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manifesto antropófago faz 80 anos: dossiê bibliotecas errantes gonzalo aguilar + macunaíma no PDF

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MANIFESTO ANTROPÓFAGO FAZ 80 ANOS: DOSSIÊ BIBLIOTECAS ERRANTES GONZALO AGUILAR + MACUNAÍMA NO CINEMA JAIR TADEU DA FONSECA + JOAQUIM BRANCO VERDES & ANTROPÓFA- GOS + VENCEDORES DO PRÊMIO GOVERNO DE MINAS GERAIS DE LITERATURA + POEMA EDUARDO JORGE. BELO HORIZONTE, JULHO DE 2008, N°. 1312, SECRETARIA DE ESTADO DE CULTURA DE MINAS GERAIS A ALEGRIA É A PROVA DOS NOVE É de fato com grande alegria que o Suplemento Literário deste mês homenageia três grandes obras do modernis- mo brasileiro: o Abaporu, de Tarsila do Amaral; o “Manifesto Antropófago”, de Oswald de Andrade; e Macunaíma, de Mário de Andrade. Essa obras, que com- pletam em 2008 oitenta anos de existência, parecem mais atuais e vigorosas do que nunca, falando de perto ao Brasil de hoje e sempre. Assim, trazemos o belo artigo de Gonzalo Aguiar que investiga os fundamentos de uma “bibliotequinha antropofágica”, sonhada por Oswald e seus amigos vanguardistas. Saudando Macunaíma, Jair Tadeu da Fonseca, que aproveita a deixa para trazer a baila o filme homônimo de Joaquim Pedro de Andrade, insiste no caráter crítico dessas obras, “tantas vezes compreendidas com certo ufanismo”, e discute ainda sua relação com o movimento tropicalista. Joaquim Branco, por sua vez, evidencia o diálogo entre os antropófagos paulistas e os jovens cataguenses idealizadores da revista Verde. Para completar a homenagem, num gesto devora- dor, Luiz Henrique Vieira recria o Abaporu de Tarsila com sua fotografia. Ainda nesta edição, o Suplemento traz uma pequena amostragem das obras vencedoras do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura: poemas de Rodrigo Guimarães Silva e Érico Nogueira (já que a categoria Poesia teve dois premiados), o conto “Aquário”, de Carlos Felipe Moisés, vencedor da categoria Ficção, e fragmentos do livro “em construção” A passagem tensa dos corpos, de Carlos de Brito e Mello, vencedor da categoria Jovem Escritor Mineiro. Por fim, Cynthia de Cássia Santos Barra conta-nos sobre dois livros que habitam sua mesa de trabalho e sua vida, pois “livros se fazem ou são feitos. Depois, desaparecem ou não”. Ante o que aparece e desaparece, e para ficar- CAPA: Luiz Henrique Vieira, Abaporu, 2008. mos na alegria, que é a prova dos nove, temos o traçado Luiz Henrique Vieira é formado em Artes Visuais pela de Wilson de Avellar. E ainda: um fragmento de poema Escola Guignard (UEMG), com especialização em de Eduardo Jorge. Sim, um fragmento. Porque a poesia é Desenho pela Escuela Leonardo da Vinci, Barcelona, Espanha. Participou de 29 Salões de arte nacionais e a prova da prova. internacionais, tendo sido premiado em 11 deles – 28. 9 Prêmio Pirelli de Pintura, São Paulo, 1983; Premi 1 Internacional de Dibuix Joan Miró, Bar-celona, Espanha, e d Camila Diniz {Editora} | Paulo de Andrade {Assessor Editorial} 1985; entre outros. o ai M 1. o er m ú N GSEOCVREERTÁNRAIDA ODRE EDSTOA DEOS DTEA DCUOL TDUER AM eILNeAOSn OGrEaR SAaInST aa rÉOCSiOa SnEeCVReESTÁ RDIaO ACDuJnUHNaTO SAvu.p Jleomãoe nPtion hLeitireor,á r3io4 2d e- MAnineaxso Gerais o 1. MarCeLO BraGa De FreiTaS SUPERINTENDENTE DO SUPLEMENTO LITERÁRIO n 30130-180 Belo Horizonte MG n MG CaMiLa Diniz Ferreira ASSESSORE DITORIAL PauLO De anDraDe + PROJETO A GRÁFICO E DIREçãO DE ARTE MÁrCia LariCa + CONSELHO EDITORIAL ÂnGeLa LaGO Tel/fax: (31) 3213 1072 a - + CarLOS BranDÃO + eDuarDO De JeSuS + MeLÂnia SiLVa De aGuiar + rOnaLD [email protected] agi POLiTO + EQUIPE DE APOIO ana LÚCia GaMa + eLizaBeTH neVeS + aPareCiDa of p B+ aJOrRBNOASLaI +S TWAe RSELSLPeOyN rSOÁDVrEiLG auneTSô +n EiaS TCArGiSIÁTRinIOaSD M ea FriLCiOPSP OD{ eR EFaGr.i PaR +O MF. aMrTiBa n3a59 P0i/TMHGO}n. Antro TEXTOS ASSINADOS SãO DE RESPONSAB ILIDADE DOS AUTORES. AGRADECIMENTOS: e d IMPRENSA OFICIAL/FranCiSCO PeDaLinO DIRETOR GERAL, J. PerSiCHini CunHa a DIRETOR DE TECNOLOGIA GRÁFICA + Maria inÊS De aLMeiDa + uSina DaS LeTraS/ vist PaLÁCiO DaS arTeS + Cine uSina uniBanCO + LiVraria e CaFÉ quixOTe. Impresso nas oficinas da Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais. Re 2. Julho 2008 Julho 2008 .3 OOAANN TT TTTTTTTTTTTTTTTTTTTRRRRRRRRRRRRRRRRRRROOOOOOOOOOOOOOOOOOO SS EE PPP000 FF II NN FFAA AA GGOO 6. 7 9 1MM o, ul a P o ã S s. e õ ç nti e D 2ª e 1ª a - LUIZ HENRIQUE VIEIRA, Antropofagia, 2008. Foto digitalmente manipulada. gi a of p o ntr A e d a st vi e R a d ar mil si c- a o f ã ç di e e a r d a p a c a d e h al et d o: d n 4. Julho 2008 u JJuullhhoo 22000088 ..55 F S GONZALO AGUILAR TRAdUçãO: ROmULOm ONTe ALTO A S Um dos primeiros gestos da vanguarda foi abando- Em Vida e morte da Antropofagia, Raul Bopp conta que, entre os Sarcasmo, etimologicamente, é a palavra que morde a carne, do projetos para o programado Congresso de Antropofagia de 1931, grego sarkasmos (carne rasgada) e tem a mesma raiz que nar a biblioteca e sair às ruas. Deixar de lado o C constava a formação de uma “Bibliotequinha Antropofágica”. O sarcófago (etimologicamente, carne comida). Findava uma época trabalho de gabinete – em que a cabeça se incli- diminutivo reivindicava o formato pequeno, o texto breve, a escri- e começava outra, e a biblioteca antropófaga somente retornaria, ta em escala reduzida de que eram adeptos os vanguardistas. sob outras formas, com a tese A crise da filosofia messiânica. Enava sobre os livros – para misturar-se às vozes e Livros de bolso. Segundo o testemunho de Bopp, a biblioteca teria paisagens das cidades, mergulhando num caos de como volumes fundadores Macunaíma, de Mário de Andrade, e É comum que as teses apresentadas às instituições acadêmicas Cobra Norato, do próprio Bopp. Também constaria de várias com- contenham uma bibliografia. A crise da filosofia