LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS Olívia Barros de Freitas (UFRGS)1 Resumo: Discutir-se-á neste artigo a forma estética pós-moderna presente nas líricas do escritor português Fernando Pinto do Amaral e do escritor brasileiro Milton Torres, além de observar movimentos de forças histórico- sociais. Sob o aporte teórico de Octavio Paz e Heidegger, este trabalho pretende, ao comparar as obras dos autores, analisar o cantar de um local (cidades, espaços geográficos, espaços imaginários) frente às consideráveis aparições de signos e imagens que remetem a um tempo não-mesurável, à ausência de fronteiras, à acepção multicultural, à internacionalização temática e à inspiração na cultura de massa. Palavras-chave: poesia portuguesa; poesia brasileira; literatura comparada; pós-modernidade. Vários eixos aproximam a poesia de Milton Torres e Fernando Pinto do Amaral. Trata-se de dois autores da literatura contemporânea de língua portuguesa que, com uma poesia sintética, erudita e bem estruturada sonoramente entoam seu tempo: os conflitos da pós-modernidade.2 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: [email protected]. 2 Controverso é o conceito de pós-modernidade. De forma geral, é definido como momento histórico no qual se estabeleceu (ou se estabelece) crítica à modernidade, particularmente nos campos da arte e da produção do conhecimento acadêmico. Neste artigo o termo também é a aproximado ao contexto do movimento estético vigente na contemporaneidade, e a contemporaneidade em si – da década de 1970 aos nossos dias. Há distinção entre os termos pós-modernismo, pós-moderno e pós- modernidade. Todavia, serão aqui tomados como “semelhantes”. Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 62 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS Fernando Pinto do Amaral é autor português, foi estudante de medicina, tendo aberto mão da carreira de médico para se dedicar às letras, formando-se na Universidade de Lisboa. Além de escritor, atua como crítico e tradutor. É um autor recente; sua primeira obra, Acedia, é de 1990. A poesia de Amaral é atenta à tradição portuguesa e europeia de literatura. O poeta brasileiro Milton Torres, hoje diplomata, já foi professor; hoje, além da carreira diplomática desenvolve atividades também como historiador e epistemólogo. Com grande erudição, em O fim das terras (2004) expressa o acúmulo de experiências de sua profissão e suas atividades anteriores, que podem ser percebidas pelo domínio de vasto campo de línguas estrangeiras e de vivências multiculturais. Assim como Amaral, Torres perpassa com propriedade pela tradição literária de seu país e da literatura ocidental em geral. As similaridades não param por aí: ambos aproximam-se de uma “poesia de viagem” –terminologia que restringiria a enorme abrangência de suas poesias, e têm grande capacidade de sumarização e justaposição em seus poemas. Aproximar os autores de uma “poesia de viagem” significa que sua lírica explicitamente remete a descobertas de espaços geográficos reais ou espaços imaginários, marcados por uma grande expansão temática. Esta faculdade aproxima a poesia à individualidade e, em contrapartida, expande-a, por dar a ver um local inserido num tempo e espaço, fragmentado pela estética (ainda em formação) pós-modernista. Dentre as várias aproximações possíveis dos poetas, interessa aqui observar como é operado o canto do local (cidades, espaços geográficos) em suas poéticas, frente à observação de consistente tematização de espaços físicos ou imaginários, descritos em um tempo que foge à noção intratemporal meramente datável, extensível e significativa. Espaço Em poesia, o eu lírico mantém relação com o mundo e com os objetos e, a partir dela, cria espaços, não apenas os ocupa. O espaço – as cidades, vilas, ambientes naturais, etc. –quando amplificado além de sua materialidade, abre possibilidades de descobertas. No conteúdo manifesto do texto poético, os objetos e os seres, inclusive o eu lírico, ocupam lugar muito significativo. Entretanto, é somente mediante a compreensão poética e a