Revista de Economia Política, vol 32, nº 1 (126), pp 87-108, janeiro-março/2012 karl Popper versus theodor Adorno: lições de um confronto histórico ANgeLA gANeM* Karl Popper versus Theodor Adorno: Lessons from a historical confrontation. In 1961, during the Congress of the German Society of Sociology, two great theoreti- cal references of the XX century faced in a historical debate about the logic of the social sciences. In addition to methodological issues strict sense, the confrontation became known as a debate between positivism and dialectic. The article first deals with the theoretical trajectories of Popper and Adorno and the relation of their theo- ries with their political and ideological certainties. On one hand, the trajectory of the Popperian epistemology is examined, its contributions and vigorous attacks on Marx in what he called ‘poverty of historicism” and false predictive Marxist world, and, on the other hand, the role of Adorno in the Frankfurt School, his criticism of totalitarianism and the defense of a critical emancipatory reason. The article also deals with the confrontation itself, the exposure of Popper’s twenty-seven theses that culminate with the situation logic and the method of the economy as exemplary for the social sciences and Adorno’s critical perspective of sociology and society as non-separable objects. In conclusion we show how the articulation of theory with the weltanschauung of each author helps to clarify the terms of the debate and how the confrontation contributed unequivocally to the dynamics of scientific progress and for the critical history of the ideas. Keywords: Popper and Adorno’s debate; dialects; positivism; popperian’s method. JEL Classification: B40. INTRODUçãO Em 1961, no Congresso da Sociedade de Sociologia Alemã, duas grandes re- ferências teóricas do século XX enfrentaram-se num debate histórico em torno da lógica das ciências sociais. Além de questões metodológicas stricto sensu, o con- * Professora visitante do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected]. Submetido: 8/outubro/2009; Aprovado: 18/junho/2010. Revista de Economia Política 32 (1), 2012 87 fronto ficou conhecido como o debate entre o positivismo e a dialética. O enfren- tamento entre Popper e Adorno, o autor consagrado como o maior epistemólogo do século XX e um dos mais influentes autores da Escola de Frankfurt, guarda uma grande distância da possibilidade da boa conversação de MacCloskey. Entretanto, é exatamente na reafirmação da absoluta impossibilidade de convergência, de con- senso, que reside o grande interesse desse debate. O século XX foi rico em debates polarizados, em confrontos teóricos, políticos e ideológicos, reflexo, entre muitas outras ocorrências, da instigante e problemáti- ca experiência do socialismo real e do horror irracional do holocausto. Do ponto de vista filosófico, severas críticas às limitações e aos descaminhos do projeto eman- cipador iluminista partiam das mais variadas vertentes. É nesse contexto que o artigo se move. Na primeira seção, pretende-se revelar quem são os dois autores/ atores desse debate, suas trajetórias teóricas e a relação que suas teorias guardam com suas convicções político-ideológicas. Para tanto, examinaremos a trajetória epistemológica popperiana, suas contribuições, bem como as críticas contundentes que fez a Marx, identificadas na “miséria do historicismo” e no que denominou de falso mundo profético marxista. Em seguida, examinaremos o papel de Adorno na Escola de Frankfurt, suas críticas ao totalitarismo e sua defesa de uma razão críti- ca emancipatória. A segunda seção trata do debate em si. De um lado, situam-se as 27 teses de Popper, que culminam com a lógica situacional e o método da economia como exemplar para as ciências sociais. De outro, a perspectiva crítica da sociolo- gia e da sociedade como objetos indissociáveis para Adorno. Finalmente, nas con- clusões, mostramos como a articulação da teoria com a visão de mundo de cada autor é um importante elemento esclarecedor dos termos