Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt* Political freedom and democratic culture on Hannah Arendt Yara Frateschi [email protected] (Universidade de Campinas, São Paulo, Brasil) Resumo: Este artigo analisa o papel Abstract: This article analyzes the role desempenhado pelos conselhos of the revolutionary councils in Hannah revolucionários nas reflexões políticas Arendt’s political reflections based on On de Hannah Arendt a partir de Sobre a Revolution. I intend to show that Arendt revolução. Pretendo mostrar que Arendt resorts to the councils not to sketch a model recorre aos conselhos não para desenhar um of a political system aiming to replace modelo de sistema político que substitua o the representative model, but, rather, to representativo, mas sim para denunciar a denounce the restriction of participation restrição da participação nas democracias in the current representative democracies representativas atuais baseadas no based on the party system, to the detriment sistema de partidos, em prejuízo tanto of both the exercise of political freedom and do exercício da liberdade política quanto the development of a democratic culture. do desenvolvimento de uma cultura democrática. Palavras-chave: Hannah Arendt; sistema Keywords: Hannah Arendt; councils; de conselhos; participação; representação; participation; representation; democratic cultura democrática. culture. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v21i3p29-50 Em Sobre a revolução, Hannah Arendt assume como causa mais urgente do tempo presente a causa (mais antiga de todas) da liberdade contra a tirania (Arendt, 2011, p.35). O livro de 1963 pinta um quadro sombrio e de profunda instabilidade, que alerta para a ameaça que a guerra impõe à esperança de emancipação, agravada pela possibilidade da destruição total numa guerra nuclear. O cenário da Guerra Fria tangencia o livro, como não poderia ser diferente, mas o diagnóstico aponta, com vistas largas, para o sepultamento da liberdade política, que se vê atacada * A primeira versão deste texto foi apresentada no colóquio “IV Jornadas Internacionais Hannah Arendt”, que aconteceu na Universidade Estadual de Campinas em 2013, em homenagem ao cinquentenário de Sobre a revolução. A versão que agora vem a público privilegia o tema dos conselhos revolucionários e contou com a leitura crítica e cuidadosa de Renata Romolo Brito, Ana Cláudia Silveira, Nathalia Rodrigues da Costa, Paulo Bodziak Junior, Leonardo Rennó, Johnatas Ximenes e Otávio Vasconcelos, aos quais agradeço de maneira muito especial. Aproveito também para agradecer as sugestões dos pareceristas que avaliaram este artigo e que contribuíram para o seu aperfeiçoamento. 29 Yara Frateschi por todos os lados: pelas “ciências desmistificadoras modernas”, a sociologia e a psicologia; pelos revolucionários de esquerda, que rebaixam a liberdade a um preconceito pequeno-burguês; pela direita conservadora, que despreza a capacidade do homem comum de formar juízo político; pelo próprio Estado de bem-estar social, que mantém a liberdade pública como privilégio de uma minoria; pelo consumismo e pela letargia política da sociedade de massa; pelo sistema de partidos e pela forma representativa de governo, que exclui a maioria da política; pela vitória da liberdade negativa nas sociedades liberais e a consequente desvalorização da liberdade pública. Nessa constelação, a causa da liberdade assumida por Arendt coincide com a defesa do direito à participação política: “liberdade política significa o direito de ser participante no governo, afora isso, não é nada” (idem, p.278). Diferentemente de A condição humana, não é na polis grega que Arendt se baseia, como contraponto e experiência avessa, para abordar o tema da perda moderna de liberdade, mas sim nas revoluções modernas e no fenômeno “impressionante” dos conselhos revolucionários (Arendt, 2011, p.329). Embora o diagnóstico seja sombrio, a modernidade também proporciona, através das suas revoluções, a descoberta de que o novo início pode ser um fenômeno político e não apenas científico, resultado do que os homens “haviam feito e do que podiam conscientemente começar a fazer” (idem, pp.77-78)1. A partir daí a “novidade” chega à praça pública, torna-se “o começo de uma nova história, iniciada - embora inadvertidamente – por homens em ação” (idem, p.78). A novidade consistia basicamente na experiência proporcionada pelas assembleias revolucionárias e pelo sistema de conselhos: a experiência da liberdade pela