intervenção estética que se escapa à reles dicotomia “sujeito e objeto”, em uma compreensão que extrapola o senso comum e a fixação de modelos e diretrizes. O homem concretamente estabelecido vai além, e de forma extática, ultrapassa compreensão do senso comum da relação humana com o espaço – ou seja, com a cidade; em “Águas Emendadas”, o eu lírico construído por Milton Torres abarca tal perspectiva: ÁGUAS-EMENDADAS águas que desatam não no literário edênico ícone daquilo que nunca deveras houve, Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 63 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS mas no endêmico chão sem lua onde a tudo abafa a estufa – e retroaquece – Da matéria que degrada águas que divagam na auto-estima: tchapt tchapt tchapt! – não, não lhe toques, ao luzido espelho do lago! águas remendadas, por isso imotas, na crux geodésica e política do país: da nação do treslido Fausto! - his flight missed to Chicago ficando-lhe só o ranço da metafísica alemã, fede à Carta da ONU. e viva a práxis punctual – nossa congenial – que tudo caso a caso resolve nas duas casas, vivat! (Torres 2004: 174). O poema evoca municípios pertencentes à mesorregião de Águas Emendadas, localizada no Centro Oeste do Brasil, que compreende cidades majoritariamente dos estados de Goiás e, minoritariamente, Minas Gerais. O termo “águas emendadas” refere-se ao conjunto hidrográfico de formação e dispersão das águas, fluindo de um ponto para diversas direções. A partir de uma leitura cartográfica, verifica-se a provável intenção de metaforizar o espaço geográfico em que se encontra Brasília – o Distrito Federal brasileiro é envolto por bacias das águas emendadas. A imagem das águas que “desatam” no “endêmico chão sem lua” é marcada pela repetição da sonoridade “tchapt”, utilizadas três vezes pelo poeta. “Tchapt” remete ao ruído da água em movimento, ou das forças em movimento. Os movimentos, dada a repetição, são três: três afluentes hidrográficos e três são os poderes do Estado, simbolizados arquitetonicamente em Brasília. A “crux geodésica” faz menção ao desenho do Plano Piloto da Capital Federal projetado pelo urbanista Lúcio Costa. O poema ainda indica que nesta cidade ocorre uma “danação”, a tragédia de um Fausto às avessas. Se Fausto, de acordo com a tradição literária, foi um homem corrompido pelo demônio, Torres canta uma possível perversão do próprio demônio pelo homem–imagem que é estendida à corrupção massiva e caliginosa. Torres realiza em “Águas Emendadas” um entrelaçamento de forças, agindo em estratos pré-racionais ao mesmo tempo em que apresenta no texto aguda intelectualização do que é expresso, mediante robusto aparato linguístico e indissociabilidade do conteúdo. Existe tensão estética, e essa tensão parece ser intencional, pois busca expressar um mundo que está exatamente sob tensão. Se a forma é sempre insuficiente e ilusória, ela aceita a simulada, em que a realidade se perde; o real passa a ser então um construto linguístico (“endêmico”, “geodésica”, Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 64 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS “imotas”, “treslido”). A materialidade vai além dos signos, mas só pode ser assimilada mediante o próprio signo. Paz (1986) indica que a poesia moderna relaciona-se com o capitalismo. O poeta, ao fazer arte, posiciona-se fora do lugar em um sistema de produção, dada à complexidade de entendimento da arte como produto: o escritor, após processo histórico vivido na era moderna, é o profissional da palavra e dos signos, que apresenta dificuldade de divulgação de seu trabalho e de apresentação a um público leitor. El poeta moderno no tiene lugar en la sociedad porque, efectivamente, no es ‘nadie’. Esto no es una metáfora: la poesía no existe para la burguesía ni para las masas contemporáneas. El ejercicio de la poesía puede ser una distracción o una enfermedad, nunca una profesión: el poeta no trabaja ni produce. Por eso los poemas no valen nada: no son productos sucesibles de intercambio mercantil (Paz 1986: 243). A poesia na contemporaneidade, apesar da