do debate. A maior lição que retiramos desse episódio é que o confronto, o debate corajoso das ideias, para além de deixar um lastro de interesse pelas obras e pela história dos autores, con- tribuiu de forma inequívoca para a dinâmica do progresso científico e para a his- tória crítica das ideias. OS DOIS ATORES E SUAS TRAJETóRIAS NO CONTURBADO SÉCULO XX O século em que viveram nossos dois atores, Karl Popper e Theodor Adorno, foi marcado pelo desencantamento das possibilidades da razão humana na cons- trução de um mundo novo, cujas causas mais contundentes foram o holocausto e o totalitarismo stalinista. Vozes democráticas dissonantes marcaram sua posição contra uma razão totalitária, entre elas a de Hannah Arendt, uma filósofa sensível às agruras do século XX e que não passou ao largo do desastre político produzido pelo totalitarismo, fosse ele fascista ou stalinista, retirando dele lições e consequên- cias que marcaram profundamente a sua teoria. De nada valeram as nuanças e defesas de Marx contidas em suas obras, tampouco a sua crítica à degradação cultural das sociedades capitalistas ou a posição clara que assumiu com relação a 88 Brazilian Journal of Political Economy 32 (1), 2012 uma ação política emancipatória. Arendt pagou um preço alto por ter criticado o stalinismo e a ideia de uma ordem socialista fruto de uma razão fabricada. Dentro da filiação marxista, a Escola de Frankfurt conseguiu construir uma visão crítica da crise teórica e política do século XX consolidando a Teoria Crítica, termo que acabou designando a maior contribuição teórica da Escola. Adorno, um dos seus baluartes, situa-se entre os grandes autores que sustentaram o revigora- mento do marxismo na Alemanha, munido de novas perspectivas teóricas e afina- do com a discussão imposta pelos rumos do capitalismo no século XX. Construiu uma arguta crítica às expressões contemporâneas do totalitarismo, além de ter percebido as novas formas de dominação e de resistência. Constatou a existência de uma consciência manipulada por uma indústria cultural nociva e observou que a arte e a filosofia poderiam ser antídotos diante de uma experiência humana des- tituída de sentido. Numa posição diametralmente oposta, dois autores de peso definiram-se como intelectuais discordantes do socialismo como projeto de sociedade — Friedrich A. Hayek, um dos mais importantes teóricos e ideólogos do neoliberalismo, e Karl Popper, a maior referência entre os epistemólogos do século XX. Ambos foram duros com a ideia de um fim da história associada ao profético mundo socialista marxista. Guardadas as diferenças de método, a Miséria do historicismo de 1944 e A sociedade aberta e seus inimigos de 1945, ambos de Popper, e o Caminho da servidão, de Hayek, publicado originalmente em 1946, têm o mesmo alvo: desmon- tar cientificamente o argumento da possibilidade de uma leitura da história e der- rubar a visão profética do socialismo decorrente de supostas leis imanentes. No lugar do socialismo, temos a apologia do mercado para Hayek e, em Popper, a crença na eficiência de reformas institucionais. A repaginação dessa perspectiva expressou-se na visão extremada de Hayek, uma forma caricaturada da ideia de inexorabilidade, desta feita do mercado. Este, com suas leis imanentes (as regras necessárias da concorrência), determinaria um processo sem sujeito que culminaria na democracia liberal, a face política da vitória da lógica do mercado e da globa- lização. Na década de 1960, trinta anos antes da ascensão do discurso do mercado assentado na inexorabilidade, debatiam-se nos círculos acadêmicos teorias e méto- dos que dessem conta da lógica das ciências sociais. Com perspectivas diferentes, os dois autores aqui tratados confrontaram-se num debate histórico. Para entender as nuanças teóricas de ambos e os termos do debate, voltaremos no tempo da his- tória de nossos personagens centrais e analisaremos suas trajetórias no conturbado século XX. karl Popper: trajetória teórica e visão de mundo É interessante a trajetória teórica de Popper entre