participação na decisão dos assuntos públicos. Embora os conselhos tenham sido experiências breves, porque logo aniquiladas pela burocracia do Estado-Nação ou pela máquina dos partidos, eles interessam a Arendt por terem sido a “única alternativa que já apareceu na história e que tem reaparecido diversas vezes” a formas de governo que sistematicamente alienam de maneira arbitrária a maioria dos processos decisórios (Arendt, 1973, p.199). Interessam também pelo que comunicam: “os conselhos dizem: queremos participar, queremos debater, queremos que nossas vozes sejam ouvidas em público e queremos ter a possibilidade de determinar o curso político do nosso país” (idem, ibidem). Os conselhos são eventos que desvelam o desejo de liberdade política. Um dos principais objetivos de Sobre a revolução é denunciar que esse desejo 1 Estou de acordo com Adriano Correia quando diz que “Arendt, que jamais acreditou no progresso e inclusive o julgava uma ofensa à dignidade humana, nunca tomou parte no catastrofismo ou em qualquer outra convicção de que o futuro pudesse estar predeterminado e de que a liberdade só poderia se dar paradoxalmente em alguma pretensa dinâmica da história. (...). O espírito revolucionário, um tesouro a ser encontrado, conformou para ela a mais flagrante imagem moderna da liberdade (...). Reaviva-se, assim, a promessa de que a liberdade possa ser restituída como uma experiência política e se afirme em oposição à prevalência de uma vida que não aspira redimir-se do aprisionamento ao âmbito da necessidade” (Correia, 2014, p.209). 30 Cadernos de Filosofia Alemã | v. 21; n. 3 | pp.29-50 Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt de participar, debater e se fazer ouvir, que emerge nas revoluções modernas, é quase que inteiramente frustrado num sistema político que reduz a cidadania ao momento do voto e que não estabelece instituições apropriadas para a participação política. Consequentemente, vê-se comprometida a formação de uma cultura democrática que valorize a liberdade política. Neste texto, eu pretendo mostrar que Arendt reage a esse estado de coisas defendendo que se dê um passo além da democracia formal, no sentido da ampliação da participação política e da construção de uma cultura efetivamente democrática e plural. Para ela, a democracia baseada em direitos e no sufrágio universal não é capaz de promover liberdade e cultura política se não garantir espaços concretos para a participação que são, por sua vez, sementeiras para o desenvolvimento de um ethos democrático que valorize o debate público e o compromisso com as questões de interesse comum. A resposta que Arendt oferece passa, portanto, por dois elementos que devem se somar ao estabelecimento da Constituição e à garantia de direitos e liberdades individuais e civis: a institucionalização da liberdade e a formação de uma cultura política. Uma reforça e alimenta a outra, sendo, ambas, condições de uma vida política democrática que não cede à letargia ou à aceitação obediente de qualquer forma de governo baseada na exclusão da maioria dos processos decisórios. Em Sobre a revolução, os temas da institucionalização da liberdade e da cultura democrática ganham tratamento teórico à luz da interpretação que Arendt faz do sistema de conselhos, instaurado em diversos contextos desde a Revolução Francesa, passando pela Revolução Americana, pela Comuna de Paris, pela Revolução Russa, e, finalmente, instaurado brevemente na Revolução Húngara. Na primeira parte deste texto, abordo o sistema de conselhos para tratar da necessária institucionalização da liberdade política através da criação de espaços concretos onde a liberdade possa se efetivar. Na segunda parte, analisarei os aspectos de uma cultura política que valoriza a liberdade como “modo político de vida” (Arendt, 2011, p.61). Com isso, proponho uma leitura de Sobre a revolução que contesta e problematiza a um só tempo tanto o utopismo ingênuo (ou irresponsável) quanto o elitismo conservador que alguns intérpretes atribuem ao pensamento político de Hannah Arendt. 