as atividades dialógicas do Eu conversacional, o qual molda e elabora, por sua vez, o Você do futuro. Através destas discussões internas que temos com nós mesmos, tomamos decisões por meio do auto-questionamento, clarificando nossas crenças e inclinações, diagnosticando nossas situações, deliberando a respeito de nossas preocupações e vislumbrando projetos existenciais que definem quem realmente somos. “Em termos cotidianos, examinamos nossos contextos sociais, perguntando e respondendo (falivelmente) a nós mesmos a respeito da melhor forma de alcançarmos os objetivos que nós mesmos determinamos, em circunstâncias que não são de nossa escolha” (p.133). A perpétua discussão interior chega a uma conclusão provisória quando as diferentes partes do self alcançam um consenso interno a respeito do curso projetado de ação que melhor expresse a identidade autêntica do sujeito, mas que também seja viável à luz de determinadas circunstâncias. Na 9 medida em que estas deliberações internas a respeito do curso de ação articulam as preocupações últimas que definem a identidade pessoal do sujeito às circunstâncias objetivas que têm de ser levadas em conta, caso o projeto de uma vida pretenda ser bem sucedido, a conversação interna integra efetivamente os projetos subjetivos e as circunstâncias objetivas em um modus vivendi factível, o qual pode ser considerado como a conexão viva entre estrutura e agência. Até agora tudo bem, não fosse por George Herbert Mead. Ainda que o modelo da conversação interna entre o Eu, o Mim e o Você que Archer extraiu habilidosamente de uma discussão de Peirce se assemelhe à caracterização da socialização que encontramos em Mead, ela reconstrói, entretanto, sua teoria da identidade pelo desempenho generalizado de papéis como uma anti-teoria hiper-socializada da mente que deveria ser rejeitada a qualquer preço, caso não se pretenda desperdiçar o modelo peirciano da conversação interna. No espaço de umas poucas páginas (pp. 78-92), que considero como a parte mais fraca deste livro de resto notável, Mead é duramente atacado como um “externalista inflexível” e um “conflacionista descendente” que entendeu tudo errado. Sua concepção da mente seria tão extensamente social que simplesmente não haveria lugar para a interioridade. A conversação interior a respeito da qual ele fala não seria um diálogo que se tem consigo mesmo, mas com a sociedade, assim como o seu Mim seria, na verdade, um Nós. O resultado seria uma teoria da intersubjetividade que não pode conceber a conversação interna como intrapessoal. Ainda que Archer esteja certa quando caracteriza o interacionismo simbólico como uma teoria da intersubjetividade, penso que ela o rejeita e o negligencia em seu próprio prejuízo. Poderíamos inclusive inverter a perspectiva e avaliar a teoria morfogenética da identidade pessoal “do ponto de vista de um behaviorista social”. Por conseguinte, seria preciso avançar duas críticas. Em primeiro lugar, a conversação interna retratada em sua teoria é demasiado interna. Archer não apenas passou ao largo da “guinada lingüística”, mas, como resultado, também perdeu a conexão com teorias mais hermenêuticas da identidade pessoal e da autenticidade que são bastante similares à dela em intenção. Ao subestimar o papel da intersubjetividade e da linguagem, ela perdeu a oportunidade de analisar a conversação interna como uma narração do self e perceber que é através da auto-narração de suas histórias de vida que os atores ordenam suas preocupações e tornam suas vidas coerentes. A narração é aquilo que dirige e “fornece uma trama” à conversação interna. Para entender adequadamente como a identidade pessoal é formada, deve-se compreender que a conversação interna toma a forma de uma narração, 10
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