facilidade digital hoje disponibilizada, não dispõe de circulação e apreensão na sociedade –na visão de alguns críticos, o gênero tenderia a desaparecer. Assim, como se vê no poema “Águas Emendadas”, a imagem de denúncia da corrupção e ineficiência (“imotas”, “práxis punctual”), se pensada em relação mercadológica material do poema, não terá vida, olhos e ouvidos. Tal situação tem sido matéria da própria poesia nos dias de hoje, canta-se o“não-lugar” que o poeta ocupa na sociedade, o que é visível e perceptível na poesia dos autores aqui estudados. A poesia pós-moderna é o espetáculo de si mesma, permitindo que o leitor vivencie o processo de criação, por autorreferência, confissão sentimental, de modo a colocar o leitor a participar. É uma lírica multiformal que não procura grandes recursos ou formas de ruptura, ao contrário da poesia de vanguarda e da modernista propriamente dita. Exige do leitor aproximação e participação compreensivas do sujeito histórico para, de forma imediatista, imergir na estrutura estética proposta. Bem como Torres, Amaral escreveu poemas relacionados à natureza e/ou à cultura voltada ao espaço. No poema que se segue, o escritor português tematiza Lisboa, a capital nacional portuguesa. O poema, composto por um número expressivo de versos, apresenta um eu lírico que fala de si mesmo e de sua experiência, em primeira e em terceira pessoa: ELEGIA DE LISBOA «Nas nossas ruas, ao anoitecer», abre-se num olhar a pena errante de quem se ilude em passos vagarosos, em mais um jogo incerto de cem luzes sob este céu tão baço. Como sempre, os mudos automóveis sobem, descem ruas e ruas rumo a outras ruas Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 65 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS polvilhadas de gente que regressa sem ter partido - insectos ondulando [...] vibrante no declive dos telhados em degraus sobre o Tejo. Devagar cola-se ao espírito a membrana escura dos sonhos que perdi ou que pedi há tantos anos à eternidade e agora se dispersam na colmeia das pequenas janelas reacesas, no bafo das famílias indiferentes [...] com esse aroma surdo e espesso e dócil das vozes que por vezes me esvaziam qualquer recordação. Bairro nocturno, confundo os teus caminhos-labirinto, os nomes das vielas inconstantes [...] onde se compra e vende cada rosto e onde mergulho cego e surdo e fico senhor da sua imagem, de repente unida às gargalhadas tão ingénuas das viciosas bocas florescendo na treva, procurando novas bocas [...] a mais falsa alegria, a peregrina febrícula do espírito embrulhado em whisky ou nas falas transparentes de alguém que por acaso eu poderia talvezamar - «I'm so crazy for you!» –, [...] saboreio um cigarro que se evola só para ti, Lisboa. Sempre quis pulsar ao mesmo ritmo que tu, transpor este deserto e conseguir em golfadas de versos libertar o encarcerado sopro do teu peito - - cidade atravessada de armadilhas [...] ó morte a que abandono luz e sombra, o grito do meu nada ainda em fuga, mas de súbito em paz entre os teus braços. (Amaral 2000: 393-397). Hegel (1997: 295-296) preconiza que a lírica é originada no particular, mas que, no entanto, pode exprimir o geral na representação humana. O poeta, ao dominar a natureza dos objetos – dentre eles, o espaço – com grandeza de vista, usa sonoridade Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 66 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS e imagismo para dar a ver o sentimento obscuro surpreendente. “Elegia de Lisboa” toma posse do contraste do mundo fetichizado. Ao contrário do uso fonético mais elaborado de “Águas Emendadas”, que emprega rimas internas e algumas rimas externas, “Elegia de Lisboa” não se vale de rimas recorrentes. Seu ritmo é acelerado, com abruptas pausas, como soluços – soluços de prantos diante da morte de uma cidade. A homenagem à morte de Lisboa, dada sua estética, se excluídos elementos de caracterização regionais como “beco” “Tejo”, “Lisboa”, poderia ser transferida a qualquer outra grande cidade do mundo. No poema de Amaral, as supressões – ou soluços, como chamamos – expressam a