1. Os conselhos como “alternativa” Em Sobre a revolução, diante do diagnóstico da severa restrição da liberdade política também nas democracias formais (como a norte-americana), os conselhos revolucionários aparecem como uma “alternativa”. Os conselhos suscitam a esperança de uma transformação do Estado e da instauração de uma nova forma de governo “que permitisse a cada membro da sociedade igualitária se tornar um ‘participante’ nos assuntos públicos” (Arendt, 2011, p.331). Entendo que, ao trazer à memória esse Cadernos de Filosofia Alemã | dez. 2016 31 Yara Frateschi “tesouro”, a intenção primordial de Arendt é desnaturalizar o modo burocrático e elitista pelo qual nos organizamos politicamente nas democracias representativas baseadas no sistema de partidos, que deixa de ser – à luz desse fenômeno - a única alternativa possível, a única alternativa “realista” ao abuso de poder, à ditadura (ou ao totalitarismo). A recorrência da instituição de conselhos revolucionários – que são experiências concretas de ampliação do espaço público –a permite colocar em questão o confinamento da cidadania ao momento do voto: “as cabines em que depositamos as cédulas são, sem sombra de dúvida, muito pequenas, pois só têm lugar para um” (Arendt, 1973, p.200). Em outras palavras, a redução drástica do espaço público não é o preço que necessariamente temos que pagar para garantir direitos e integração social, embora tenha sido justamente assim que os sistemas representativos se consolidaram na modernidade, ou seja, em prejuízo da participação e com a exclusão da maioria dos processos decisórios, em prejuízo do debate público e da formação conjunta da opinião. Se é importante voltarmos (hoje) às revoluções modernas é porque elas almejavam algo mais do que o governo constitucional, algo mais do que proteção contra restrições injustificadas, do que a salvaguarda da vida e da propriedade (Arendt, 2011, p.60). Para Arendt, as liberdades liberais não esgotam o conteúdo concreto da liberdade moderna de origem revolucionária: “se a revolução visasse apenas à garantia de direitos civis, estaria visando não à liberdade e sim a libertação de governos que haviam abusado de seus poderes e violado direitos sólidos e consagrados” (idem, p.61). O que se pretendia era mais do que fomos capazes de conquistar: a participação nos assuntos públicos e a admissão na esfera pública (idem, ibidem). Desejava-se a liberdade “como um modo político de vida”. Embora as coisas tenham se resolvido em prejuízo da liberdade política, houve quem desafiou isso na modernidade, o que permite ao menos supor a possibilidade da ampliação da democracia. A alternativa é uma democracia mais participativa. Participação e Representação Isso não significa que Arendt proponha, em Sobre a revolução, a substituição do sistema representativo pela democracia direta baseada em conselhos2. Uma 2 Estou de acordo com Albrecht Wellmer e André Duarte a esse respeito. De acordo com Wellmer, que traduz muito acertadamente o sentido da crítica que Arendt faz à representação à luz do sistema de conselhos, a oposição entre democracia direta e representativa “não pode ser interpretada como alternativa entre dois sistemas políticos totalmente diferentes, mas como uma alternativa dentro da própria democracia liberal: mais concretamente, entre uma versão meramente formal da democracia e outra mais substantiva ou participativa” (Wellmer, 1999, p.93). Segundo André Duarte, “o sistema de conselhos, tal como pensado por Arendt, não visa negar a representação política tout court, mas redefinir as bases sobre as quais ela se dá no contexto das atuais democracias parlamentares” (Duarte, 2000, p.311). 32 Cadernos de Filosofia Alemã | v. 21; n. 3 | pp.29-50 Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt tal proposta seria de uma ingenuidade atroz, que condenaria a obra de 1963 ao anacronismo - ou ao “utopismo irresponsável” que lhe imputa Margareth Canovan - e fatalmente bloquearia a possibilidade de um diálogo crítico com o seu próprio tempo3. A acusação de anacronismo e utopismo, que não é rara, peca por desentender que Arendt não está propondo um modelo acabado para substituir o vigente. Peca por desentender também que ela questiona a representação política, mas não como algo de que podemos prescindir, e sim como “um dos problemas mais difíceis e cruciais da política moderna desde as revoluções” (Arendt, 2011, p.299). Seria “utopismo” denunciar a exclusão do povo da esfera pública (idem, p.300) e criticar um sistema que fornece espaço público apenas para os representantes? Se sim, Arendt aceitaria de bom grado a “acusação”: Sobre a revolução efetivamente denuncia que, sem incremento da participação, os sistemas políticos representativos tendem cada vez mais a restringir as vozes, a pluralidade, a liberdade e a igualdade políticas e a favorecer uma minoria de cidadãos em detrimento do povo. Mas, para Arendt, os conselhos e a cultura política que eles alimentam