DANIEL AARÃO REIS Luís Carlos Prestes Um revolucionário entre dois mundos Sumário 1. Anos de formação 2. Das revoltas de 1924 ao início da Grande Marcha 3. A Grande Marcha pelos Brasis 4. O sertão não vira mar: a retirada 5. O primeiro exílio 6. O segundo exílio: o mundo da utopia revolucionária 7. O assalto aos céus 8. Descida aos infernos 9. Nos braços do povo 10. De volta aos subterrâneos 11. O reencontro com a legalidade 12. Entre reforma e revolução 13. Novamente nas catacumbas 14. O terceiro exílio I: o fundo do poço 15. O terceiro exílio II: a reconstrução 16. O racha 17. Da larva, a borboleta Entre a vida e a lenda — À guisa de posfácio Notas Fontes Referências bibliográficas Créditos das imagens 1. Anos de formação Em fins do século XIX, Porto Alegre era um pequeno burgo, com pouco menos de 75 mil habitantes, enriquecido pelo constante movimento de barcos e navios. Elevado, desde 1822, à condição de cidade, do alto de uma colina descia em direção às águas do Guaíba, parecendo um anfiteatro.* Os habitantes orgulhavam-se das praças arborizadas, dos chafarizes e hotéis, e do primeiro arranha-céu, o prédio Malakoff, de imponentes quatro andares; e também da igreja da Matriz, do Palácio do Governo e da sede da 3a Região Militar. Nas principais ruas, da Praia, Nova, Riachuelo, do Comércio, Sete de Setembro, misturavam-se as pessoas, com roupas escuras e pesadas, típicas da época, às carroças e aos tílburis, puxados a cavalo, e aos novos bondes elétricos, indício e promessa de tempos modernos. Foi nessa cidade que, em 3 de janeiro de 1898, nasceu Luís Carlos Prestes,** filho de Maria Leocádia Felizardo Prestes e de Antônio Pereira Prestes. De rosto largo, olhos enérgicos e inteligentes, a mãe descendia de Joaquim José Felizardo, comerciante abastado, ligado à importação de produtos europeus, e de Ermelinda Ferreira de Almeida, a quem a tradição familiar e mesmo os descendentes revolucionários gostavam de atribuir estirpe nobre. De fato, Luís Augusto Ferreira de Almeida, seu irmão, era um visconde, título concedido pelo rei d. Carlos I de Portugal em 1891. Anos antes, um tio e homônimo também se tornara nobre, graças aos reis portugueses, d. Pedro V e d. Luís I, que lhe concederam os títulos de visconde e conde, em 1855 e 1874. Leocádia, nascida em 11 de maio de 1874, teve rigorosa formação católica, era cultivada, fluente em francês, apreciava a boa literatura francesa e portuguesa, estudara pintura, canto e declamação, e aprendera a tocar piano. Voluntariosa, afirmativa, interessava-se pelos assuntos da sociedade, antenava-se com os problemas do mundo, e gostava de tomar partido e defender com eloquência seus pontos de vista. O marido, Antônio Prestes, filho do juiz de direito dr. Antônio Prestes e de Luísa de Freitas Travassos Prestes, era oito anos mais velho do que ela. Semblante grave e olhos profundos, nascera em 23 de agosto de 1866, e ainda não completara trinta anos quando contraiu núpcias. Homem de cultura, dispunha de uma boa biblioteca, ornamentada de livros que se orientavam pelo materialismo e pelo positivismo franceses. Um militar-cidadão, da escola de Benjamin Constant. Quando houve a abolição da escravidão e a proclamação da República, a mãe de Prestes era mocinha. Já Antônio, com mais de vinte anos, homem-feito, pôde perceber com outros olhos os dois eventos históricos. Afinal, desde março de 1888 vivia no Rio de Janeiro, epicentro dos acontecimentos, concluindo a formação militar. O gosto pela carreira das armas despontara cedo no pai de Luís Carlos Prestes. Com dezessete anos, em 1883, apresentou-se voluntariamente ao 12o Batalhão de Infantaria, em Porto Alegre, tendo sido encaminhado ao curso preparatório da Escola Militar no Rio Grande do Sul, com duração de dois anos. Em janeiro de 85, foi matriculado no curso superior, de quatro anos. No entanto, ao longo do terceiro ano levou duas “repreensões”. A primeira, por ter “faltado à revista”; a segunda, “por haver desobedecido acintosamente às ordens do comando da Escola, saindo do estabelecimento sem licença”. Foi então preso por quinze dias no alojamento. É provável que, por causa disso, tenha requerido, e obtido, licença para fazer o quarto e último ano no Rio, na “Escola Militar da Corte”, conforme atestado em sua “fé de ofício”. Nomeado alferes-aluno em janeiro de 1889, em abril foi designado para servir na Escola Superior de Guerra, onde passou o ano em estudos teóricos e práticos de astronomia, geodésia, alemão, acústica e meteorologia, tomando parte nos exercícios gerais em setembro. Ainda lhe sobrou tempo, contudo, para participar — e ativamente — do movimento republicano. De fato, sempre segundo a história oral familiar, narra-se com orgulho que Antônio Prestes era um propagandista da República, membro de uma sociedade secreta, e que marchara com os cadetes da Escola Militar da Praia Vermelha, os quais, sob o comando de Benjamin Constant, acorreram ao Campo de Santana, no Rio de Janeiro, para apoiar Deodoro da Fonseca no golpe que derrubou a monarquia e proclamou a República, em 15 de novembro de 1889. Nos seus verdes 23 anos, Antônio assistiria aí à fundação de uma dupla tradição — a do intervencionismo militar na história política do país, com os oficiais das Forças Armadas já desempenhando o papel de anjos tutelares da República recém- nascida, e a dos grandes enfrentamentos que, na beira do abismo, não se realizam. Entre Floriano Peixoto, comandante das tropas da monarquia, e Deodoro da Fonseca, chefiando os rebeldes, prevaleceram conversações em vez de tiros. Tudo acabou num acordo, e ambos fundaram a República, Deodoro na Presidência, Floriano como vice. Uma primeira grande “guerra da saliva” em que, entre mortos e feridos, todos escaparam. Seja como for, não parece haver dúvidas quanto às afinidades de Antônio Prestes com o pensamento de Auguste Comte, congruente com a formação militar da época, com a especialidade que escolhera — a engenharia — e com o ambiente da Escola da Praia Vermelha, onde terminaria os estudos, viveiro maior do positivismo militar brasileiro. Em começos de 1890, com notas mais regulares do que boas, recebeu, afinal, o grau de bacharel em “matemáticas e ciências físicas e naturais”. À beira de completar 24 anos, estava pronto para iniciar a vida profissional. Até 1896, quando se casou, em 30 de maio, com Leocádia, uma jovem de então 22 anos, trabalhou como professor (“lente”) na Escola Militar do Rio Grande do Sul e também na Diretoria de Obras Militares de São Paulo. Depois do casamento, continuaria recebendo missões nesses dois estados, tendo sido promovido a capitão do Corpo de Engenheiros em 97, afetado à Comissão de Engenharia Militar do Rio Grande do Sul. O dia 3 de janeiro de 1898 foi de felicidade para o jovem casal formado por Leocádia e Antônio. Nasceu em Porto Alegre o primeiro filho, varão — Luís Carlos —, e veio a nomeação de Antônio para o posto de secretário da Comissão de Engenharia Militar. A sorte parecia estar do lado deles. Em dezembro daquele mesmo ano, nascia outra criança, dessa vez uma menina, Clotilde, no dia 27, registrada em Porto Alegre. Menos de um mês depois, um elogio do presidente da República por “bom desempenho no serviço”. E a nomeação para adjunto da 1a Seção da Direção-Geral de Engenharia. Em 1900, novo elogio, agora dessa Direção, pela “inteligência e reconhecida competência com que se houve no desempenho de seus deveres”. A família crescera com mais uma filha, Heloísa, nascida em 31 de março, registrada em Niterói. A única sombra que pairava sobre o jovem casal era de caráter político. As inclinações materialistas de Antônio não batiam com o catolicismo rigoroso de Leocádia, que achava os chefes positivistas “oportunistas e hipócritas”, incluindo-se aí os grandes líderes da corrente, Miguel Lemos e Teixeira Mendes, diretor e vice- diretor, respectivamente, da Igreja positivista do Brasil. O positivismo, entre outras referências, propunha a abolição da escravidão, a proclamação da República, a inclusão social e a proteção da mulher, motivo pelo qual se tornara popular entre as lideranças civis e militares republicanas. Sua base filosófica materialista, porém, contradizia os princípios religiosos de Leocádia. Segundo ela, embora pregassem o altruísmo, os líderes positivistas não passavam de sovinas, interessados apenas em dinheiro, e era isso que de fato a incomodava. Além do mais, suas interdições, como a de comer carnes