messiânica, que E pés e pernas. Oswald de Andrade escreveu seu pilações. Uma delas era “Sambaqui ou restos de cozinha”, que Oswald redigiu em 1950, não é uma exceção: sua lista com mais Manifesto Pau Brasil contra “o lado doutor, o lado incluía artigos da Revista de Antropofagia em sua primeira e de duzentos títulos configura a segunda biblioteca da antropofagia. T segunda dentições. Seu nome vinha do tupi: “samba – explica Se a coleção anterior era basicamente conformada pela descoberta citações, o lado autores conhecidos” e também Bopp – significa conchas e ki amontoado. Portanto, sambaqui é de livros de viajantes e filósofos sobre os costumes dos indígenas, T contra os “jurisconsultos”. O argentino Oliverio literalmente um amontoado de conchas”. Outras compilações eram a biblioteca derivada da tese é formada por clássicos de todos os uma antologia de “cantigas de ninar”, baseada no repertório da tempos e ilusoriamente canônica. Quase todos os títulos que Girondo, no manifesto do jornal Martín Fierro, cantora Elsie Houston (esposa de Benjamin Peret), um volume poderiam figurar em qualquer coleção dos Grandes Pensadores N enfrentou os que tinham “a incapacidade de con- sobre a “Escola Brasileira”, que propunha uma renovação dos estão ali: de Aristóteles e Platão a Heidegger e Freud, passando por “programas de ensino” e o “Livro de Festas e Folguedos”. Nesta Spinoza, Descartes e Hegel. Junto a eles, também se encontram templar a vida sem escalar as estantes das biblio- O biblioteca, que colocava a antropofagia ao alcance de todos, não descobertas de autores secretos e surpreendentes. O que caracteriza tecas”. No entanto, por mais que renegassem as podiam faltar os textos históricos: isto é, os relatos dos viajantes essa bibliografia é a convivência de autores extremamente sobre as tribos indígenas e seus costumes, que tanto apaixonavam diferentes entre si, o modo como são citados e a salada de títulos aborrecidas bibliotecas que o século XIX havia lhes os integrantes do movimento. Com o objetivo de, nas palavras de que combinam precariamente com o gênero tese acadêmica. A deixado, os vanguardistas nunca deixavam de apa- Bopp, “catar resíduos doutrinários”, os membros da revista com- Oswald faz uso dos livros canônicos de modo completamente I pilaram e definiram “os clássicos da Antropologia”: Thevet, Jean irreverente e sarcástico. Na biblioteca, figura Platão com seus recer com seus livrinhos, sonhando com a possibi- de Levy, Hans Staden, Capistrano de Abreu, Martius, Couto de Diálogos, como foi dito, mas Oswald recorda que as ruas de lidade de instaurar uma nova ordem, uma bibliote- Magalhães, Montaigne, Jean-Jacques Rousseau e todos aqueles Atenas, pelas quais passeavam os filósofos, eram “poeirentas”, que L textos nos quais irrompia o mau selvagem. O índio antropófago Sócrates era o “animador da censura” e “o patrono da literatura ca que não fosse alheia à “prática culta da vida”. R (ou o que se imaginava dele num “passado a posteriori”, para usar dirigida”, que com seu “teatro dirigido e formalista” nos oferece A “baixada antropofágica” procurou, no final dos as palavras de Nietzsche) é o princípio organizador dessa primeira uma ética da submissão e da servidão. Marx também é citado, mas bibliotequinha antropófago-oswaldiana. não como filósofo e sim como “romancista” (é chamado de B anos vinte, montar uma nova biblioteca com o “romancista da burguesia”) e um dos filósofos famosos do objetivo de substituir as anteriores. Porém, o dis- Finalmente, nem o congresso – programado para o dia 11 de existencialismo daquela época, Karl Jaspers, também se encontra outubro, em Vitória – chegou a se realizar, nem a biblioteca na bibliografia, não como um pensador oferecendo precisos Rperso Oswald, que nunca foi um arquivista de si chegou a ser feita: a prometida “baixada antropofágica” se conceitos para refletir sobre a angústia humana, e sim como mesmo como Mário, nunca chegou a formá-la. transformou numa diáspora e seus anti-apóstolos, dispersos pelo alguém que “não compreende o que significa, para a massa I mundo, começaram a escrever as necrologias e os epitáfios. O democrática que sobe, o esporte, o recordismo, a glória de Tarzan Mais de vinte anos depois, em 1950, voltou a ide- próprio Oswald empunhou a pá e começou a cavar sua própria e a glamour girl”. alizar uma biblioteca antropofágica com sua tese A sepultura, para decorá-la com o epitáfio do que havia sido e, B E graças ao comunismo a que recém aderira, já não era. Nesse Disposta numa ordem alfabética rigorosa, a “Bibliografia” é lida crise da filosofia messiânica. Neste ensaio, procu- longo obituário de seus anos vanguardistas, que é o prólogo de como um catálogo humorístico, ou como a enciclopédia chinesa ro percorrer ambos os projetos com a finalidade de Serafim Ponte Grande (1933), Oswald só resgata de seu passado de Borges: das Obras de Nietzsche, Ortega y Gasset ou Bertrand o que de seu “anarquismo jorrava sempre uma fonte sadia, o Russel (contrariando toda precisão acadêmica), à heteróclita lista apreender a imagem dessas bibliotecas errantes. sarcasmo”. A antropofagia mordia e ria ao mesmo tempo. que correspondia, por exemplo, à letra K, Pedro Kropotkin, Sôren 6. Julho 2008 Julho 2008 .7 Kierkegaard, Wolfgang Köhler e Grümberg Koch. O que se pode objetos, testemunhos e imagens os restos porventura legados pelo Frente à exploração feita pelo nazismo do imaginário coletivo, Errar pode significar aqui tanto alucinar, quanto caminhar, esperar de uma mesa para a qual foram convidados um anarquis- direito materno. Por isso, quando Bachofen fala da precedência do vários pensadores sustentaram a necessidade de uma intervenção segundo a evocação sugerida em “Roteiros. Roteiros. Roteiros”, ta, um existencialista, um gestáltico e um etnólogo? Que nova estado matriarcal sobre o