e da qual 3 Se Arendt pretendesse que o sistema de conselhos fosse um modelo para estrutura da council democracy, um modelo de sistema político para substituir o sistema representativo, uma série de dificuldades se imporiam, tais como a manutenção da integridade dos conselhos locais quando da sua articulação em nível nacional e a coordenação das decisões tomadas em todos os níveis (Cf. Sitton, 1987, pp.87-89). Outra dificuldade, de enorme relevância, diz respeito à solução das questões administrativas, pois Arendt não aposta que os conselhos sejam adequados para desempenhar essa função e tem certeza de que isso lhes seria muito prejudicial, afinal, equivaleria a confundir o político com o social. Como aponta corretamente John F. Sitton, Arendt não nos diz como os administradores seriam escolhidos e que tipo de relação teriam com os conselhos (idem, p.89). Sabemos que Arendt é severamente criticada por não esclarecer qual seria a solução desses problemas e, não raro, os críticos lhe imputam a pecha de utópica por isso. Margareth Canovan, por exemplo, a acusa de “irresponsabilidade utópica” (Cf. Canovan, 1978, pp.8;18). Entendo que a leitura de Canovan deriva da interpretação equivocada de que Arendt pretendia, com o sistema de conselhos, propor uma reforma política, uma alternativa à democracia representativa existente. Para ela, o tom que Arendt emprega ao tratar dos conselhos não permite pensar que ela pretendesse algo diferente disso (idem, pp.19-18). Não me parece, entretanto, que ao analisar o sistema de conselhos Arendt pretendesse estabelecer o modelo de uma forma inteiramente nova de democracia direta, por isso não estou interessada aqui na estrutura do sistema de conselhos, que certamente seria inadequada para sociedades complexas. Interessa-me, em contrapartida, compreender em que medida os conselhos revolucionários permitem a Arendt elaborar uma crítica justificada da redução do espaço público no sistema representativo e defender, concomitantemente, que a ampliação dos espaços participativos é condição de possibilidade da ampliação da liberdade política nas democracias representativas. Embora Canovan, em Hannah Arendt: a reinterpretation of her political thought (1992), suavize o tom adotado no artigo de 1978 e deixe em aberto a possibilidade de que Arendt talvez não pretendesse, com o sistema de conselhos, propor uma reforma do sistema político (Cf. Canovan, 1992, p.236), ainda assim ela continua a insistir na ideia de que os conselhos, se implementados, significariam o estabelecimento da democracia direta, o fim do sistema de partidos, das eleições gerais e sufrágio universal (Cf. idem, pp.237-8). Se Canovan deixa de ser referir a Arendt como uma “utópica irresponsável”, permanece equivocada quanto ao suposto elitismo arendtiano, que privilegiaria uma elite de políticos “genuínos” em detrimento dos políticos profissionais. Parece-me, portanto, que embora Canovan amenize o tom da crítica a Arendt, ela continua a desentender o papel que o sistema de conselhos desempenha nas reflexões políticas arendtianas. A reinterpretação que o livro de 1992 propõe não é suficiente para apagar os vestígios da severa (e equivocada) crítica de 1978, ao menos no que diz respeito aos conselhos: a cegueira elitista (Cf. idem, p.237), o fim das eleições e do sufrágio universal não permaneceriam sendo um sinal de “utopismo irresponsável”? Cadernos de Filosofia Alemã | dez. 2016 33 Yara Frateschi se alimentam não são um “sonho romântico”, uma “utopia fantástica” sustentada por quem “desconhece as realidades da vida” (Arendt, 2011, pp.329-330). Pensam assim os supostos realistas, “realismo” que costuma acompanhar uma visão do processo democrático excessivamente centrada na representação e nos partidos políticos e que esconde uma maneira excludente (se não elitista) de ver a política, pois “não leva em conta a capacidade do cidadão médio de agir e formar opinião própria” (idem, pp.330-1). Essa descrença nas capacidades políticas do povo, contra-ataca Arendt, “não muito diferente do realismo de Saint-Just, está solidamente fundada na determinação consciente ou inconsciente de ignorar a realidade dos conselhos e tomar como dado assente que não existe e jamais existiu alternativa alguma ao sistema presente” (idem, p.339). Alguns anos depois, em 1970, lembrando que os conselhos revolucionários foram destruídos em todo lugar pela burocracia do Estado ou pela máquina dos partidos, Arendt esclarece: se é uma utopia, trata-se de uma utopia do