própria pós-modernidade. O uso da parataxe, dispondo lado a lado blocos de significação sem explicitar suas relações de unidade, aliado aos silêncios, não expressam uma relação vazia ou um código vazio, como talvez possa parecer numa leitura primeira e descuidada. Trata-se, na verdade, de uma relação aberta da arte em relação à vida. A associação de ausências – ou a própria relação estando ausente – pode ser construída a partir de outros ângulos de leitura, dando a ver uma relação que pode receber diversos conteúdos. O procedimento não é, em si, algo negativo; por meio dele ocorre a revelação de uma consciência nevrótica da própria modernidade. A respeito da justaposição na poesia pós-moderna, como o apresentado em “Elegia de Lisboa”, Gomes refere que Os flashes sucedem-se velozes, quebrando a linearidade lógica e a possibilidade da totalização da cidade. Privilegiam-se os fragmentos, as partes metonimicamente destacadas do todo, pelo processo seletivo. Dá-se precedência às imagens sobre a mensagem; substitui-se a extensão da mensagem pela tensão dos significantes (Gomes 1994: 33). Elegias, lamentos poéticos de morte, são utilizadas no título de todos os poemas da composição de “Dez elegias para o fim do milênio” de Amaral, presente em Poesia reunida: 1990-2000 (2000). Dialeticamente, apesar do tom entristecido da morte de Lisboa, falida, superpovoada, vencida pela modernidade, a cidade pulsa, com ritmo acelerado. A sonoridade é marcante nos versos dos dois poetas. O ritmo é composto por enjambement, constituído pela divisão de uma frase ao fim de um verso ou uma estrofe, de modo a quebrar o encadeamento tido como mais lógico dos sintagmas, ao transplantar termos de um sintagma do verso anterior e locar os demais referentes àquele mesmo sintagma em um verso subsequente. Tais usos geram um efeito de conexão entre os versos, que a princípio parecem quebrados, já que aquele em que se inicia o enjambement não pode ser lido com a habitual pausa descendente ao final do verso, mas sim com entonação ascendente, que indica continuação, acelerando a leitura ou a declamação. Esse ritmo também pode remeter à caminhada disfórica do eu lírico por esse espaço urbano, tecendo um estado de ekstases, que não apenas aparece na poesia referida às grandes cidades, mas também às médias e pequenas, como se pode ver em “Alcântara” (referência a uma cidade do estado do Maranhão, no Brasil) de Milton Torres, publicado em No fim das terras (2004): Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 67 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS ALCÂNTARA [...] a rua da amargura sabe mais que as outras ruas; esconde-se do sol e trilha à noite, as luzes apagadas da vidraça – e só tem este som que se arrasta pelas pedras da calçada tropeça, os tornozelos presos ao passado e rombo do sistema (Torres 2004: 143). Por um lado, “Elegia de Lisboa” e “Alcântara” recusam o mundo material, acentuam o específico, estendem a compreensão do mundo por meio de sua recusa das acepções reificadas. Ao mesmo tempo, amplificam esse mundo, já que o materialismo, a degradação materialista (e no caso de Alcântara, a miséria), juntamente com a matéria subjetiva, são objetos estéticos norteadores do poema. Metaforizar a cidade é estratégia que visa sustentar a estrutura volátil do texto na pós-modernidade – é espaço conectado aos possíveis impedimentos do que poderia significar. Tais impedimentos expressam-se na impossibilidade de certeza do significado dos fragmentos, que têm ímpeto estético de simultaneidade; a impossibilidade de parte das massas da cidade de interpretarem a cidade, a si mesma, e o que a envolve; a existência simultânea de variadas linguagens, línguas (“hisflightmissedto Chicago”, “I’msocrazy for you!”, “Vivat!”) e mídia; o conjunto formas truncadas que gera crítica à perda de referências e ao Establishment moderno. Tempo Não há como desprender o espaço físico e o espaço imaginário da temporalidade em poesia, ou seja, a prática de apropriação de determinado espaço por parte do eu lírico, já que como “ser-no-mundo”, unifica-se à temporalidade, como