patriarcal, não é possível entendê-lo nesse processo, o que exigiria uma consideração não positivista do manifesto antropófago. Assim como vestigium, que etimo- combustão promete a simples aproximação ou mistura de elemen- num sentido meramente histórico, mas como a existência de algo dos mitos. O próprio Oswald observava, nestes anos, “que as mas- logicamente significa “seguir uma pegada”, a marca que deixa o tos incompatíveis ou altamente perigosos? A partir de que Oswald que sucedeu no passado e atua no presente como recusado, repri- sas sempre tenderam ao mitológico no seu desenvolvimento espi- pé na terra (o roteiro), também pode significar ruína. Todas organiza sua própria biblioteca? Há, entre todos esses livros, um mido, nos silêncios, nas frestas, ou mesmo convertido em detritus. ritual”. A questão era como evitar que a imaginação ficasse refém estas conotações combinam muito bem com a defesa feita por que possa servir como ponto de apoio para movimentar a alavan- Bachofen irá reunindo estes traços e vestígios para armar com eles do domínio patriarcal. Bachofen do mito e dos detritus. ca de Arquimedes e colocar em suspenso todos os outros? seu corpus materno. Tanto Benjamin como Oswald foram contra o uso que o nazismo A Errática é antimessiânica, nos pés, mas não na biblioteca- Esse livro é Du règne de la mére au patriarcat, de Johann Jakob A radicalidade da postura de Bachofen é entendida quando pretendeu fazer de Bachofen, opondo à imagem do bárbaro irra- cabeça. Na biblioteca antropófaga, podemos encontrar também a Bachofen. A oposição entre matriarcado e patriarcado, que serviu pensamos que um dos textos sobre os quais constrói sua cional que os nazistas queriam projetar a figura do cidadão suíço, construção de um antagonismo possível. Tal como Benjamin a Bachofen para revisar os documentos da antiguidade, regula demonstração é a Orestéia de Ésquilo, onde é visto claramente bom burguês, cristão e afável, participante da democracia de seu queria ler em Bachofen, trata-se de utilizar a imaginação para agora a construção da biblioteca, mais que os testemunhos do como o direito arcaico, defendido por Clitemnestra, é substituído país. Ou, acrescenta Oswald, “um turista erudito e rico”. É no clima minar o princípio de autoridade, estratégia que talvez seja um dos descobrimento e da conquista. No entanto, a presença de pela defesa que os deuses atenienses de Orestes fazem do desses debates dos anos trinta sobre fascismo e civilização, sobre impulsos que aparece com mais persistência na obra de Oswald. Bachofen não tem apenas a ver com a hipótese que A crise da matricídio. Lido après-Freud, Bachofen parece dizer que Édipo o mito como instrumento de domínio ou de liberação, sobre a Assim, não seria mal regressar a essa “bibliotequinha antropofágica” filosofia messiânica propôs demonstrar, mas principalmente com existiu, mas que antes dele havia o mito de Orestes. Da mesma reconstrução historicista ou uma leitura a contrapelo da história, e extrair dali os textos que possam servir de manual de seu método de pesquisa. maneira, também seria possível dizer que, nessa futura biblioteca que deve ser entendida a recepção de Bachofen. Por isso, como sobrevivência, ou como receita de cozinha contra o guisado da antropofágica, a trilogia de Ésquilo tomaria o lugar do onipresente afirma Benjamin, mais importante que a veracidade de suas teses autoridade. No livro Vida e morte da antropofagia, Raul Bopp Segundo George Boas, a obra de Bachofen deve ser considerada Édipo de Sófocles. é o fato de que seu método constitui “a subversão do conceito de resgata um dos textos exemplares do cânone de um de “nossos no âmbito da filosofia da história. Jurista, antropólogo e docente autoridade”, representado pela figura paterna. indigenistas”, que serviu para dar lugar, nas sessões do congresso na Universidade da Basiléia, em sua grande obra O matriarcado É possível contestar tudo isso afirmando que não se entende como de 1931, às pesquisas sobre a “Índole Pacífica do Gentio”: (Uma investigação sobre a ginecocracia no mundo antigo segundo um método tão inovador, pelo menos para um século dominado Oswald teve acesso às teorias de Bachofen através das leituras de O chefe de uma tribo, por atributos sobrenaturais, tinha sua natureza religiosa e jurídica), publicada em 1861, procurou pela idealização da antiguidade ou pela submissão de suas fontes Engels e Nietszche, mas foi, sem dúvida, a leitura de Du règne de poderes soberanos, marcadamente legítimos dentro de uma demonstrar a existência de um direito materno que precedeu, em ao olhar racionalista, pôde ter chegado a conclusões equivocadas, la mére au patriarcat, uma seleção de escritos realizada por Adrien determinada área (por exemplo, a situada entre dois rios todas as culturas, o direito vigente na atualidade, de natureza como foram as de Bachofen, a partir de um viés científico. Para Turel e publicada em Paris em 1938, que permitiu conhecê-lo mais confluentes). No momento, porém, que o grupo ficava patriarcal. A grande dificuldade encontrada por Bachofen reside responder a esta pergunta, teremos que recorrer a um dos leitores detalhadamente. Em seu ensaio “Variações sobre o matriarcado”, desgostoso com o chefe (por uma conduta tirânica ou por no fato de que, para a imaginação patriarcal dominante, a postu- mais entusiastas de Bachofen: Walter Benjamin. Em julho de incluído em A utopia antropofágica, afirma: “fica claramente esta- não haver cumprido o que prometeu) os componentes do clã lação de um direito materno é apresentada como um “quebra- 1934, Benjamin começa a redigir um texto sobre Bachofen para, belecido que o Matriarcado precedeu ao Patriarcado em toda a não iam tramar uma revolução ou sublevação para cabeça insolúvel”: não apenas foram extintas as sociedades regi- em princípio, torná-lo