povo, não de teóricos ou de ideólogos (Arendt, 1973, p.199). Diante da sua recorrência na história e da sua espontaneidade, cumpre entender o que eles querem dizer. E eles dizem: “queremos participar”. Enquanto a origem histórica do sistema de partidos repousa no Parlamento, os conselhos nascem a partir das “ações e demandas espontâneas do povo” (Arendt, 1958, p.30). No entanto, além de terem sido sistematicamente hostilizados pelas burocracias partidárias à esquerda e à direita, também foram negligenciados pelos teóricos e cientistas políticos (idem, ibidem). Não é em “raridades históricas” (cf. Sternberger, 1977, p.143) que Arendt está interessada, mas em denunciar essa negligência dos eventos e das demandas populares pelos teóricos e cientistas políticos. Em um texto publicado cerca de um ano depois da Revolução Húngara, ela se volta para aquele acontecimento “totalmente inesperado”, que ninguém mais acreditava ser possível (Arendt, 1958, p.7), certa de que os “eventos, passados e presentes, (...) são a fonte mais confiável de informação para aqueles engajados na política” e certa de que, diante deles, as teorias devem ser reexaminadas4. Em Sobre a revolução, provavelmente atendendo a essa necessidade de revisão que se torna premente depois da Revolução Húngara, Arendt se engaja em compreender o significado daqueles eventos e as diferenças entre o modo de organização política e escolha dos representantes nos conselhos revolucionários e no sistema de partidos5. 4 “Os eventos, passados e presentes, – e não as forças sociais e as tendências históricas, não os questionários e as pesquisas de motivação, nem quaisquer outros dispositivos no arsenal das ciências sociais – são os verdadeiros e únicos recursos capazes de ensinar de maneira confiável os cientistas políticos, na medida em que são a fonte mais confiável de informação para aqueles engajados na política. Depois que o evento da sublevação espontânea na Hungria aconteceu, toda política, teoria e previsão das potencialidades futuras requer reexame” (Arendt, 1958, p.8). 5 Há uma mudança de foco na abordagem da ação e do espaço público em Sobre a revolução em relação a A condição humana. Na obra de 1963, a ênfase recai menos sobre a expressão da identidade única do indivíduo (do “quem”) e mais sobre a ação em concerto e sobre a formação conjunta da opinião. Isso não significa necessariamente que as duas abordagens sejam incompatíveis, mas é muito provável 34 Cadernos de Filosofia Alemã | v. 21; n. 3 | pp.29-50 Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt Os princípios nos quais eles se baseiam são opostos. Nos conselhos os eleitos são escolhidos na base e não selecionados pela máquina partidária, são escolhidos a partir de suas qualidades e habilidades políticas e não por adesão a qualquer tipo de facção, sua força deriva do seu poder de persuasão e da confiança capaz de suscitar e não do aparato burocrático do partido (idem, pp.30-1). Não pretendo analisar aqui as possíveis fragilidades da análise que Arendt faz do sistema de partidos (ou a sua resistência em reconhecer nele qualquer produtividade), mas ressaltar a sua crítica à concentração excessiva de poder nas mãos de uma elite de políticos profissionais, que não dialogam com o povo, mas apenas entre si e vivem das “manobras mesquinhas da política partidária” (Arendt, 2011, p.347). Se ela não nos oferece um modelo pronto e acabado, claramente defende, baseada nos eventos revolucionários, que a ampliação das instâncias participativas - que reiteradamente aparece na história como uma demanda popular - é uma alternativa a essa materialização da vida política exclusivamente dentro dos limites do Congresso, a qual relega aos eleitores apenas a tarefa de consentir ou recusar escolhas e propostas de cuja construção eles não participaram (idem, p.345). Ora, diz Arendt, “isso não passa de uma imitação barata de diálogo no governo partidário moderno” (idem, ibidem). Institucionalização da liberdade Uma das teses centrais da obra de 1963 é a de que a redução do espaço público e da cidadania não se resolvem se não houver instituições que comportem a participação6. O malogro da Revolução Americana se deveu ao fato de que a Constituição forneceu espaço apenas para os representantes do povo e não para o próprio povo (idem, p.301), omitindo as instituições que haviam sido as “sementeiras da revolução”. Assim, as assembleias municipais, “nascedouros originais de toda a atividade política no país” (idem, p.302), foram negligenciadas, o