Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade (Mapping the theoretical latin-american discourse on youth) Rosangela Barbiani* Resumo – Os percursos e os enfoques dos estudos sobre juventude, hoje, percorrem a trilha das transformações que se operam na vida em sociedade, “farejando” tendências, mas, sobretudo, procurando compreender ou explicar esse caleidoscópio de nuances e perspectivas que se abrem à leitura da forma de ser e de viver dessa parcela significativa e instigante do planeta: os jovens. Todo o conhecimento que se dá na ação, ou seja, analisar e interpretar ao mesmo tempo o mundo em que se vive, implica um processo lento e nebuloso de estabelecer algumas “certezas”, no limiar de muitas dúvidas e imprecisões. Neste estudo, situamos o que tem sido produzido (no âmbito acadêmico) sobre juventudes, no marco da sociedade latino-americana, a partir da análise de algumas publicações de autores representativos deste campo temático. E assim também se configuram os objetivos deste artigo: um mapeamento preliminar das produções latino-americanas, cujo recorte temático procurará explorar as “regularidades” dos discursos, ou seja, identificar o repertório-tópico que esses autores têm construído para compreender, mas, ao mesmo tempo, fundamentar o estudo e a pesquisa sobre a temática juventude(s). A análise bibliográfica das produções procurou evidenciar as principais “trilhas” e “territórios” que os autores têm explorado e descoberto sobre esse tema, historicamente e socialmente posto em segundo plano. Observou-se que, mesmo na diversidade de áreas, os discursos acadêmicos de procedência antropológica, sociológica e da educação transitam em campos teóricos e temáticos comuns, talvez na busca de estabelecer-se um quadro teórico que configure a juventude como categoria sociológica e política dotada de estatuto próprio. A tentativa de superação de antigas dicotomias na abordagem e no tratamento analítico sobre as culturas juvenis, acentuando o caráter complementar e interdisciplinar dos saberes e campos no entendimento da juventude, também floresce como princípio explicativo para essa tendência “homogeneizadora” observada nas produções. Palavras-chave – Juventude. Produções teóricas. América Latina. Abstract – The passages and the approaches of the studies on youth today cover the track of the transformations that operate in the society life, searching for its trends. And specially, looking for the understanding and for the explanation of this mosaic of nuances and perspectives that opens to the reading of the living and behavior of this significant and instigated part of the planet: the youth. All the knowledge given by the action is to analyze and to interpret at the same time the world where we live. This implies a slow and misty process to establish some “beliefs”, in the threshold of many doubts and inaccuracies. In this subject, we point out what has been produced (in the academic scope) on youths, in the landmark of the Latin American society, from the analysis of some publications of representative authors of this thematic field. Thus also the objectives of this text are configured: a preliminary mapping of the Latin American productions, whose thematic clipping will explore the “regularities” of the Artigo recebido em 30.03.2007. Aprovado em 29.06.2007. * Professora do Curso de Serviço Social da UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil. Assistente Social, Mestre em Serviço Social, Doutoranda em Educação/UFRGS. E-mail: [email protected]. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 139 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade speeches, that is, to identify the topical repertoire that these authors have constructed, but at the same time to base the study and the research on the theme of youth (s). The bibliographical analysis of the productions aimed to socially evidence the main “tracks” and “territories” which the authors have explored and discovered on this subject historically and socially placed in second plain. It was observed that even in the diversity of areas, the academic speeches of anthropologic, of sociological and of educational origin transit in common theoretical and thematic fields, perhaps searching to establish a theoretical picture that configures the youth as a sociological and a political category endowed with proper statute. The attempt to overcome old dichotomies in the approach and in the analytical treatment on the youthful cultures, with emphasis to the complementary and to the interdisciplinary character of the knowledge and of the fields in the understanding of the youth, also flourishes as a clarifying principle to this homogeneous trend observed in the productions. Key words – Theoretical youth. Productions. Latin America. Iniciando o trabalho de “campo”: a demarcação do território (universo) estudado A produção latino-americana sobre a temática juventude(s), que compôs a amostra deste estudo,1 demonstra uma vitalidade de autores e países, num intercâmbio intenso de pesquisas e produções: são argentinos publicando na Colômbia, mexicanos publicando no Brasil, brasileiros publicando no Chile, encontrando-se muitas vezes uma mesma obra sendo publicada em dois ou mais países. Chamou-nos a atenção o protagonismo de países como o México, Chile, Colômbia e Argentina e, na mesma medida, o reduzido número de autores brasileiros compondo esse cenário, no estudo dos fenômenos juvenis majoritariamente urbanos. Há também a utilização de referenciais europeus2 (Espanha, França e Itália), incorporados pelos autores, provavelmente pela identificação não só teórica, mas política, que os mesmos suscitam à análise da realidade latino-americana, contribuindo para a formação de uma rede “global” densa e de qualidade. A totalidade dos artigos analisados é de origem acadêmica, ensaios e relatos de pesquisa tendo como apoiadores a sociedade civil (ONGs e organismos internacionais) e as universidades públicas. São obras atuais, tratando o cenário de transição dos séculos XX e XXI, totalizando 15 textos (alguns organizados em livros) de autores de nacionalidade brasileira, argentina, chilena, mexicana e colombiana. Não houve nenhuma preocupação quantitativa em demarcar 1 Esse ensaio foi elaborado a partir das contribuições da disciplina: Identidades Juvenis em territórios culturais contemporâneos, ministrada pela Profa. Dra. Elisabete Garbin, no PPGEDU/UFRGS/ 2004/1, na qual entramos em contato com a literatura que serviu de base a este estudo. 2 Os autores mais citados foram: Maffessoli, Ariès, Melucci, Bourdieu, Pais e Giddens. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 140 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade essa amostra; optamos pelo critério de “saturação” dos dados, assegurando uma representatividade de autores por procedência geográfica. Complementamos a amostra de autores, consultando obras já consideradas “clássicas”, suas citações e bibliografias, como também rastreando os principais sites e produções neles socializados nos países da América Latina.3 A análise de um discurso que se diz plural: mapeando as “bandeiras” e as “tribos” intelectuais Apesar da diversidade de expressões e iniciativas em particularizar o debate, observamos a recorrência a um campo comum de signos lingüísticos por meio do qual os autores e suas obras criam suas condições de diferenciação e, ao mesmo tempo, conformam uma determinada identidade (comunidade) teórica aos estudos sobre juventude(s). Os “S” encabeçam a lista das regularidades identificadas: pensar a juventude de hoje em suas múltiplas determinações e expressões obriga a todos a pensar e a falar no “plural”. Essa “regra” é tributária do campo que introduziu a necessidade de ressignificação dos estudos e teorias sobre juventudes: os estudos culturais. Não obstante à ênfase presente aos atributos culturais, nos textos, encontramos a segunda regularidade discursiva: mesmo em se tratando de “multiplicidades”, há de se considerar o contexto sócio-histórico nos quais os jovens criam e recriam modos de vida, ou seja, a afirmação da perspectiva que conceitua a juventude nos marcos de uma dada condição juvenil. Grande parte das argumentações que justificam essa ênfase resgata um “certo olhar sociológico” nos estudos sobre juventude que “alguns” estudos culturais tendem a relegar ou suprimir. Essas regularidades demarcatórias nortearam a análise das obras, possibilitando a construção de duas categorias nas quais os textos foram situados/classificados: a discussão sobre a centralidade da juventude no contexto societário contemporâneo e a constituição do campo “culturas juvenis”, capaz de abrigar a complexidade da qual essa problemática se reveste. 