conhecido entre o público francês (somente terra”; na tese, diz que “devem-se a Bachofen, vulgarizado por usurparem o poder. Nada disso. Toda a tribo, simplesmente, das pelo direito materno, como nossas leituras dos documentos em 1938 seus textos viriam a ser traduzidos). Pensa publicá-lo na Nietszche, as primeira pesquisas sobre o Matriarcado”. Através de se deslocava para outro lugar, fora dos limites de sua são feitas, há séculos, a partir do direito paterno. prestigiosa Nouvelle Revue Française, que, ao que parece, recusa Bachofen, Oswald reafirma suas idéias sobre a antropofagia e ela- jurisdição, e deixava o chefe sozinho. seu texto. Mas o objetivo de Benjamin não era apenas sua difusão. bora um método que, na tese, estará numa permanente tensão Na polêmica com o positivismo contemporâneo à escrita de seu Preocupado com a captura do imaginário que o nazismo havia com uma dialética um tanto básica, que orienta teleologicamente Deslocamento, êxodo, sociedade contra o Estado, questionamento livro, Bachofen recusa a idéia do mito como fantasia e reivindica realizado, Benjamin procura, por um lado, mostrar como Bachofen a história na direção do retorno de um novo Matriarcado. da autoridade mal exercida: agora podemos abandonar a seu estatuto de documento, sustentando que o mito se forma ao evita a idealização da cultura grega, como fazia Winckelman e, do biblioteca, pois estas palavras de 1931 demarcam um espaço de redor dos fatos como uma concha. O mito não é uma “coisa sem mesmo modo, Mommsen, com o historicismo positivista; e, por No entanto, a originalidade e a potência da tese não residem ape- futuro. valor”, mas algo que pode ser tratado como um documento. De outro, revelar que as leituras nazistas pretendiam fazer com nas no uso da dialética, mas na utilização de Bachofen como maneira complementar, a idéia de unidade cultural o leva, além Bachofen algo similar ao que fizeram com Nietszche, erigindo-o princípio organizador da nova biblioteca. Em A crise da filosofia disso, a sustentar que o matriarcado é um estágio cultural e, por- como um representante da anti-Zivilisation, de acordo com a ide- messiânica, Oswald faz uma leitura bastante pessoal e sintética do tanto, não se encontra restrito a um povo em particular. Com essas ologia nazista. É um momento importante, porque nos anos trinta método de Bachofen: “Será preciso – escreve – criar uma Errática, GONZALO AGUILAR nasceu em Buenos Aires, Argentina. É Doutor em Letras pela Univer- sidade de Buenos Aires (UBA). Publicou, dentre outros livros, as antologias Poemas, de premissas, Bachofen faz uma leitura muito peculiar da documen- fica cada vez mais claro para os intelectuais que eles não poderão uma ciência do vestígio errático, para se reconstituir essa vaga Augusto de Campos, em 1994, Galáxia Concreta, em 1999 e Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista (Edusp, 2005). tação disponível sobre a antiguidade, buscando nos relatos, mitos, ter acesso à dimensão política sem a participação das massas. Idade de Ouro, onde fulge o tema central do Matriarcado.” 8. Julho 2008 Julho 2008 .9 JAIR TAdeU dA FONSeCA MACUNAÍMA Macunaíma, de Mário de Andrade, injunções acadêmicas”, como devora os mitos indígenas devo- escreve Antonio Candido. rados pelo naturalista alemão Desse amor nasceram o Koch-Grünberg em seu livro Vom Manifesto Antropófago, a Roroima zum Oninoco, e também Revista de Antropofagia e come a Antropofagia oswaldiana. Macunaíma, manifestações Por um lado, a “rapsódia” de de nacionalismo crítico, tan- NO CINEMA Mário é devorada pelo Macunaíma tas vezes compreendidas com (1969) de Joaquim Pedro de certo ufanismo. Este, apesar Andrade, que, de outro, deglute a de perdurar na crítica literá- Chanchada, o próprio Cinema ria e cultural, foi colocado Novo e o pop, que “comerá a si em questão principalmente a mesmo”, conforme indica o nome partir da transdevoração sugestivo de um grupo (pop) da cinematográfica da antropo- década de 1980. Aliás, o cineasta fagia feita por Joaquim TROPI afirma que seu filme traz “a his- Pedro, no filme em que a tória de um brasileiro que foi obra de Mário de Andrade comido pelo Brasil”, e num de tem realizada sua “transcria- seus cartazes lê-se: “Um filme ção”, para citar o termo de onde todos comem todos”. Haroldo de Campos. A com- preensão ufanista da antro- OR NOT TROPI, A cobra também devora o próprio pofagia oswaldiana perdurou rabo quando alguém lembra as (ou perdura), talvez, porque “fontes” européias da Antro- não se percebeu suficiente- pofagia: “Des Canibales”, dos En- mente o que já estava nela e saios de Montaigne; o artigo Início da rapsódia Macunaíma, publicada no segundo número da Revista de que correspondia a uma Antropofagia, em junho de 1928. THAT IS “Anthropofagie”, de Jarry; a revis- estratégia compensatória. ta Canibale, mais o Manifeste Canibale Dada, de Picabia. Não “Se correr, o bicho pega, se ficar o bicho come”, eis o provérbio se percebe, então, o sentido forte da metáfora antropofágica: que pode traduzir essa situação estratégica (ou seja, de poder), devoramos o colonizador porque fomos devorados. Afinal, essas sendo o bicho o próprio ser humano, que devora não só para “fontes” européias teriam seus mananciais no “primitivismo” da não ser devorado, mas justamente porque também é comido. América e da África. Na devoração, está a fortaleza do fraco- THe QUeSTION forte que visa incorporar a força do outro, forte-fraco, mas Isso para tratar do ufanismo do avesso, relativo à antropofagia, valoroso. A antropofagia é seletiva, é crítica, mas nasce da ou a boa parte de suas leituras. Há também o avesso do ufanismo, fome, de uma falta, de uma perda que resulta num consumo que costuma acompanhar a problemática compreensão de criativo, mas improdutivo, do ponto de vista econômico. Trata- Macunaíma – O herói sem nenhum caráter, que nele vê uma se da perda e da apropriação de um mais-valor, digamos. espécie de alegoria (ou símbolo) do “caráter nacional brasileiro”, de perigoso alcance ideológico. Apesar de o subtítulo do livro Com o “desrecalque localista” e a “assimilação da vanguarda apontar, na sua ambigüidade, para o sentido de que a falta de européia”, a geração modernista ama “com veemência o exótico caráter do herói está ligada à falta de uma marca distintiva na descoberto no próprio país pela sua curiosidade liberta das caracterização de sua identidade, pesa mais o significado de que 10. Julho 2008 Julho 2008 .11 a falta de caráter é de tipo moral (ou Menos um movimento organizado do que “Cultura e política, 1964-1969”, escrito subdesenvolvidos, ela é central e tem e, como revela o filme, uma defesa ineficaz. mente), o amarelo e a cor de terra. Tudo imoral). Assim, corre-se o risco de reforçar uma “onda”, o tropicalismo foi mais uma entre 1969 e 1970, logo após o lançamen- força de emblema. Isto porque estes À maneira d’O bandido da luz vermelha isso, no contexto de mais um capítulo da estereótipos, como o da preguiça do “moda”, como reconhece Caetano Veloso, to do filme, que inclusive apresentaria, países foram incorporados ao mer- (1968), de Rogério Sganzerla, Macunaíma, modernização autoritária posta a efeito brasileiro. O próprio Mário foi o primeiro em entrevista a Augusto de Campos, a segundo o ensaísta, “elementos de tropi- cado mundial – ao mundo moderno o malandro otário, poderia ter como mote no país, dessa vez pela ditadura militar. a demonstrar preocupação com isso, antes qual termina com a afirmativa de que “o calismo”. Embora Joaquim Pedro recuse – na qualidade de econômica e mortal: “Quando a gente não pode fazer Note-se que, quando o filme foi lançado, da publicação do livro, numa carta de Tropicalismo é um neo-antropofagismo”. sua irrecusável contribuição crítica para o socialmente atrasados, de fornece- nada, a gente avacalha. Avacalha e se o AI-5 acabara de ser promulgado. 1927 a Manuel Bandeira: “Macunaíma O tempo mostrou que a coisa era mais do espírito de seu tempo, em uma de suas dores de matéria-prima e trabalho esculhamba.” Ou seja, se dá mal, quando não é símbolo do brasileiro. Aliás, nem no que uma onda, embora tivesse mesmo a formas mais importantes, ela se consubs- barato. A sua ligação ao novo se faz quer se dar bem, a todo custo, e quer No encontro de três Andrades, realizado sentido em que Shylock é a avareza. Se fugacidade da moda. Joaquim Pedro nega tancia na reelaboração da obra de Mário, através, estruturalmente através, de “levar vantagem em tudo, certo?”. por esse que pode ser considerado o últi- escrevi isso, escrevi afobado. Macunaíma a relação de seu filme com o tropicalismo, via Oswald, redescobertos e revistos pelos seu atraso social, que se reproduz, mo filme do Cinema Novo, temos a consu- vive por si, porém possui um caráter que talvez porque lhe repugne justamente o tropicalistas e outros jovens artistas das em vez de se extinguir. De que servem todos os emblemas do mação da relação fundamental do movi- é justamente o de não ter um caráter.” que Caetano considera, em suas próprias décadas de 1960 e 70. Realizando a antro- consumo capitalista moderno, materiali- mento com o Modernismo, em sua articu- palavras, “bacana”: a moda. Afirma o pofagia da antropofagia, a arte tropicalis- Esse tipo de justificativa histórica para o zados nas mercadorias que Macunaíma, lação do erudito com o popular, à qual se Quando da deglutição do livro por cineasta: “A impostação que pretendi dar ta é autofágica. Ao incorporar as formas anacronismo da alegoria tropicalista pode metamorfoseado em músico pop, leva da acrescenta o dado pop do tropicalismo. Joaquim Pedro, quarenta anos após sua a Macunaíma não se vincula à moda tro- do pop, do popular e do erudito, dentro da ser relacionado ao da alegoria antropofá- civilização, em seu retorno (impossível) a Apesar (ou por causa) da polêmica em publicação, afirmou-se sua atualidade e picalista, que, para mim, sempre foi com- sociedade capitalista de consumo, mas em gica, que Joaquim Pedro encontra em uma origem perdida, inexistente, ou arrui- torno da classificação do filme como tro- a necessidade de sua atualização, princi- pletamente furada como movimento (...). boa medida contra ela, a arte tropicalista importantes filmes europeus da mesma nada? De que lhe vale contar seus feitos picalista, a partir da posição de Joaquim palmente na articulação necessária entre Macunaíma mostra que o balão inchado e é consumida, por sua vez. Mas, antes, terá época de Macunaíma: Week End, de “heróicos”, que tanta diversão lhe deram Pedro, supracitada, podemos justamente cultura, estética e política. E nesse caso colorido do tropicalismo estava furado comido a si mesma. Godard, e Pocilga, de Pasolini: “É curioso (e nos deram!), se apenas lhe resta a com- pensá-lo como alegoria da cultura brasi- não se trata de tomar a figura de Macu- mesmo e tinha que se esvaziar, do mesmo que nós e os artistas de sociedades avan- panhia de um papagaio, para propagar a leira, em suas tentativas de articular as naíma como tipo ou amostra repre- jeito que Macunaíma, personagem, festeja O fascínio que o tropicalismo exerce çadas tivemos, num certo momento, a sua lenda? O herói fora abandonado pelos dimensões do erudito, do popular e do sentativa, nem como símbolo ou perso- muito, mas acaba sendo comido pelo mesmo sobre alguns de seus melhores mesma idéia. A antropofagia não é uma irmãos e pela última conquista amorosa pop, de forma a pensar o Brasil. Desse nificação alegórica do brasileiro, mas de Brasil.” Essa posição ecoou num debate críticos (a começar por Schwarz e Joaquim) idéia nova no Brasil. (...) A antropofagia da grande lista que não diminuiu a sau- modo, se o filme não é uma mera alegoria uma condição sócio-político-cultural, de recente, no final do ano passado, em ajuda-nos a reavaliar sua fundamental é a denúncia de uma condição primitiva dade de Ci, a guerreira “marvada” (guerri- tropicalista, como defendeu seu diretor, é um histórico estado de coisas no Brasil. 