se pôde perceber no poema “Alcântara”. Para Heidegger (2001), a temporalidade tem caráter estático, fora de si (ecstática). Cabe então ao Dasein3atinar seu passado e viver seu presente. Por uma observação autêntica do tempo, a acepção de futuro (adveniente) é ir ao encontro da morte, que o totaliza; assim, o ser-em-si-mesmo não se deixa embeber por questões mundanas, terrenas. Já o presente (apresentante) é tido como o momento em que se ocupa das coisas, enquanto o passado (retroviente) significa viver o que já ocorreu – estrutura sempre presente como manifestação. De modo sintético, compreende-se que, para Heidegger, temporalmente o Dasein é localizado em um passado que se mantém presente, o passado adianta-se ao futuro, e ainda o presente abarca passado e futuro. “Porvir” não significa aqui o agora que, ainda-não tendo se tornado “real”, algum dia o será. Porvir significa o advento em que a pre-sença vem a si em seu poder-ser mais próprio. É a antecipação que torna a 3 Conceito heideggeriano de forma ontológica de ser humano (o si-mesmo, o haver sido de um porvir), cuja identidade é a própria história (Nunes 1986: 132-133). Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 68 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS presença propriamente porvindoura, de tal maneira que a própria antecipação só é possível na medida em que a pre-sença, enquanto ente, sempre já vem a si, ou seja, em seu ser, é e está por vir. [...] Assumir o estar-lançado significa, porém, ser, em sentido próprio, a pre-sença, no modo em que ela sempre já foi. [...] Chamamos de temporalidade este fenômeno unificador do porvir que atualiza o vigor de ter sido (Heidegger 2001: 119-120). Na obra mencionada de Torres há uma divisão interessante, entre sessões denominadas “Portugueses” e “Novo Mundo”. A primeira aborda questões relativas ao Império Português do séc. XVI ao XVIII, cujo foco seria a expansão marítima/territorial e o da colonização. Tal abordagem relaciona-se com a segunda parte, “Novo Mundo”, que contém subdivisões de poemas que tematizam a colonização da América ibérica. O poema “Sevilla”, constante na primeira parte de No fim das terras, apresenta saltos das antigas formações urbanas a atuais conjunturas históricas nas cidades. O salto realizado, além de histórico, também é geográfico, marcando um típico fim das fronteiras da ordem econômica e cultural da internacionalização. SEVILLA por la Plaza Mayor arde el azufre, arriba una canasta de humo: carga las camadas brujas; se ríen mucho, sueltan hojas amarillas rojas ocre color – es su memoria todo es blanco e quebradizo. el perro vagabundo, sucio el hocico de orín y cinabrio, se confunde con la gente en disfraz; es fiesta de todos los santos en el fuego azul de la tarde erran los pájaros y se caen por tierra, el ojo en un punto, gran semilla redonda que solo la ven los pájaros olor de limón y naranjas maduras una fuente muy delgada quiebra en el aire - solo escucho a tus celos (Torres 2004: 36). Sevilha foi tomada durante o Golpe de Estado na Guerra Civil Espanhola; todo o movimento esquerdista revolucionário foi massacrado nessa ocasião, na primeira metade do século XX. Tal aspecto, ligado a uma Sevilha passada, que remete a um momento histórico anterior, parece fundir-se ao presente e ao passado daquele espaço urbano; a memória da revolução espanhola coabita com a contemporaneidade em “se ríen mucho, su el tanhojasamarillas / rojas ocre color – es su memoria”. Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 69 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS Composto por um quarteto e três tercetos, o poema parece progressivamente caminhar no fusco da realidade espacial e histórica da cidade rumo à sua dissolução e, assim, também rumo a sua reconstrução. A festa de todos os santos, rito cristão de celebração de todos os mortos, cuja tradição fundadora no ocidente ocorreu em Sevilha, aparece distorcida metaforicamente: a homenagem que o poeta dá aos que foram mortos naquela praça relacionada à centenária tradição da festa propriamente dita. O passado também