que levou, que a mudança de foco da obra da 1958 para a obra de 1963 tenha relação com a maneira pela qual a Revolução Húngara impacta as reflexões políticas de Arendt, suscitando novas possibilidades e novas questões políticas. Um indício disso é que a perda (moderna) da liberdade não é mais denunciada a partir da experiência da polis grega, mas contestada a partir das experiências revolucionárias modernas. Neste artigo, eu pretendo mostrar que esse deslocamento pode ser verificado na elevação do problema propriamente moderno da representação política (e das limitações de uma concepção estritamente liberal de liberdade e de cidadania) ao primeiro plano de Sobre a revolução e na defesa inconteste da ampliação da participação como remédio para a elitização e burocratização da política características da época moderna. Estou menos interessada aqui na tensão, tantas vezes detectada pela literatura crítica, entre dois modelos de ação (expressivista e comunicativo) ou entre dois modelos de espaço público (agonístico e participativo), que supostamente marcariam a obra arendtiana até o fim. Interessa-me, em contrapartida, a significativa mudança de foco que vai da ação como expressão do “quem” para ação como “esforço conjunto”, que podemos detectar a partir de Sobre a revolução. A respeito da tensão entre dois modelos de ação e de política em Arendt conferir, por exemplo, Passerin D’Entreves, 1944 e Seyla Benhabib, 1996. 6 Sobre o tema da institucionalização da liberdade, conferir Seyla Benhabib, 1996, pp.155-166. Cadernos de Filosofia Alemã | dez. 2016 35 Yara Frateschi inevitavelmente, à exclusão do povo da esfera pública. Para corrigir essa exclusão, a liberdade precisa encontrar instituições que lhe sejam adequadas: a liberdade consiste no direito à participação no governo e o governo é “essencialmente poder organizado e institucionalizado” (Arendt, 2009a, p.69). Os conselhos revolucionários, assim como as assembleias municipais americanas e as sociedades francesas, são exemplos de espaços concretos onde o desejo de participação e de debate encontrou condições de realização. Eram espaços de formação conjunta da opinião. Da sua destruição dependeu um arranjo institucional que favoreceu a concentração de poder nas mãos de poucos (os representantes) em detrimento do povo e da sua aspiração à participação. Novamente, se Arendt não chega a nos propor um modelo, é certo que, para ela, só se pode combater a exclusão política se a Constituição garantir instituições para a participação popular. O princípio de que o poder reside no povo permanece uma ficção se o poder não estiver de algum modo encarnado em instituições de autogoverno (Cf. Arendt, 2011, pp.217-8), como aconteceu na Revolução Americana antes do seu malogro e nas demais revoluções modernas antes da destruição deliberada dos conselhos pelos “revolucionários profissionais”. Aliás, somente assim se pode reverter um processo que, por deficiência institucional, tende a gerar letargia política, “precursora da morte da liberdade pública”, ou o “espírito de resistência a qualquer governo eleito” (idem, p.300), ambos danosos para a democracia. Convém esclarecer, para evitar um recorrente mal-entendido, que, em Sobre a revolução, Arendt não se vale de um modelo de espaço público que pressupõe homogeneidade política (ou cultural) e que conta com a participação ativa de todos os cidadãos, sem distinção7. O problema não é a autoexclusão da política, mas sim 7 Entre os autores que tendem a interpretar Arendt na chave do republicanismo encontramos um frequente mal-entendido a respeito de uma suposta exigência de homogeneidade política ou cultural. Críticos ou simpatizantes do modelo republicano (que a interpretam como proponente de um modelo republicano) se equivocam a esse respeito, como é o caso de Habermas em Três modelos normativos de democracia. Embora ele acerte ao identificar Arendt com certos aspectos da tradição republicana, com a qual Arendt de fato dialoga, essa identificação não procede no que diz respeito à “exigência excessiva” de que a formação da vontade comum realiza-se na forma de uma auto compreensão ética e de que o conteúdo da deliberação apoia-se num consenso de fundo baseado no fato de que os cidadãos partilham uma mesma cultura (sendo dependente, portanto, da eticidade concreta de uma determinada comunidade). Se isso implica, como Habermas parece sugerir, que a integração social e a vida política “republicana” dependam de que a comunidade tenha uma “identidade” (política