2007, quando do lançamento da cópia importância, apesar de sua existência de luta, uma luta resumida ao seu nível lheira pop, no filme), grande amor de certamente uma alegoria do próprio tropi- Uma outra questão que surge com a restaurada da película, em Belo Horizonte: fugaz, contraditória e ambivalente. Ao mais primário. Uma dentada, afinal de Macunaíma, a quem não restará sequer a calismo, em sua relação com o projeto dos atualização fílmica de Macunaíma, o montador do filme, Eduardo Escorel, e o dar forma alegórica ao descompasso entre contas, destrói muito pouco”. melancolia de brilhar no “brilho inútil das velhos modernistas brasileiros e o consu- relativa a seus procedimentos alegóricos, ator que encarna o herói, Paulo José, tam- o arcaico e o moderno, o pobre e o rico, o estrelas”, como foi seu destino final no mo pop dos jovens. Lembre-se que, apesar ou seja, anacrônicos, de descontextu- bém negaram que o filme fosse tropicalis- kitsch e o chique, o rural e o urbano, o A concepção de antropofagia de Oswald livro de Mário. No filme, cabe-lhe a vio- de ter devorado uma obra literária erudita, alização e recontextualização históricas, ta, como se a coisa se desse por uma cósmico e o cosmético, o intolerável e o de Andrade é otimista, poético-filosófica e lência de ser devorado pela Uiara, cuja que por sua vez comeu da cultura popular, diz respeito a se o filme é ou não tropi- espécie de filiação partidária. agradável, o tropicalismo daria forma a construtiva, enquanto a de Joaquim Pedro beleza o atrai para o rio, mantendo-se do o Macunaíma de Joaquim Pedro foi um calista. Lembre-se que o “movimento” um desconcerto histórico que, aliás, não é pessimista, irônica e destrutiva, como movimento ascensional (que, no livro, grande sucesso, ou seja, foi bem consumi- artístico foi lançado na segunda metade Considerada como capricho acrítico, a foi superado. A respeito do “fundamento percebemos em sua versão fílmica de leva o herói da terra ao céu) a subida de do pelo público, que soube rir dessa comé- dos anos 60, nas artes plásticas (por moda serviria ao consumo. O que escapa histórico da alegoria tropicalista”, Schwarz Macunaíma. Em maior ou menor grau, e seu sangue à superfície da água: mancha dia séria, “um filme besta e chato”, como Hélio Oiticica), no cinema (por Glauber a essa posição é que a moda é uma das afirma: de formas diferenciadas, o canibalismo vermelha que se mistura ao verde. A iro- foi propagandeado, ironicamente. Rocha), no teatro (por José Celso e pelo formas pelas quais se materializa o espíri- está em toda parte, como metáfora das nia cruel da última cena se acentua com Oficina), no design (por Rogério Duarte), to do tempo, se é que ele existe, e seu uso A coexistência do antigo e do novo é relações sociais no capitalismo que, “sel- a solenidade do hino cívico de Villa- na poesia (por Torquato Neto), na ficção pode ser crítico, mesmo que possa ser um fato geral (e sempre sugestivo) vagem” ou não, é identificado à barbárie. Lobos, Desfile aos heróis do Brasil, que já (por José Agripino), na música popular incorporada ao sistema criticado e esva- de todas as sociedades capitalistas e Mas, no caso da cultura brasileira, a metá- havia aberto o filme. Aliás, a fotografia JAIR TADEU DA FONSECA é cancionista e professor de Teoria da Literatura e Cinema na Universidade Federal de Santa (por Caetano, Gil, Tom Zé, etc). E por ziada. A posição do cineasta assemelha-se de muitas outras também. Entretanto, fora da antropofagia, como canibalismo em “tropicolor”, como foi chamada, acen- Catarina. muitos outros. muito à de Roberto Schwarz, no ensaio para os países colonizados e depois ritual, surge como defesa dos fracos-fortes, tua em toda a película o verde (principal- 12. Julho 2008 Julho 2008 .13 JOAQUIm BRANCO º Tupy or not tupy Neste ano de 2008, comemora-se o 80 . ano do Manifesto Antropofágico AS DUAS REVISTAS – ainda não devidamente digerido pela nossa cultura, como diria o seu Sabe-se que a Antropofagia transbordou em muito o estritamente lite- that is the question. º criador, o poeta Oswald de Andrade, se vivo fosse – e o 81 . da revista rário, podendo-se resumir sua área de atuação à frase-slogan cunhada Oswald de Andrade Verde, de Cataguases – até hoje pouco conhecida. ao estilo oswaldiano: “A terapêutica social do mundo moderno”. Para VERDES se conhecer o pioneirismo da Revista de Antropofagia, basta ler o seu Portanto, neste aniversário da Antropofagia e do Movimento Verde, penúltimo número que anunciava o 1º Congresso Brasileiro de cabe um pequeno cotejo entre o grupo paulista e o mineiro, partin- Antropofagia, em cuja pauta de assuntos constavam temas como o do-se da enorme ligação que havia entre alguns de seus integrantes. divórcio, a maternidade consciente, a nacionalização da imprensa, a O intercâmbio da equipe de Cataguases com os Andrades Mário e substituição das academias por laboratórios de pesquisa e outros. Oswald era, na época, bem mais forte do que com o pessoal do Rio de Janeiro (Bandeira, Ronald de Carvalho) ou mesmo de Belo Horizonte Do entrosamento dos grupos Verde e Antropofágico, além da corres- (Drummond, Emílio Moura), o que não parece muito lógico ou natural pondência que mantinham, destacamos alguns dos pontos mais signi- pela maior distância geográfica dos paulistanos. ficativos a seguir. Acrescente-se a isso o fato de que havia um grande descompasso de Ao número três da revista Verde (1927) comparece Oswald de Andrade & ANTROPOFAGOS idade entre os rapazes: enquanto em 1927 Mário de Andrade tinha 34 com um fragmento de