a primeira publicação da Lógica da descoberta científica, em 1934, publicada em inglês em 1959 (quando adquire notoriedade), e a Lógica das ciências sociais de 1961, no qual estão as suas 27 teses e a apresentação do “método das ciências sociais” ou “método da análise Revista de Economia Política 32 (1), 2012 89 situacional”. É possível identificar quatro questões que percorrem aquela trajetória e que fornecem boas pistas para o entendimento do autor: a) a novidade do méto- do falibilista aplicado às chamadas ciências experimentais (sem distinção); b) as diversas tentativas em toda a sua obra de marcar uma posição antipositivista; c) uma perspectiva teórico-ideológica crítica ao historicismo (leia-se marxismo) e ao psicologismo e, finalmente, d) o método da lógica situacional que revela o esforço teórico de levar em conta a especificidade das ciências sociais e que pode ser lido como o resultado desse longo percurso teórico e crítico. Popper se considera um racionalista crítico. Mas a que racionalismo ele dirige a sua crítica? Antes de tudo, Popper identifica-se com Heidegger na crítica ao ho- mem moderno que supostamente vê a verdade. O homem da revolução científica moderna pretende descobrir a verdade e projetá-la para a eternidade, tal qual o demônio do matemático Laplace. Para ele é preciso superar pela crítica o induti- vismo baconiano ingênuo (a ideia de uma ciência ditada pelo império das observa- ções) e o desvario de uma razão onipotente que descobre a verdade por meio do raciocínio de dedutivo. Popper considera que, através de sua razão crítica, estaria superando Descartes, Bacon e ainda a tentativa de síntese kantiana nos juízos sin- téticos a priori Consoante com o seu tempo, em que a razão moderna sofre abalos sísmicos, Popper, mediante seu método dedutivo, acena com a provisoriedade do conhecimento, posto que limitado por nossa ignorância latente. Seu compromisso é com proposições constantemente renovadas por novas conjecturas, frutos da correção constante de erros. Tateando entre erros e acertos, o critério que dá subs- tância ao seu método é o da falseabilidade, ou o confronto rigoroso e impiedoso das teorias com a observação e a experiência. Em última instância, trata-se da eli- minação das teorias incapazes de resistir aos testes e da sua substituição por outras conjecturas especulativas mais promissoras. O critério de falseabilidade, termôme- tro do método, define o que é objeto significativo para as ciências experimentais e que nos permite deduzir, com o auxílio de condições iniciais, os efeitos que se pretende explicar. Mas esse critério é demarcatório, pois separa as ciências empíri- cas, a matemática e a lógica dos sistemas metafísicos (Popper, 1989 [1959]). Entretanto, Popper alerta que seu objetivo não é o de provocar a derrocada da Metafísica, como pretendem os positivistas, desqualificando-a e jogando-a no cam- po da não significação, da conversa vazia. Ao contrário, ele considera que esse movimento asséptico dos positivistas, cientificamente neutro e expurgado de todos os valores, fez com que se aprisionasse a própria ciência no reino da metafísica. Nas suas palavras: Os positivistas, ao tentarem aniquilar com a metafísica, aniquilam com a ciência natural e, em vez de afastar a metafísica das ciências empíricas, levam à invasão do reino científico da metafísica (Popper, 1989 [1959]). É marcante a preocupação de Popper em se distanciar do positivismo. Se con- seguiu ou não o seu intento é algo absolutamente controverso, sobretudo, se ana- lisarmos à luz da perspectiva dialética, como Adorno o fez. Entretanto mesmo Adorno sugere que a teoria de Popper se diferencia dos positivistas tradicionais. Ele afirma: A teoria de Popper é mais ágil do que o positivismo usual Ela não insiste tão irrefletidamente na neutralidade dos valores (Adorno,1975 [1974]). Ainda que 90 Brazilian Journal of Political Economy 32 (1), 2012 se identifique Popper com o positivismo, não podemos desconsiderar as nuanças de sua teoria, sob pena de empobrecer o debate e dificultar a compreensão do autor. Voltaremos a esse ponto quando do embate entre ele e Adorno. Popper, além disso, se posiciona contra o pensamento dogmático. Este pode ser entendido pela perseguição de uma verdade absoluta ditada pela observação ou pela lógica (positivismo), mas também pela preocupação da descoberta de leis imanentes e inexoráveis da história (historicismo). O antídoto de que Popper se utiliza contra a onipotência da razão é o relativismo, ou a ideia de que uma teoria jamais atinge a verdade, mesmo que ela tenha superado vitoriosamente os testes rigorosos. Para ele, o máximo que se pode afirmar é que a teoria atual é superior às que a precederam, ou a melhor disponível. Ela jamais será a verdadeira. O pen- samento dogmático ele o identifica, sobretudo, no marxismo, alvo de suas mais severas críticas, mas também de contundentes elogios. Uma relação de distancia- mento e de admiração teórica. É disso que trataremos a seguir. Dez anos após a Lógica da descoberta científica, de 1934, Popper publica duas obras que fizeram sucesso e o alçaram ao palco dos debates mais importantes do século XX. Esses debates tratavam das agruras do socialismo real e das dificuldades teóricas do socialismo científico, bem como da abertura de possibilidades de refor- mas pelo próprio capitalismo. A Miséria do historicismo, de 1944, (Popper 1956, [1944]) e A sociedade aberta e seus inimigos, de 1945 (Popper, 1979), tinham como objetivo, como já adiantamos, desmontar a possibilidade de encontrar leis gerais unívocas para a história, desacreditar a profecia socialista e substituir a utopia socialista por um reformismo, ideal que ele considerara mais modesto e mais viável numa sociedade democrática liberal. Na Miséria do historicismo (1956 [1944]), Popper define o objeto de sua aná- lise como uma crítica ao historicismo, identificado na missão de estabelecer leis, modelos, ritmos ou tendências gerais dos desenvolvimentos da história com obje- tivo de prever o seu fim. O principal historicista para Popper é Marx e o fim esca- tológico que ele propala é o de uma sociedade sem classes, socialista. Contra essa tese, Popper advoga três posições explicitadas de antemão e que desenvolve em argumentos ao longo do livro: 1) é impossível predizer o curso futuro da história e as ciências sociais não têm a missão de estabelecer leis do desenvolvimento da história; 2) o método das ciências sociais não é tão distante das ciências naturais, ao contrário, existe uma unidade metodológica; 3) é importante substituir o ideal utópico do plano da reconstrução socialista por um ideal mais modesto expresso num reformismo fragmentário.1 Nesse texto, Popper discorre sobre os pontos controversos e críticos, tanto das teses naturalistas como das chamadas teses antinaturalistas do historicismo. Ele 1 Popper foi socialista quando jovem e, em 1919, se juntou aos comunistas nas contestações da esquerda austríaca no conturbado pós-guerra. Entretanto, diante da morte de alguns companheiros, tornou-se crítico do comunismo, sobretudo da ideia de que é necessário usar meios violentos para alcançar os fins (Hacohen, 2000). Revista de Economia Política 32 (1), 2012 91 ataca a crença central do historicismo de que a função das ciências sociais seria desvendar a lei da evolução da sociedade e predizer seu futuro. Contra uma ordem invariável na evolução biológica ou sociológica, Popper afirma a ideia de um pro- cesso que se efetua de acordo com leis causais em que elas mesmas e/ou as suas consequências devem ser testadas. O método hipotético da prova, seu método aplicável a todas as ciências experimentais, oferece explicações causais dedutivas e ainda a possibilidade de testá-las. Nisso residiria a sua novidade teórica, seu racio- nalismo crítico e a diferença entre o seu método e o de Marx — uma abertura para múltiplas possibilidades, e não algo predeterminado e previsível (Popper, 1956 [1944]). Embora ele tenha explorado a crítica ao materialismo histórico na Miséria será na Sociedade aberta e seus inimigos publicada originalmente em 1945 (Popper, 1979) que seus estudos se aprofundam, tomam força e consistência, dando lugar não apenas a críticas, como a elogios à contribuição de Marx. Em primeiro lugar ele reconhece a importância e a grandeza da teoria humanista de Marx e afirma textualmente que a contribuição do marxismo foi de tal ordem que retornar às teorias sociais anteriores seria um grande atraso. Ele afirma que Marx foi um dos melhores adversários da hipocrisia e do farisaísmo e que consagrou todas as suas forças a forjar armas que ele considerava científicas destinadas a melhorar a sorte dos oprimidos. Em outro trecho afirma que contrariamente aos hegelianos de di- reita, Marx se esforçou para resolver pelos métodos racionais os problemas mais agudos de seu tempo Que ele não tenha conseguido não lhe tira o mérito A ciên- cia só progride graças `a experiência [...] Apesar de todas essas qualidades ele foi um falso profeta E finaliza, afirmando que não somente as profecias relacionadas ao curso da história não foram realizadas como ele induziu ao erro aqueles que acreditaram que a profecia histórica era um método científico que permitia resolver os problemas sociais (Tradução livre da edição francesa, Popper, 1979). Analisando o método de Marx, Popper desenvolve seu argumento crítico cen- tral que é atacar o determinismo sociológico e defender a ideia de uma sociedade aberta às reformas. Quando a sociedade pensa que descobriu a pista da lei natural que preside o seu movimento, ela não pode superar de um salto nem abolir as fases do seu desenvolvimento natural, nos diz Popper. Neste quadro de previsibilidade não há engenharia social que possa reformar ou corrigir ou, dito em outros termos, melhorar a sociedade pela razão ou pelas instituições. É interessante como esta perspectiva se diferencia da de Hayek, seu conterrâneo, que considera Marx um racional-construtivista que concebia a ordem socialista como fruto do plano ou do desígnio de uma classe operária consciente.2 São dignas de nota as diferenças teó- rico-políticas entre Hayek e Popper, ambos severos críticos do que chamaram de 2 Hayek constrói sua crítica a Marx concentrando naquilo que seria o pecado capital da razão: uma razão onipotente oriunda da classe operária que transformaria a sociedade numa máquina racional, uma razão que é capaz de digerir a sua própria complexidade e que constrói pela deliberação de seus sujeitos sociais um devir socialista (Hayek, 1985). 92 Brazilian Journal of Political Economy 32 (1), 2012 profecia marxista. Popper, ao contrário de Hayek, acredita na engenharia social, na capacidade de reformar as instituições e com isso aperfeiçoar a democracia liberal. Já Hayek, um fundamentalista do mercado, é avesso a toda e qualquer intervenção, a qualquer engenharia social. Para Popper, um dos problemas do socialismo científico é o de não ser uma tecnologia social. Sua tarefa seria, nos seus termos, a de anunciar messianicamente a chegada do socialismo e de acelerá-lo, advertindo aos homens o papel que terão de jogar no desenvolvimento da história Os personagens seriam para Popper ma- rionetes movidos pelos fios da economia, por forças históricas. Um dia, ele afirma de forma irônica, essas marionetes destruirão o sistema e nós viveremos no reino da liberdade. Consoante, portanto, com o materialismo histórico, as classes sociais desempenhariam um papel central, pois a história de toda sociedade é a história de luta de classes. No materialismo histórico é o sistema que nos obriga a agir de acordo com os interesses de classe, crendo que são nossos interesses. Nesse quadro, afirma Popper, levantando o ponto que ele considera crítico, toda engenharia social é impossível, toda tecnologia social, inútil. Uma outra crítica é que a chave da história e da história das ideias se encontra na relação do homem com o mundo material que o cerca (fundamento da teoria de classes). Isto faria toda a diferença, pois seria na evolução da realidade econômica e na sua capacidade de produzir uma modificação real que residiriam as potencialidades da revolução. Esta começaria quando as forças produtivas materiais da sociedade entrassem em colisão com as relações de produção. Ora, isso definiria para Popper um viés economicista da teoria de Marx, que absolutiza a economia e não confere às ideias um papel deter- minante, uma crítica que apenas engrossa o que, no interior do próprio marxismo, já tinha sido apontado como uma leitura empobrecedora e adulterada da teoria de Marx. Nada de novo. Na Sociedade aberta, de 1945, observamos em Popper o primeiro esforço para romper com a ideia de um método unívoco para as ciências experimentais e os indícios de querer trabalhar a especificidade das ciências sociais, o que só vai adquirir seus contornos definitivos na Lógica das ciências sociais, em 1961 (Popper, 1978). É interessante observar como a crítica ao psicologismo e a perspectiva de uma autonomia para a sociologia, partes integrantes de sua teoria, têm pontos de confluência com a crítica marxista, seu alvo preferido. Popper revela simpatia pelo antipsicologismo de Marx, definido pela máxima não é a consciência dos homens que determina a sua existência, mas é a sua exis- tência social que determina a sua consciência A autonomia da sociologia, confor- me ele a define, se dá porque os atos humanos não podem ser explicados por motivos e desejos psíquicos e dependem, para a sua real compreensão, da conside- ração das condições gerais, do entorno social, das instituições. Popper concorda com Marx na crítica que ele faz aos psicologistas, de que a instituição mercado seria determinada pela psicologia do homem econômico e seu interesse pessoal na perseguição da riqueza. Além de equivocada, a teoria alimentaria a tese do complô. Mas embora Popper sublinhe que os aspectos psicológicos têm um papel secundá- Revista de Economia Política 32 (1), 2012 93 rio em relação à lógica da situação3 e que a sociologia tem a sua autonomia e im- portância para a compreensão de uma lógica dos fenômenos sociais, ele fez questão de marcar uma diferença importante com relação ao método marxista. Seu método não é holista, mas individualista e baseado no princípio da racionalidade.4 Exami- naremos oportunamente esse delicado e importante ponto no confronto entre ele e Adorno. Em várias outras passagens elogiosas a Marx, Popper afirma que ele faz uma boa leitura da lógica da situação de classe para o capitalismo sem entraves do sé- culo XIX.5 Popper vai utilizar a mesma expressão lógica da situação (sem a palavra classe) para desenvolver mais adiante suas teses sobre o método das ciências sociais e da economia, em particular, rompendo com o ideal de uma ciência unificada. Popper reconhece o mérito de Marx ao ter explicado o fenômeno da exploração e ter demonstrado a importância social dos ciclos econômicos, complexos e mal conhecidos até então. Entretanto, o erro da tese marxista apontado por Popper na Miséria, como já assinalamos, é o determinismo ditado pela lei do antagonismo da luta de classes sociais e a profecia da revolução (agora mais qualificada pelas refe- rências a O capital), de que a situação se agravaria através da lei do empobreci- mento. A tendência à queda na taxa de lucro ameaça de ruína os empresários que se defendem aumentando a jornada de trabalho. Essa constatação de Marx soa correta para Popper, mas ele ressalta que na história do capitalismo a situação dos operários, ao invés de piorar, melhorou graças às negociações. Popper rebate teo- ricamente as teses marxistas e advoga que para o campo político-normativo o melhor é a negociação para a obtenção de melhoras progressivas do capitalismo, o que significa uma diminuição do antagonismo entre as classes sociais. No plano epistemológico, Popper construirá o método da análise situacional para as ciências sociais, elegendo a economia como modelo exemplar. Veremos que esse método pode ser lido como uma correção crítica ao método dedutivo, em úl- tima análise, um reformismo epistemológico. O método, suas potencialidades e limitações, e ainda a natureza do racionalismo crítico popperiano serão examinados na apresentação e nos comentários ao debate. A seguir, passemos à trajetória teórica do nosso segundo autor-ator, Theodor Adorno. 3 Num artigo de 1945, intitulado A autonomia da sociologia, Popper esboça o princípio da racionalidade no quadro de uma “lógica da situação”, afirmando que o método da análise econômica não está baseado em nenhum suposto psicológico que se refira à racionalidade ou outro fator da natureza humana Ao contrário, quando nos referimos à conduta racional ou irracional, nos referimos a uma lógica que está conforme com uma lógica de uma situação particular Weber já dizia que o racional existe depois das normas do que é considerado racional (Popper, 1995). 4 Sobre o princípio da racionalidade em Popper, consultar El Principio de Racionalidad, em Miller, D. (org.) Popper Escritos Selectos México: Fondo de Cultura Económica, 1995 5 Popper afirma textualmente que [...] a maneira com que Marx procurou explicar o funcionamento das instituições do sistema industrial pela lógica da situação de classe me parece admirável pelo menos no que concerne ao capitalismo sem entrave do século passado (Popper, 1979). 94 Brazilian Journal of Political Economy 32 (1), 2012 theodor Adorno e a escola de Frankfurt A trajetória teórica e biográfica do filósofo Theodor Wiesengrund-Adorno está intimamente ligada ao grupo mais importante de pensadores do Instituto de Pesqui- sa Sociais de Frankfurt, fundado em 1924 e conhecido como Escola de Frankfurt, de tradição marxista. Entre eles, além de Adorno, cabe mencionar Walter Benjamin, Max Horkheimer e mais tarde o herdeiro da tradição, Jürgen Habermas. Embora outros nomes tenham se destacado, como o de Herbert Marcuse, por exemplo, é possível identificar uma unidade teórica entre aqueles quatro autores. Essa unidade se dá pela chamada “Teoria Crítica”, em que a razão só pode ser defendida pela via de uma crítica a ela mesma. Podemos afirmar que os trabalhos desse grupo tratam de uma reflexão crítica sobre os principais aspectos do capitalismo, da sociedade e da cultura do século XX, no quadro de experiências do nazismo e do stalinismo. Por suas posições, com a ascensão do nacional-socialismo na Alemanha, a Escola foi obrigada a transferir-se para Genebra em 1933, em seguida para Paris e, finalmen- te, para Nova York. Somente em 1950, já no pós-guerra, é que os principais inte- grantes puderam regressar à Alemanha e reorganizá-la. Adorno nasceu em 1903 e morreu em 1969, em Frankfurt. Na década de 1930, refugiado na Inglaterra, lecionou na Universidade de Oxford. Por essa época, es- creveu vários ensaios críticos sobre o caráter social e potencialmente transformador da música, da qual era um estudioso e profundo conhecedor. No fim da década, mudou-se para os Estados Unidos, onde escreveu com Horkheimer a obra seminal Dialética do esclarecimento, publicada em 1947. Em 1950 regressou à Alemanha para reorganizar a Escola em companhia de Horkheimer. Escreveu inúmeros tra- balhos sobre os mais variados assuntos culturais e filosóficos. Dentre eles um im- portante trabalho em que apresenta a sua compreensão sobre o método dialético: a Dialética negativa, em 1966. Tanto na Dialética do esclarecimento como na Dialética negativa, Adorno dedicou-se à dialética, entendendo-a como um método crítico capaz de enfrentar os inúmeros desafios teóricos ditados pela hegemonia do pensamento positivista e pelo idealismo hegeliano. Somaram-se a essas questões, outras, concernentes à re- produção ideológica do capitalismo contemporâneo e aquelas ligadas às formas totalitárias stalinistas e nazistas. A dialética, para Adorno, teria a incumbência de ser uma reflexão filosófica sobre aquilo de que os conceitos e análises não dão conta. Ela deveria se constituir num pensar ousado sobre exatamente o que lhe escapa, aliás a única saída para se pensar filosoficamente. Na Dialética do esclarecimento (1985 [1944]), os autores Adorno e Horkhei- mer avisam que o positivismo assumiu a magistratura de uma razão esclarecida em que nada supostamente lhe escaparia. Os fenômenos são traduzidos em um sistema de vários signos interligados e o pensamento se transforma em instrumento mate- mático. A lógica formal na sua expressão máxima, através da matemática, fornece o esquema de calculabilidade do mundo; o procedimento matemático torna-se o ritual do pensamento, instaurando-se como necessário e objetivo. Nesse quadro, o desconhecido, o opaco, ou ainda, o inexplicável, tornam-se incógnitas de equações Revista de Economia Política 32 (1), 2012 95 no quadro de teoremas matemáticos. Entretanto, o que aparece como triunfo de uma racionalidade objetiva e a submissão de todo ente ao formalismo lógico tem por preço a subordinação obediente da razão ao imediatamente dado. No quadro do positivismo e da razão esclarecida, o factual tem a última palavra, o conheci- mento se restringe à repetição e o pensamento transforma-se em tautologia (Ador- no e Horkheimer, 1985 [1944]). Ao identificar o mundo matematizado com a verdade, o pensamento positivis- ta acredita estar a salvo do retorno do mítico ou do destituído de significado. Mas o esclarecimento na sua obsessão matematizante é a própria radicalização da an- gústia mítica. Aprisionadas pelo mito, tanto a ciência como a técnica refletem o desencanto das esperanças de que o iluminismo instauraria o poder do homem sobre elas, libertando-o do medo, da magia e do mito. Caminhando por essa área de técnicas reificadas, Adorno cunha o nome de indústria cultural à produção, comercialização e exploração de bens culturais próprias das técnicas de reprodução (a produção em série e a homogeneização). Essas técnicas têm sua racionalidade ditada pela racionalidade instrumental dominante. Tendo-se em vista o papel de- terminante da indústria cultural como veículo da ideologia dominante, as possibi- lidades de libertação através da arte e do lazer estão condenadas ao fracasso. Para Adorno, a música, tal como a arte em geral e as grandes filosofias, faz falar o que a dominação e a ideologia escondem sob a couraça da identidade ou suprimem como irrelevante e nocivo. Sua teoria crítica poderia ser considerada uma teoria estética, tal o papel da arte e da filosofia como antídotos para o racionalismo po- sitivista e pseudocientífico que violentam o objeto, consumindo-o dentro de um esquema conceitual reificado (Adorno e Horkheimer, 1985 [1944]). Na obra Dialética negativa (2009 [1969]), Adorno elege como seu maior alvo crítico o idealismo da filosofia dialética hegeliana na sua peculiaridade de uma lógica da identidade e na subordinação do indivíduo à totalidade social, às custas do sacrifício de sua singularidade. Trata-se de uma crítica à dialética conciliatória de herança lucaksiana e um aviso para uma releitura da perspectiva de totalidade, pois esta pode dar lugar ao totalitarismo de um sistema em que vige a lei da uni- dade e, portanto, da eliminação do diverso. A dialética negativa significa para Adorno o respeito à negação, às contradições, ao diferente, ao dissonante, ao não idêntico, enfim, o respeito às contradições do objeto. Isso significa considerar o que permanece fora do conceito, o que lhe escapa, o que aponta a sua insuficiência. Adorno diz não ao idealismo em que o sujeito é o portador da verdade do objeto e em que a desmesura da razão faz imaginar que os conceitos podem esgotar o real e ainda apresentar soluções para os seus problemas. Para ele, a experiência é o encontro com a alteridade e não uma projeção do sujeito no outro. Para Adorno deve-se pensar o objeto mesmo quando ele não segue as regras do pensamento, mesmo quando não se sabe se é possível compreendê-lo por inteiro. Nesse sentido, a dialética negativa pensa onde seus opositores se detêm. Fortalecen- do seu argumento, Adorno afirma que as catástrofes revelam a inadequação dos conceitos. A impossibilidade de representar a dor mostra que a saída não é uma dialética conciliatória ou idealista, mas uma dialética que eleve a dor ao conceito. Ela 96 Brazilian Journal of Political Economy 32 (1), 2012
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