ou cultural) em seu conjunto, da qual dependeria o consenso, então Arendt tem que ser excluída do grupo dos republicanos. É verdade, como veremos, que Arendt elege a solidariedade com um elemento de integração social, como os republicanos descritos por Habermas (cujo expoente contemporâneo é F. Michelmann), mas isso não a leva a defender que todos os cidadãos estejam igualmente comprometidos com os assuntos políticos e tampouco a leva a sacrificar o “pluralismo cultural” (cf. Habermas, 1995, p.44). Nesse aspecto, estou inteiramente de acordo com Wellmer, segundo o qual a crítica de Arendt ao liberalismo não a leva a reivindicar as virtudes do republicanismo cívico ou a sustentar um sonho regressivo, tipicamente comunitarista, “a respeito da comunidade ou dos valores que geram a comunidade, sejam valores nacionais, étnicos ou religiosos” (Wellmer, 1999, pp.90-91). Quanto à homogeneidade cultural ou ética, embora não seja este o tema deste artigo, entendo que nada está mais distante do pensamento de Hannah 36 Cadernos de Filosofia Alemã | v. 21; n. 3 | pp.29-50 Liberdade política e cultura democrática em Hannah Arendt a exclusão imposta por outros ou por um certo arranjo institucional: esta é uma “discriminação arbitrária” (Arendt, 2011, p.349), que afronta o princípio da igualdade política. Arendt admite que “nem todos querem ou têm que se interessar por assuntos públicos” (Arendt, 1973, p.200): a democracia pode caminhar bem mesmo que parte da população renuncie à política. No entanto, a democracia estará comprometida se o direito e a oportunidade de participar não forem dados a todos (idem, p.201). A exigência arendtiana de que a participação seja um direito está em conformidade com a noção de igualdade política que, desde Origens do totalitarismo, é definida como um princípio regulador da organização política, segundo o qual pessoas distintas têm direitos iguais (Arendt, 2004, p.76 e Arendt, 2011, p.59). A liberdade em sentido positivo “só é possível entre iguais”, igualdade que requer personalidade jurídica8 e também espaços concretos para a sua efetivação (Arendt, 2011, p.344). Os espaços de liberdade não podem ser “oásis num deserto”, precisam se institucionalizar de algum modo (idem, p.349). A igualdade era, segundo Arendt, uma aspiração dos revolucionários modernos, totalmente frustrada com a destruição do sistema de conselhos. O Terror Jacobino, por exemplo, destruiu a “principal ambição política do povo tal como se manifestou nas sociedades, a ambição de igualdade, a pretensão ao direito de escrever as petições dirigidas aos delegados ou ao conjunto da Assembleia com o orgulho de assinar como ‘seus iguais’” (idem, p.312). Mas isso não foi privilégio do Terror, pois o sistema de partidos nas democracias representativas, embora sem recurso à violência sistemática, também enclausura a cidadania e frustra a ambição de igualdade. Cumpre notar também que Arendt não contesta o surgimento de uma “elite política”, embora ela desgoste do termo “elite” porque “implica uma forma oligárquica de governo, a dominação da maioria sob o domínio de uma minoria” (Arendt, 2011, p.345). O sistema representativo centrado nos partidos é deficiente porque a relação entre representante e eleitor se corrompe ao se transformar numa relação entre vendedor e comprador (idem, p.346). Embora inicialmente os partidos tenham aberto a carreira política a indivíduos das classes baixas, e permitido a substituição das elites pré-modernas de berço e riqueza, “em momento algum habilitou o povo qua povo a ingressar na vida política e a se tornar participante dos negócios públicos” (idem, ibidem). Em outras palavras, o sistema de partidos não foi capaz de alterar de maneira significativa a relação tradicional entre a elite Arendt. Basta, para o momento, lembrar da sua reflexão sobre a questão judaica (o problema da assimilação e a questão da secularização), das consequências que ela extrai da caracterização do pária, como aquele que é marginalizado em função da sua alteridade, e do parvenu, como aquele que nega a si mesmo e à sua identidade para ser aceito pela cultura dominante. Para Arendt, a vida política conforme a liberdade não requer homogeneidade alguma, mas sim, antes de tudo, que a todos seja dada a oportunidade de participar das questões do governo. 