Serafim Ponte Grande. Há ali trabalhos e refe- anos e Oswald, 37, Fusco contava apenas 17, Francisco Inácio, 18 e rências a outros futuros antropófagos, como Alcântara Machado e Guilhermino César, 19. Portanto, a vantagem em termos de leitura e Raul Bopp (“Bilhete para A. Machado”, “Homenagem aos homens que pé na estrada era nítida em favor dos paulistas. agem”, poema a quatro mãos de Marioswald). Mas por que exatamente os cataguasenses foram buscar ressonância Do penúltimo e do último número da Verde, constam recomendações [...] Pra inauguração logo em São Paulo, tão mais distante? A não ser pela admiração que para a leitura da Revista de Antropofagia. Além disso, de linha antro- nutriam pela visível liderança e audácia dos Andrades, não aparece pofágica, destacam-se na Verde um poema de Ascânio Lopes do açougue, o próprio nenhum outro motivo palpável. A pergunta permanecerá no ar até que (“Descoberta do Brasil”) e um de Rosário Fusco (“Festa da Bandeira”). manuel Bandeira, se faça uma pesquisa mais profunda nos documentos existentes nos 7. apresentador de ótima museus públicos e arquivos particulares sobre o assunto. A Revista de Antropofagia publicou vários outros textos da turma de 2 9 s,1 carnadura Imbassaí, Cataguases: “Lírica e açougue”, de Fusco; “Sangue brasileiro”, de e as COMPARAÇÕES À PARTE Ascânio Lopes; “Deslumbramento”, de Guilhermino César; e u g carece ser não digo a at Colocados um ao lado do outro, o Manifesto Verde registrava a busca “Encantamento” de Camilo Soares, além da notícia da morte de C de. comido – porque de uma independência cultural dentro e fora do Modernismo, pre- Ascânio e de notas simpáticas sobre os livros Meia-Pataca, da dupla er V a assim perderíamos um ocupados os seus signatários com a imposição de uma revista e do Guilhermino-Francisco Inácio e Fruta de conde, de Rosário, todas st evi movimento na província e depois no resto do país, se possível. Essa assinadas por Alcântara Machado. R dos nossos melhores a d preocupação marcou e caracterizou a estética do grupo de Cataguases, o er comilões –, porém m que ainda teve de enfrentar, internamente em sua cidade, “bengaladas” Verde e Antropofagia, nos seus quase cem anos de nascimento, são ú n eiro mordido no cangote. e até “vaias íntimas”, segundo eles. testemunhos registrados e vividos de um inconformismo criador e m pri É uma simpatia canibal: inseminador de idéias ainda hoje tão instigantes que podem provocar o pa d sujeito mordido no Por outro lado, o Manifesto Antropofágico já representava um segun- o interesse de pesquisadores que lhes descubram novas e reveladoras Ca do passo em relação ao Modernismo inicial, fruto do pensamento de veredas. cangote perde o jeito um Oswald de Andrade que superara os apupos e vaias da Semana de de falar da gente de Arte Moderna de 1922. Esse novo texto indicava um avanço maior em direção a idéias mais concretas e a críticas mais fundadas. O material JOAQUIM BRANCO é poeta, crítico, professor de literatura das Faculdades Integradas de sua tribo. Cataguases, pós-doutorando em literatura na UFRJ, autor de O caça-palavras (poemas), da Antropofagia soa hoje, parcialmente, como a tese resumida do pen- Passagem para a Modernidade (ensaio sobre o Movimento Verde) e outros. Rosário Fusco samento da modernidade no Novo Mundo, e com perfil universalista. 14. Julho 2008 Julho 2008 .15 PRÊMIO GOVERNO PRÊMIO GOVERNO DE MINAS GERAIS DE MINAS GERAIS DE LITERATURA DE LITERATURA 2008 2008 RODRIGO GUIMARãES ÉRICO NOGUeIRA LUGAR 7. A treva, que incidiu sobre o teu rosto, uma orelha não tem que ser mais que uma orelha, acendeu as feições que adivinhava mesmo quando caída, no asfalto, exilada do corpo, sem parentesco ou jornal que a encoberte. quando não via, à luz sem sal, sem gosto, a imagem é interminável e provoca associações fortes: van gogh, violência, dissimetria na face, as feições que via; onde eu estava? mas o que interessa são as meias-palavras que uma orelha, sem seu par, escuta, No mar, eu acho, o mesmo mar ignoto as meias-verdades, as meias-mentiras, as linhas não confinadas ao perfil do rosto franqueado. por onde a hora passa avara e lenta, uma orelha sozinha fica obediente, habitua-se ao corpo e aos sentidos saturados. e um peixe ganho perde o barco todo a outra, no solo, com o tempo se aplaina, mas subsiste na imobilidade da imagem que se tornara: e não há nada – só o que se inventa. lugar algum onde guardar sua sombra, pulsação ou pausa. Eu te estudei, então, ali, no barco, uma orelha não tem que ser mais que uma orelha, pescado o rosto que eu sabia teu, mesmo quando decaída em um rosto que ainda não foi ao chão. depois que a hora naufragou ao largo, e com a hora, claro, tu e eu. Que forma é essa, ao certo não se sabe; esplende e voa, é estrela como é ave. Poema que integra a obra Objeto algum, vencedora da categoria Poema que integra a obra O Livro de Scardanelli, vencedora Poesia do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura/2008. da categoria Poesia do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura/2008. RODRIGO GUIMARÃES é Mestre em Psicologia e Doutor em Literatura Comparada ÉRICO NOGUEIRA é Bacharel em Filosofia, Mestre e doutorando em pela UFMG. Com a obra Vestindo águas recebeu menção honrosa no concurso Letras Clássicas pela USP. Aficcionado por literatura desde muito Redescoberta da literatura brasileira (Revista Cult/Lemos Editorial, 2001). Em jovem, sempre a tratou profissionalmente, lendo e escrevendo muito, 2003, com o livro Celacanto (Autêntica, 2003) foi vencedor do Primeiro Prêmio e estudando muitas línguas estrangeiras. Nacional Vereda Literária UNI-BH. 16. Julho 2008 Julho 2008 .17 PRÊMIO GOVERNO PRÊMIO GOVERNO DE MINAS GERAIS DE MINAS GERAIS DE LITERATURA DE LITERATURA 2008 2008 CARLOS de BRITO e meLLO A PASSAGEM TENSA DOS CORPOS CARLOS FELIPE MOISÉS AQUÁRIO ... No estado