3 A relação dos sites e referências completas se encontra no final deste artigo. Países como Chile, México, Argentina têm sites mantidos por organismos governamentais, inclusive na produção de livros, periódicos e encontros nacionais e internacionais. No Brasil destacam-se os sites da Universidade Federal Fluminense e os mantidos pelas ONGs: Ação Educativa e Projeto Juventude. A iniciativa de criar uma rede latino-americana de estudos sobre a infância e a juventude, protagonizada pela UNESP (Marília), parece estar em consolidação, considerando a estrutura e volume de informações de seu site. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 141 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade 1 – A discussão sobre a centralidade da juventude, nos cenários societários do presente, vem “colada” às inúmeras questões identitárias desta categoria, seus paradoxos semânticos e ideológicos, ora situando o jovem com o sujeito político, ora como sujeito social, cultural e até mesmo como sujeito passivo, frente aos interesses dos segmentos dominantes. Ocupam espaço significativo as reflexões críticas acerca da forma como o Estado vem gerindo as políticas públicas,4 no tensionamento com as necessidades e direitos desse segmento social. 2 – A designação “culturas juvenis” comparece nos textos como o “guarda-chuva” possível e conciliador das diferentes perspectivas de encarar e definir a juventude em suas diversas manifestações e expressões. Aqui reside a possibilidade de uma “chave-explicativa” e estruturadora de saberes que venham a constituir e legitimar a categoria juventude(s) como campo do conhecimento, dotado de um estatuto epistemológico e ontológico próprio. A partir destes eixos, apresentaremos as principais contribuições dos textos, na intenção de esboçarmos um mapa conceitual deste caleidoscópio teórico. A centralidade da juventude em nossa cultura: um fenômeno local-global? Após a segunda guerra mundial, a juventude passa a ocupar crescente lugar de destaque nos diversos campos: na ciência, no Estado, na Igreja, no mercado e na mídia. Neste período se consolida um discurso jurídico, um discurso escolar e uma florescente indústria, reivindicando a existência dos jovens como sujeitos de direito e como sujeitos de consumo. Pela primeira vez ofereciam-se produtos de consumo exclusivos para os jovens Reguillo (2003a, p. 105). Muitos autores discutem e se posicionam frente a esta questão: Peralva (1997), Ariès (1986), Soares, Meyer e Fischer (1996). Os jovens reagem e comparecem no cenário social com os signos da contestação: os lost generation e os beatniks expressavam o descontentamento com a irracionalidade do capitalismo, desumanização e frivolidade. Os hippies manifestavam modelos alternativos de sociedade (Valenzuela, 1998). Atualmente, o perfil “político” da juventude mudou e seu perfil demográfico, no continente latino-americano, vem apontando a dimensão expressiva do fenômeno juvenil: ainda vivemos a “onda jovem”; nossa população é majoritariamente juvenil, sendo um dos 4 O tema juventude(s) e políticas sociais comparece em muitas produções brasileiras (Sposito, Marília Pontes; Castro, Mary Garcia Abravovay) e chilenas (Abad, Miguel). Apesar da atualidade e pertinência dessa temática, inclusive como “regularidade discursiva”, seu devido tratamento extrapola os limites deste ensaio. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 142 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade setores mais vulneráveis pelo empobrecimento estrutural. Por outro lado, essa “massa” populacional é um nicho de mercado potencial e promissor, crescendo o interesse das indústrias culturais na sua exploração e em sua consolidação como “sujeito juvenil”. Na sociedade globalizada econômica e culturalmente, entretanto, já não é possível ou suficiente fazer simples comparações de época. A centralidade da juventude nesse contexto é discutida (mais do que requerida) à luz da crítica às posições tradicionais e extremistas que ora situam os jovens como a