8 Sobre o tema da personalidade jurídica e o papel do direito na política arendtiana: Brito, R. R. (2013). Direito e política na filosofia de Hannah Arendt, Unicamp. Cadernos de Filosofia Alemã | dez. 2016 37 Yara Frateschi dirigente e o povo, pois não foi capaz de fazer “os muitos” adentrarem no espaço público: eles permanecem, ainda, na obscuridade. Se a reversão dessa situação de exclusão política depende da institucionalização da participação, depende também de que a política deixe de ser uma profissão para poucos, de que a “elite política” não seja escolhida de acordo com critérios e padrões apolíticos (idem, p.347). Os homens dos conselhos também eram uma “elite política”, a diferença é que eram uma elite do povo surgida no povo, que respeitava o princípio da autosseleção nos órgãos políticos de base e o princípio da confiança (característicos de uma forma federativa de governo). Para evitar outro recorrente mal-entendido9, ressalto que se Arendt aceita como inevitável a formação de uma “elite política”, ela defende, em Sobre a revolução, que a elite se forme a partir dos órgãos políticos de base e que os critérios de escolha dos representantes sejam propriamente políticos. O critério não é moral (Arendt, 1958, p.31) e tampouco econômico (Arendt, 2011, p.348), o que significa que uma democracia está seriamente comprometida se a representação política é privilégio dos “homens bons”, da elite econômica ou de qualquer outra elite consolidada. Para o que interessa dentro dos limites deste artigo, a conclusão 9 Margareth Canovan entende que o pensamento arendtiano é marcado por uma séria inconsistência em função da persistência de aspectos elitistas e democráticos em sua obra. Arendt pode ser lida ao mesmo tempo como uma defensora da democracia participativa e como uma elitista à moda nietzschiana. Essa contradição também estaria presente em Sobre a revolução, pois na mesma obra encontraríamos a ideia de que a liberdade política é possível apenas para a classe ociosa dos aristocratas (Canovan, 1978, p.15) e a ideia concorrente de que a paixão pela liberdade pública pode ser compartilhada por todos, mesmo pelos “trabalhadores” (idem, p.16). Entretanto, o suposto elitismo arendtiano (em Sobre a revolução) se sustenta em uma interpretação equivocada do tema da “elite política”, como se os seus membros fossem cidadãos com certos atributos excepcionais e como se a ausência desses atributos justificasse a exclusão dos demais do âmbito da política. Canovan chega a colocar em questão se Arendt de fato esperaria que os membros da elite política pudessem ser de distintas classes sociais (idem, p.18). Uma leitura mais atenta de Sobre a revolução não cai nessa armadilha que Canovan arma para Arendt. Primeiro porque, como vimos, Arendt defende que a exclusão da política não pode ser imposta de fora, mas apenas auto imposta. Em segundo lugar porque Arendt é muito clara em explicitar que a elite política não se confunde com a elite social. Embora enxergue um pendor democrático na análise que Arendt faz das revoluções modernas e do sistema de conselhos, Canovan teima em ler Sobre a revolução no mesmo registro de A condição humana. Por não perceber a diferença significativa entre as duas obras, principalmente no que diz respeito à noção de “ação” e de “espaço público”, a sua leitura enclausura Arendt numa tensão perpétua (sendo que a ênfase parece recair sobre o elitismo), que teria sido evitada por uma leitura atenta de Sobre a revolução. Essa interpretação da obra arendtiana na chave do elitismo republicano se repete em Seyla Benhabib, mais precisamente no terceiro capítulo de Situating the self. Curiosamente, a mesma Arendt que lhe fornece instrumentos valiosos para uma reflexão a respeito do juízo moral e político (desenvolvida no capítulo 4 da mesma obra), é escolhida como representante exemplar da tradição republicana em “Models of public space: Hannah Arendt, the Liberal Tradition and Jürgen Habermas”. Como Canovan, Benhabib também detecta, na obra arendtiana, uma tensão entre dois modelos: um mais elitista e outro mais democrático. É certo que Benhabib (diferentemente de Canovan) detecta o elitismo arendtiano a partir de A condição humana e não de Sobre a revolução (Cf. Benhabib, 1992, pp.89-95). No entanto, a escolha de Arendt para representar o modelo republicano é problemática porque ressalta o aspecto agonístico e supostamente elitista de A condição humana em detrimento do aspecto democrático da obra de 1963. Parece que o “esquecimento” de Sobre a revolução é o preço a se pagar para enquadrar Arendt no modelo republicano. 38 Cadernos de Filosofia Alemã | v. 21; n. 3 | pp.29-50
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