cujas perdas contabilizo a cidade onde agora me encontro não pode ser “Essa festa vai ser uma beleza”, alguém lhe dissera, O aquário já não existe mais. Salas e salas quase vazias. relacionada junto às outras. Nela, houve um homem arruinado irreversivelmente “você vai conhecer muita gente interessante”. Fosse por Agrada a Isabel caminhar a esmo, o braço do estranho assumindo, à minha frente, a forma horrenda dos envenenados isso, fosse por outra razão, o pensamento de Isabel não pousado em seu ombro, a conversa infindável. “Mesmo sofrendo as sevícias provocadas pelo trânsito do plasma mortífero em seus tecidos. conseguia concentrar-se em nada, em meio ao porque você não acreditaria...” As palavras escorrem burburinho da sala repleta. Enquanto procurava, tocou macias, confortantes. O sentido? Só o que importa é o Contorções e sangramentos não faltaram à vítima; faltaram-lhe, entretanto inadvertidamente o rosto um pouco acima do seu: calor da mão. E o sorriso brando do homem a seu lado, reconhecimento, encaminhamento e sepultamento. anguloso e grave, sorriso brando, ausente, copo seu olhar altivo, como um poente sem esperanças, estendido na ponta dos dedos. Um estranho. Agradeceu, nenhum movimento além do imprescindível. O que me indigna e me perturba é a dissimulação da morte como quem considera definitivamente encerrado o a recusa obsessiva, estúpida e inamovível dos vivos em admitir que a um homem episódio. Ele continuou a observá-la, atento. Lisonjeada, “Minhas mãos, todos os gestos que elas possam realizar, envenenado dá-se o título de cadáver. Isabel cruzou as pernas, com estudada languidez. minha atenção incessante, o esforço aplicado com que Feria-lhe ainda os ouvidos o vozerio distante. acompanho os seus mínimos pensamentos, tudo isso, tudo, é só você querer, ou reconhecer que quer... Por Esta cidade ausenta-se da minha listagem porque lhe falta, em meio às raízes e à Expectativa incômoda, nenhum anteparo. As pessoas que você foge, não de mim, mas de você mesma?” galeria de águas pluviais, um corpo de violência flutuam ao lado de si mesmas, como se tudo estampagem, onde a corrosão, iniciada no esôfago, atingiu e superou os limites dos estivesse fora de foco. A festa? Um aquário de sorrisos e órgãos internos do vitimado, submetendo sua feição a uma torcedura que incomodaria meneios elegantes. Ela, “Isabel!”, do lado de dentro ou Isabel viu-se de repente num quarto imaculadamente até aqueles que convivem rotineiramente com as formas mais horrendas do morrer. de fora? Tremor imperceptível toda vez que seu nome é branco e vazio, sem janelas, sem móveis, paredes Porque parte de sua matéria foi reduzida às formações primárias e elementares, vou pronunciado em público. “Vocês se conhecem?” nuas, somente a porta por onde entrara. Virou-se e a identifica-lo com a inicial C. Qualquer frase seria inútil para esconder o receio de que porta já não estava mais ali. Pensou em atirar-se ao correspondente ao Carbono. todos os seus segredos fossem impiedosamente chão, teve medo do desespero, do abismo. O inevitável? desvendados. No mesmo instante, controlou-se, a aflição desapareceu. Esta cidade ausenta-se da minha listagem porque lhe faltam um velório e um Voltou os olhos para a parede oposta e aproximou-se, sepultamento que confirmariam o desaparecimento como destino inevitável de nossas Isabel fixou a atenção no quadro, na parede ao lado confiante. O pequeno ponto cresceu, até tornar-se um bobagens. Não escreverei o nome da cidade enquanto C. não for introduzido na terra do sofá. “Digamos que seja uma paisagem... Veja orifício, olho mágico. Colou o rosto à parede e pôde e a cobertura vegetal do cemitério, ou do lugar onde ele vá ser enterrado como as cores se alternam.” O estranho do rosto observar. seja qualquer esse lugar, possa se restabelecer sobre o morto. anguloso segurou-lhe a mão. O calor insinuante a reteve, com um afago, e ela começou a dizer qualquer Uma longa mesa ocupava quase todo o aposento Para onde C. terá sido levado coisa, para fingir que não estava ali. “Se você preferir contíguo. Numa extremidade, homens minúsculos por sua família, que não acompanhou com fidelidade suas piores horas? ... que eu adivinhe, posso tentar.” Ela se lembrou de algo entravam por um tubo serpentinado, ora largo, ora que deveria ter dito antes, mas já era tarde. Sentiu-se estreito, que percorriam a superfície do móvel. No meio bem assim. “O melhor de cada um se revela na do percurso transformavam-se em lagartos, logo Fragmento da obra em andamento A passagem tensa dos corpos, vencedora da categoria Jovem adversidade. Está bem que você desespere diante do expelidos pelo bocal, para cair numa espécie de Escritor Mineiro do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura/2008. que pode ser evitado, mas o inevitável pede que você guilhotina que os picava em pedaços, depois vá alem de si mesma. É quando você se revela mais automaticamente embalados em celofane. A operação forte do que imaginava.” As mãos entre as mãos seguia, ininterrupta, os homenzinhos sorriam e CARLOS DE BRITO E MELLO nasceu em Belo Horizonte, em 1974. É Mestre em Comunicação Social pela UFMG. Em 2007, publicou o livro de contos O cadáver ri dos seus despojos pela Editora Scriptum. Membro do grupo literário “O gato que exercem a tarefa de estar ali, aconchegadas, mas o cantavam, alguns dançavam, antes de iniciar a trajetória pesca”, atua também como artista plástico. coração pulsa, inquieto. rumo ao estágio final. 18. Julho 2008 Julho 2008 .19

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Prêmio Pirelli de Pintura, São Paulo, 1983; Premi. Internacional dois livros que habitam sua mesa de trabalho e sua vida, pois “livros se orifício, olho mágico. Colou o . que através delas se pode despertar uma ação. É ainda.
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