e ovos, prejudicavam a saúde das pessoas. Depois, Leocádia atribuiria a esses questionáveis preceitos a morte do marido e do irmão, também adepto do positivismo gaúcho. Sua oposição era tão veemente que inibiu Antônio de se filiar à Igreja positivista. Em compensação, puseram-se de acordo a respeito da formação das crianças: elas só optariam por uma confissão religiosa, se fosse o caso, quando adultas. Em 1901, o casal estava de volta ao Rio Grande do Sul com a designação de Antônio para trabalhar em Alegrete, no oeste do estado, a pouco mais de quinhentos quilômetros de Porto Alegre. Luís Carlos Prestes tem dessa época uma das mais antigas recordações, quando teria ido com o pai, numa carroça de colono, a Ijuí, onde se construía, sob sua supervisão, uma estrada de ferro entre Cruz Alta e Porto Lucena. O clima naqueles pampas não era fácil, alternando-se temperaturas quentes e grande umidade. Leocádia não se deu bem, adoeceu. Um médico militar chegou a diagnosticar tuberculose, um rebate falso mas que a obrigou a voltar para Porto Alegre com os três filhos, deixando o marido só. Além da saúde abalada, Leocádia trouxe de Alegrete más lembranças das relações entre oficiais e soldados. “Ela atacava violentamente a brutalidade com que os oficiais então tratavam os soldados”, recordou-se Prestes. Um episódio não saiu de sua memória: o furto do dinheiro destinado ao pagamento dos praças. Os ladrões foram logo identificados, dois civis e dois militares, e a quantia recuperada. Entretanto, em vez das providências cabíveis, o comandante da companhia resolveu fazer justiça com as próprias mãos. Levou os quatro para a beira de uma restinga e ali, “armados de vara de marmelo […] surraram os marginais”. De tanto apanhar, dois morreram. Quando soube, Leocádia fez um escândalo tão grande que foi preciso chamar o comandante do batalhão para explicar que não fora sob suas ordens que aquele horror acontecera. Pouco depois de 1903, Antônio teve um primeiro derrame cerebral, ficando hemiplégico. Em setembro e dezembro, em dois exames sucessivos, ganhou seis meses de licença para tratamento e foi aconselhado a voltar para Porto Alegre. Ocorreu, então, outra triste história, também contada a Prestes pela mãe indignada: doente e sem ação, o pai vira a casa invadida por colegas, “companheiros dele”, que saquearam os aposentos, levando “livros, uniformes, tudo… uma verdadeira limpeza”. Em março do ano seguinte, nova “inspeção de saúde” considerou-o apto para retornar às atividades profissionais. Cerca de um mês depois, contudo, voltou a sentir-se mal, ganhando mais quatro meses de licença-saúde. Interveio, então, em 26 de abril de 1904, uma ordem do ministro da Guerra determinando que se “recolhesse” à capital federal, certamente para dispor de melhores condições de tratamento. Num de seus depoimentos, Luís Carlos Prestes confirmou a data: “Cheguei ao Rio com seis anos”. Foram de navio. No porto, tomaram uma carruagem — uma vitória — e seguiram para a casa da avó paterna, na rua Barão de Itapagipe, na Tijuca, onde se hospedariam. O casal, as três crianças e mais Amélia, empregada negra da família de Leocádia. Criada com ela, pau para toda obra, haviam estado em Alegrete e juntas estavam agora no Rio de Janeiro. Dela disse Prestes: “Era como se fosse mãe também, e nos criou com muito carinho”. A casa de d. Luísa ficou pequena para toda aquela gente, obrigando a família recém-chegada a se mudar para outra residência, na esquina da rua Dezenove de Fevereiro com General Polidoro, em Botafogo, junto ao Cemitério São João Batista. Foi da janela dessa casa que Prestes viu “o primeiro automóvel que chegou ao Brasil, de um ricaço que passeava por ali”, e também “o enterro de Machado de Assis”, em setembro de 1908, conforme suas lembranças. O Rio de Janeiro era a maior cidade brasileira, com quase 800 mil habitantes, num país em que pouco mais de dois terços de uma população de 17 milhões de pessoas viviam nas áreas rurais, disseminadas por vasto território, num nível muito baixo de densidade demográfica. Corriam tempos agitados, de modernização acelerada, impregnados pelo otimismo científico que varria o mundo. A capital do país, entregue às mãos de médicos e engenheiros, haveria de se transformar numa vitrine “civilizada”. Tratava-se de remodelar em profundidade os bairros centrais. Era o “bota-abaixo”, que arrasou as habitações populares que ali existiam, expulsando os pobres habitantes para as periferias ou para os morros próximos. Da saúde e do saneamento cuidavam os médicos, com vacinações obrigatórias. Era mexer nos corpos e nas intimidades das pessoas. Houve protestos. Desconsiderados, medrou a revolta. O pau quebrou. Os conflitos envolveram toda a cidade e chegaram perto de onde Prestes morava: “Quebraram todos os lampiões […] a rua ficou às escuras”. Não dava para fazer “guerra da saliva” com aquelas gentes. Foram tratadas com a mesma metralha que se despejara sobre o arraial de Canudos, no interior da Bahia, entre 1896 e 1897. Chumbo grosso, terra arrasada, para não sobrar vivente. Em seu lugar, emergiu uma linda cidade, com amplas ruas e largas avenidas. Luz elétrica, parques, praças e jardins. Saudável e limpa. Paris nos trópicos. Lima Barreto observou, irônico: “Tinha muita cenografia”. A República decantara-se. Os militares — anjos fundadores e tutelares — tinham se recolhido aos quartéis, mastigando amarguras e ressentimentos. Desde os anos 1890, mandavam os grandes senhores de terra, construindo uma peculiar república, de homens ricos, brancos e letrados. Em complexas arquiteturas, pactos faziam-se e se desfaziam na base de fidelidades entroncadas em sólidas tradições. Se não havia acordo — o que não era raro —, as desavenças eram resolvidas à bala. No limite, intervinha o Exército, quando seus comandantes — eles próprios — não estavam envolvidos no rolo. Refeitos os equilíbrios, recomeçava-se. A alta política se fazia entre muito poucos, apenas 0,5% da população participava da escolha dos presidentes e demais homens do poder. O capitão Antônio Prestes não devia estar vendo aquilo tudo com bons olhos. Naquele mesmo ano de 1904, fecharam a Escola em que se formara, acusada de cumplicidade com a revolta dos plebeus contra o governo. Mas o que ele poderia fazer nas circunstâncias que eram as suas? Em correspondência, de 1907, com a família no Rio Grande do Sul, Leocádia informava que a saúde do marido continuava precária. Tinha, às vezes, dificuldade de lembrar o nome da própria mãe, como se a memória estivesse se apagando. Muitos anos mais tarde, Prestes assinalou: “Do meu pai não posso dizer nada, porque depois que adoeceu gravemente [em 1903], teve outros derrames e foi piorando cada vez mais”. Sua “fé de ofício” registra ainda alguns retornos ao trabalho. Segundo Prestes, os colegas estavam fazendo o possível para encobrir a invalidez parcial, declarando-o como se estivesse apto para o trabalho, na ativa, com direito a receber o soldo integral: os bons amigos dentro do Exército “não tinham dado parte de doente”, de modo que a vida se equilibrava: “Vivíamos mais ou menos bem”. Em 26 de março de 1907, numa espécie de homenagem, o coronel Martins de Mello registrou um último elogio, assinalando o “zelo e a dedicação” com que se havia no desempenho do cargo. Mas o mal continuava roendo. E o abateu, finalmente. Em 12 de janeiro de 1908, morreu, numa nova residência, na rua Conde de Irajá, o capitão Antônio Pereira Prestes. Sobrou para Auguste Comte. “Depois que meu pai morreu, eu me lembro da Amélia meter o machado na cabeça de um busto deste tamanho do Comte que havia lá em casa…”, lembrou, anos mais tarde, um divertido Prestes. Um descarrego, mas não chegava a ser um consolo para a viúva, com três filhos pequenos, em escadinha: o maiorzinho, o próprio Prestes, acabara de fazer dez anos. Clotilde tinha nove e Heloísa ia fazer oito. Afora o drama pessoal, havia agora uma situação financeira aflitiva, pois era bem modesta a pensão deixada pelo capitão, 200 mil-réis por mês, um pouco mais apenas do que os ganhos de um funcionário público subalterno. Nos últimos tempos, e apesar da mão forte de Amélia, não fora nada fácil cuidar do homem que morria e das crianças. Além de se dedicar ao marido, Leocádia alfabetizara Prestes e as duas irmãs em casa, o que não era incomum na época mas dava trabalho. Prestes recorda-se de ter passado ainda
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