redenção da humanidade, ora como a ameaça ou desvio à ordem social posta. A noção de centralidade é construída pelos autores não como uma espécie de apologia “ao ser jovem”, mas na trama que tece, ao mesmo tempo, desigualdades sociais e diferenças culturais. Assim, fundamentam-se as argumentações (presentes em todos os textos) de que a condição histórico-cultural da juventude não se oferece de igual forma para todos os integrantes da categoria estatística “jovem”. Nessa perspectiva, os conceitos de juventude(s) confirmam a diversidade cultural e social, conforme esta ilustração: Os jovens não são uma categoria unívoca. São uma categoria construída culturalmente; não se trata de uma essência e, em tal sentido, a mutabilidade dos critérios que fixam os limites e os comportamentos do juvenil estão necessariamente vinculados aos contextos sócio-históricos, produto das relações de força em uma determinada sociedade (Reguillo, 2003, p. 104). Os textos nos conduzem à crescente complexificação da temática à medida que exploram as dimensões identitárias e existenciais dos jovens, nas relações com o mundo adulto e com a esfera societária. Encontramos, neste âmbito, o desdobramento do pressuposto anterior, configurando a terceira regularidade: a definição do que seja a juventude é insuficiente para englobar o ser jovem. Como “chaves explicativas”, os autores vão introduzindo as noções ou conceitos de sujeito e de condição juvenil. Para explicá-los, a fórmula se complementa na mediação com a categoria consumo. Por diversos caminhos metodológicos,5 os autores demonstram como se constrói socialmente a condição juvenil, em suas dimensões sociais e em suas dimensões culturais (Margulis e Urresti, 2000; Serrano, 1998; Dayrell, 2003; Valenzuela, 1998; Reguillo, 2003; Feixa, 1999). Esse consenso se dissolve na ênfase que cada autor atribui a esse binômio. A 5 Os autores exploraram as conexões dos jovens com os movimentos musicais, midíaticos e de políticas públicas. Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 143 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade exemplo dos primeiros autores acima citados, a juventude é uma condição constituída pela cultura, mas que tem, por sua vez, uma base material vinculada com a idade, com a facticidade que essa categoria encerra. O “estar no mundo” também é “atravessado” pelas condições de classe, gênero, território, etnia e geração e nas formas como cada uma delas se expressa hoje. A juventude deve ser tomada com um conjunto social diversificado, perfilando-se diferentes tipos em função de seu pertencimento de classe social, situação econômica, interesses e oportunidades ocupacionais e educacionais (Castro, 2002). Para Sposito e Carrano (2003), há diferença entre condição juvenil (modo como é significado este ciclo de vida) e situação juvenil (percursos desta condição juvenil em seus diversos recortes). Dayrell (1998), nesse sentido, reafirma a inexistência de um único modo de ser jovem nas camadas populares, ainda que a diversidade dessas manifestações tenha como base as condições sociais (classes sociais, de gênero e de territórios). Os códigos culturais (etnias, identidades religiosas e valores) também ocupam espaço importante na condição juvenil. Na perspectiva cultural, ser jovem é um modo de sentir relacionado com o movimento, a mudança e a capacidade de experimentação frente à vida. Essa forma de estar no mundo utiliza mecanismos próprios e apropriados de comunicação. A música para os jovens, por exemplo, independentemente de seu estilo e das “tribos”, é muito mais que um acessório de consumo ou de moda. É, de fato, um instrumento de comunicação com o mundo. Através da música, os jovens falam, opinam, criticam e sugerem acerca de política, religião, regras sociais, etc. (Valenzuela, 1998). É nesse processo, onde tempo e movimento adquirem uma “roupagem” própria, que os jovens assumem/conquistam (ou não) a condição de sujeitos “juvenis”. Essa noção nos remete à ação e à experiência dos jovens em cenários, práticas, mercados, políticas que o mundo adulto convencionou chamar de esfera pública, espaço de exercício de cidadania(s). Os textos são diversos na caracterização desse sujeito: sujeito político (Reguillo, 2003b); sujeito social (Feixa, 1999; Dayrell, 2003; Valenzuela, 1998); sujeito de direitos (Sposito e Carrano, 2003); como modelo cultural (Peralva, 1997; Serrano, 1998). E advertem para a correlação de forças existente, no sentido das convocatórias e cooptações do discurso dominante ao consumo capitalista, transformando os jovens em objetos do mercado. Autores como Chmiel (2000), Margulis e Urresti (1998), Serrano (1998) e Reguillo (2003a) trazem importantes inflexões na análise das formas como o consumo modula as sociabilidades juvenis. Os modelos juvenis aproximaram-se aos modelos de consumo dos países dominantes, especialmente o “estilo” estadunidense (Valenzuela, 1998). Essa aparente Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 144 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade padronização de necessidades e valores alimenta o mito da “igualdade de oportunidades”, de participação plena na sociedade, ainda que venham de procedências sociais extremamente diversas. Assim, todo o jovem tem as mesmas condições de se tornar um cidadão. O fetiche do juvenil pela via do consumo é denominado por esses autores de juvenilização (ou juvenização), fenômeno onde a juventude é processada como motivo estético, ou como objeto publicitário e sua conversão em mito mass mediático contribui à evaporação da história acumulada no corpo e na memória (Peralva, 1997). Essa “fórmula” produz o “bom filho genérico do sistema”, o herdeiro desejável à la neoliberarismo triunfante (Margulis e Urresti, 1998, p. 17). Alerta Chmiel (2000, p. 101): “Vivemos na hora dos feelings: já não existe nem verdade nem mentira, estereótipo nem invenção, beleza nem feiúra, senão uma paleta infinita de prazeres, diferentes e iguais”. E ainda, citando Finkielkraut: “A democracia que implicava o acesso de todos à cultura se define agora pelo direito de cada um para a cultura de sua escolha (ou a denominar cultura a sua pulsão do momento)”. Para Serrano (1998), diante da oferta cultural contemporânea, o consumo se apresenta como uma nova forma do “ser coletivo”, pois nele se encontram os sentidos de pertencimento e identidade. Em outra direção, estão os posicionamentos enfáticos na argumentação de que, mesmo na particularidade do ser jovem, a forte influência do contexto social gera determinados modos de viver a juventude. Referindo-se, por exemplo, às dificuldades de afirmação desse sujeito juvenil no mundo do trabalho e dos compromissos de mercado, Pais (2001) indica o surgimento da “geração ioiô”, que se vê compelida a retornar à casa/família de origem, por não conseguir assumir-se autonomamente. Nesta mesma direção, Carrano (2002) “batiza” a “geração canguru” referindo-se àquela parcela significativa de jovens que não conseguem (ou não querem?) deixar a casa e a vida que os constituiu como “filhos”. Advém das diferenças entre os autores na hierarquização e no “peso” atribuído ao social ou ao cultural na constituição do ser jovem a sua regularidade: as bases materiais de existência e co-existência dos jovens condicionam a forma como os grupos sociais vivem a sua juventude (condição social). O condicionamento, entretanto, não determina uma única forma de sentir e viver de um mesmo estrato social. Os autores que partilham da premissa de que a forma de viver e representar o vivido varia de acordo com o contexto e “território” sócio-histórico e cultural vão desenvolver uma categoria de importante valor heurístico: a(s) moratória(s). Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 145 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade O “pano de fundo” deste conceito é a concepção de que a sociedade de classes, e as disparidades sociais, políticas, étnicas, raciais, migratórias marcam profundas desigualdades na distribuição de recursos, com os quais a própria natureza que condiciona o jovem em cada setor social se altera. Nesse sentido, muitos autores referem que a “juventude” está quase reservada para os setores médios e altos, que podem acessar a educação superior e a moratória em toda a plenitude do termo. No conjunto de autores estudados, Margulis e Urresti (2000) são os que desenvolvem com maior amplitude e criatividade essa categoria. Os autores definem dois tipos de moratória: a moratória vital (e não só social como dizem os estudos), isto é, o plus, o crédito temporal que depende da idade, é um fato indiscutível. A partir daí começa a diferença de classe e de posição no espaço social, o que determina o modo em que se processará posteriormente. As demais possibilidades, que incidem no modo de ser dos jovens, configuram a moratória social (a capacidade de acesso e consumo do tempo (livre) para ser jovem, entrando “em cena” as questões de gênero, geracionais, étnicas, de território e, no âmbito local, as institucionais e políticas). Numa perspectiva histórica, os autores, a exemplo de Castro (2002, p. 18), redimensionam a categoria geração: [...] quando a idade é processada pela história e a cultura, temos o tema gerações. Alude à época em que o indivíduo é socializado. “Gerações de realidade”. Cada época tem sua episteme. Ser integrante de uma geração distinta significa diferenças no plano da memória social. Castro chega a afirmar o duplo significado da geração: um corte (um período em uma trajetória de vida) e um tempo, um ethos político, econômico e cultural. Em suas conclusões, esses autores, ao aproximarem os condicionamentos sociais aos culturais, se alinham às demais produções, configurando outra regularidade discursiva: a juventude não é só um signo nem se reduz aos atributos “juvenis” de uma classe. As modalidades sociais de ser jovem dependem da idade, da geração, do crédito vital, da classe social, do marco institucional (das instituições) e do gênero. Há mais possibilidades de se ser “juvenil” quando se é rico e homem. Mas, mesmo entre os pobres, é possível viver essa condição, através do acesso a outras modalidades, que não ao juvenil massmediatizado, nas suas relações com o bairro, com a família, com as instituições locais, com os avós, filhos, etc. Nesse sentido, ainda que as formas de desterritorialização estejam reconfigurando a sociedade contemporânea, necessitamos nos sentir pertencentes a algum grupo, em um processo de identificação, constituição de nossas identidades (Garbin, 2003). Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 146 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade A família, quando citada nos textos, comparece como lócus do encontro das condições materiais e simbólicas de coexistência dos jovens. É a categoria que media o trânsito do privado-público-privado, sendo permeável tanto as convocatórias locais quanto as globais. É a família, segundo Margulis e Urresti (2000), o âmbito onde todos estão incluídos, onde se define o lugar real e imaginário da cada categoria de atores no entorno do parentesco. A família, no sentido amplo, como grupo parental, é, quiçá, a principal instituição na qual se define e se representa a condição de ser jovem, o cenário no qual se articulam todas as variáveis que a definem. À guisa de síntese desse campo de análise que procurou explorar a centralidade da juventude no cenário contemporâneo, na ótica dos autores estudados, chegamos a algumas “chaves explicativas”. A juventude, ainda que não considerada central no fazer público, é uma categoria social que sintetiza, no presente, o passado e o devir. Ela representa o desejo, a emotividade, a experiência de um tempo circular, o privilégio dos significantes sobre os significados, as práticas arraigadas no âmbito local que se alimentam incessantemente de elementos da cultura globalizada (Reguillo, 2003a). Tomando de empréstimo o sugestivo título da obra de Arendt (2002) – “Entre o passado e o futuro” –, as “juventudes presentes” são atores desse momento histórico, atravessado por crises de ordem econômica, social e cultural. Nesse trânsito, os jovens transpassam as fronteiras do social e do cultural e só vivendo muito próximo deles e com eles poderemos enxergar as pistas dessa cartografia juvenil contemporânea. Não se trata, a nosso ver, de um simples processo de juvenilização da sociedade, mas da afirmação dos jovens como sujeitos da condição juvenil, apesar da forte herança adultocêntrica presente em nossas relações com o público e com o privado. Estamos assistindo (ou vivendo?) a assunção de uma expressão política juvenil, ainda que não “politizada”, ou seja, os jovens desse século não desestabilizam, com seus poderes, a cena pública tradicional (âmbito partidário e estudantil), mas estão se constituindo para além dessa representação: “Enquanto o adulto vive ainda sob o impacto de um modelo de sociedade que se decompõe, o jovem já vive em um mundo radicalmente novo, cujas categorias de inteligibilidade ele ajuda a construir” (Peralva, 1997, p. 23). O ser e o estar jovem de hoje talvez sinalize a potência, a criação do novo, ou seja, a emergência de novos padrões regulatórios e civilizatórios para este século. A partir desta “visita” às questões que envolvem a centralidade do mundo juvenil e desta modesta incursão ao mundo da condição juvenil em suas dimensões sociais e culturais, Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007 Barbiani, R. 147 Mapeando o discurso teórico latino-americano sobre juventude(s): a unidade na diversidade globais e locais, podemos situar a segunda grande categoria na qual os textos adquirem relativa unidade discursiva: a construção do conceito de culturas juvenis. Os estilos e culturas juvenis são as formas pelas quais vai-se configurando a experiência da condição juvenil. Os sujeitos jovens procuram ingressar na esfera pública de diversas formas (através da música, do trabalho, das expressões culturais, etc.), construindo formas próprias de sociabilidade,6 exercitando a convivência social e o contraditório espaço das diferenças.7 Segundo esse autor, se a cultura se apresenta como um espaço mais aberto, é porque os outros espaços sociais estão fechados para os jovens, especialmente os de classe popular: Portanto, não podemos cair numa postura ingênua de supervalorização do mundo da cultura como apanágio para todos os problemas e desafios enfrentados pelos jovens pobres. No contexto em que vivem, qualquer instituição, por si só – seja a escola, o trabalho ou aquelas ligadas à cultura – pouco pode fazer se não estiver acompanhada de uma rede de sustentação mais ampla, com políticas públicas que garantam espaços e tempos para que os jovens possam colocar-se de fato como sujeitos e cidadãos, com direito a viver plenamente a juventude (Dayrel, 2003, p. 51). Para Feixa (1999), as condições sociais constituem a infra-estrutura das culturas juvenis, que são expressas simbolicamente através do conceito de estilo. Novamente se instaura no discurso a tensão das “medidas”, ou o peso que cada autor atribui às condições sociais e culturais na construção das culturas juvenis. Esse impasse é superado pelo conjunto de autores que sustenta a existência de uma relação dialética entre os condicionantes sociais e o caráter geracional multifacético que compõe as culturas juvenis. A cultura é definida por Castro (2002) como “um bem, um direito de cidadania”. A cultura é tida como um bem em si, seja ela popular, acervo bibliográfico, artes plásticas, entre outras. Para essa autora, cultura é um acervo da humanidade, cuja meta é a cidadania cultural. Serrano (1998, p. 259) assinala que esse conceito supera a dimensão de subcultura, culturas subalternas, ou contracultura, em sua acepção restrita de oposição a uma cultura 6 Esse conceito, quando utilizado, reporta-se às contribuições de Maffesoli, em sua análise da sociedade pós- moderna, marcada pela fluidez das relações, a sociabilidade do provisório, uma cultura do instável. As tribos são exemplos dessa forma de conviver que, ante a dissolução das massas, responde à necessidade de aglutinar pessoas “sem passado e sem futuro, sem tarefa ou objetivo, estar juntos „sin más‟”. Neste “mundo” reina o afetivo e o não-lógico. A tribalização implica uma espécie de ruptura com a ordem social monopolizada pela uniformidade. Uma nova forma de socialidade, segundo Margulis e Urresti (1998). 7 O recorte dado a este ensaio nos obrigou a não explorar as contribuições valiosas que os textos trazem nessa linha, das manifestações e expressões da juventude em seus códigos e representações juvenis (suas relações com a música, tribos, internet, televisão, moda, etc.). Os autores que trabalharam essas dimensões na amostra são Garbin (2003), Wortman (2000), Cmmiel (2000), Feixa (1999), Marafioti (1998), Serrano (1998), Dayrell (2003), Soares e Meyer (2003). Revista Textos & Contextos Porto Alegre v. 6 n. 1 p. 138-153. jan./jun. 2007
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