pode ser observado em vilas ou descrição de aglomerados, como o caso dos Sete Povos das Missões, localizado no Sul do Brasil: SETE POVOS partiram os padres partiram todos a ferros alastra o fogo na jeira na resteva assoleada na língua do faxinal – que tudo é sopapo barro socado no vão da madeira seca arde Miguel arde do fogo aceso arde da ardência do arcanjo. da linda os padrões apaga tisna de fumo as quinas distrata a tratada raia (Torres 2004: 139). O texto não apenas trata de momento histórico em que há influência do tempo presente (seu aqui e seu agora), como também expressa o conhecimento do conteúdo de acumulação da tradição literária, já que o verso “da linda os padrões apaga tisna de fumo as quinas” dialoga com o célebre poema épico árcade O Uraguai (1769) de Basílio da Gama, que trata da expulsão dos jesuítas da região dos Sete Povos das Missões: “Fumam ainda nas desertas praias/ Lagos de sangue tépidos e impuros/ Em que ondeiam cadáveres despidos” (Gama 2011: 35). Na pós-modernidade existe a sensação de inserção num eterno presente, em que não há mudanças, pois há um movimento na sociedade contemporânea que tende à presentificação. A arte pós-moderna revisita o passado por meio de paródias, de recuperação de formas que foram deixadas ou ignoradas, formas eruditas ou populares que deixaram de ter vigência. A busca do passado aponta para a revisão da história daquilo que foi suprido por opressão, realiza uma rejeição da história convencional voltada para o futuro e enfoca o olhar no passado, de modo a buscar meios esquecidos de relação entre homem e natureza. Sente-se a necessidade de “desler” a forma humana para resgatar as formas da natureza que são retomadas pelo discurso, como no poema de Amaral, ELEGIA DE ZURIQUE Sabem-me a lodo as águas deste rio à medida que o tempo sobre a espuma. dilui a minha juventude: é fácil deixar-me andar, de mãos nos falsos bolsos, como se abril saboreasse em mim Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016 Olívia Barros de Freitas (UFRGS) 70 ) LIRISMO, ESPAÇO E TEMPO NA POESIA DE FERNANDO PINTO DO AMARAL E MILTON TORRES: FRONTEIRAS INDISSOCIADAS [...] - inertes sons ardendo, muito próximos disso a que alguém terá chamado um dia simplesmente DADA no Cabaret Voltaire, aqui tão perto. E no entanto, neste final de século e de milénio os cabarets são outros e repetem o exausto espectáculo dos sentidos espelhando o desvario e a «penumbra - das almas» indiferentes e agrestes [...] ainda me conhece e vai traçando entre os restos da neve um só caminho fiel ao que estremece sobre o lago, a uma só imagem cada vez mais nítida e perfeita. Quem morreu para que ela nascesse? Nada sei, mas recupero, súbita, a. certeza: é esse o meu futuro e nunca tive outras opções que não obedecessem ao naufrágio das nuvens inocentes no interior de um peito aberto à música feliz sob a moldura das montanhas em redor da cidade. Vale mais cumprir essa retórica absurda entre as metamorfoses do crepúsculo e anoitecer à deriva, descobrindo no desonesto rasto de algum sonho a luz que vem do caos, toda a memória dessa primeira lágrima chorada por um deus moribundo, ao despedir-se deste silêncio pouco a pouco igual à vida que se rasga mundo a mundo, à dor que mal respira entre as palavras (Amaral 2000: 411-413). Não há sincronia entre a cidade-passado expressa em “Dez elegias para o fim do milênio”. A paisagem urbana da cidade-presente, que abriga justaposições imagéticas, menções à experiência visual de uma paisagem é, no entanto, transfigurada pela mediação das imagens e imaginação. A poesia, ao mesmo tempo que indaga a si mesma sobre sua efetividade ao representar a cidade e espaços geográficos distintos, finda por evidenciar o esgotamento da distribuição e o deslocamento humano na pós-modernidade ou se culmina por exaltar a cidade. Os poemas apresentados de Amaral (“Elegia de Lisboa” e “Elegia de Zurique”) e de Torres (“Águas Emendadas”, “Alcântara”, “Sete Povos”) sintetizam os seguintes pontos até aqui apresentados: a) retomada de signos e imagens que Londrina, Volume 15, p. 61-75, jan. 2016
Description: