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Joseph Anton - Memórias PDF

636 Pages·2012·2.64 MB·Portuguese
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Para meus filhos, Zafar e Milan, suas mães, Clarissa e Elizabeth, e para todos que ajudaram. E graças a isso teve como destino dar-nos a oportunidade de representar uma peça em que o passado não passa de prólogo e o futuro depende apenas de nós. William Shakespeare, A tempestade Sumário Prólogo — O primeiro corvo 1. Um pacto faustiano ao contrário 2. “Originais não queimam” 3. Ano zero 4. A armadilha de querer ser amado 5. “Estive embaixo tanto tempo que para mim parece o alto” 6. Por que é impossível fotografar os pampas 7. Um caminhão de estrume 8. Sr. Manhã e sr. Tarde 9. Sua ilusão milenarista 10. No Halcyon Hotel Agradecimentos Prólogo O primeiro corvo Depois, quando o mundo explodia a seu redor e os corvos mortíferos se reuniam no trepa-trepa no pátio da escola, ele se sentiu irritado consigo mesmo por ter esquecido o nome da repórter da bbc que lhe avisara que sua vida antiga tinha acabado e que uma vida nova, mais sombria, estava para começar. Ela ligara para a casa dele, em sua linha privada, sem explicar como tinha conseguido o número. “Como você se sente”, perguntou, “sabendo que foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini?” Era uma terça-feira ensolarada em Londres, mas foi como se a pergunta apagasse a luz do sol. O que ele respondeu, sem saber direito o que dizia, foi: “Não me sinto bem”. O que pensou foi: Estou morto. Ficou pensando em quantos dias lhe restavam para viver, e achou que a resposta seria, com toda probabilidade, um número de um só algarismo. Desligou o telefone e desceu, apressado, a escada de sua sala de trabalho, no andar de cima da estreita casa geminada em que morava, em Islington. As janelas da sala tinham venezianas de madeira, e, levado por um impulso absurdo, ele as fechou e trancou-as com barras. Depois, passou a chave na fechadura da porta de entrada. Era o Dia dos Namorados — 14 de fevereiro —, mas ele não estava em bons termos com a mulher, a romancista americana Marianne Wiggins. Seis dias antes, ela lhe dissera que não estava feliz com o casamento, que “já não se sentia bem com ele”, embora estivessem casados havia pouco mais de um ano, e também ele sabia que o casamento tinha sido um erro. Agora ela o fitava enquanto ele andava pela casa, nervoso, fechando cortinas, verificando as fechaduras das janelas, com o corpo galvanizado pelas notícias, como se uma corrente elétrica passasse por ele, e teve de lhe explicar o que estava acontecendo. Ela reagiu bem, e começou a falar sobre o que deveriam fazer. Usou o pronome nós. Foi um gesto de coragem. Um carro parou diante da casa, mandado pela cbs. Naquela manhã, ele deveria aparecer, ao vivo, no programa de notícias da rede de televisão americana, em transmissão via satélite a partir dos estúdios em Bowater House, Knightsbridge. “Tenho de ir”, disse. “É ao vivo. Não posso deixar de ir.” Mais tarde, ainda de manhã, seria realizada na igreja ortodoxa na Moscow Road, em Bayswater, a cerimônia em memória de seu amigo Bruce Chatwin. Menos de dois anos antes, ele comemorara seu quadragésimo aniversário em Homer End, a casa de Bruce em Oxfordshire. Agora Bruce tinha morrido de aids, e a morte batia também à sua própria porta. “E a cerimônia?”, perguntou sua mulher. Ele não soube o que lhe responder. Abriu a porta, saiu, entrou no carro e partiu para os estúdios. Embora ainda não soubesse disso naquela hora, e por isso a saída não lhe pareceu especialmente carregada de significado, ele só voltaria àquela casa, onde morava havia cinco anos, três anos depois, quando ela já não lhe pertenceria. Na sala de aula em Bodega Bay, na Califórnia, as crianças cantam uma música triste, sem pé nem cabeça. Ela só penteia o cabelo uma vez ao ano, tiri-ri, tiri-lá, ló, ló, ló. Do lado de fora da escola sopra um vento frio. Um corvo desce do alto do céu e pousa no trepa-trepa do pátio. A música das crianças é um rondó. Começa, mas não termina. Repete-se sem parar, sem parar. A cada passada do pente, derramava uma lágrima, tiri-ri, tiri-lá, ló, ló, ló, ei- bumbosidade, petralhapetralha, retroquo-qualidade, carvalhê, carvalhá, ló, ló, ló. Já são quatro corvos no trepa-trepa, e logo chega um quinto. Na sala de aula, as crianças cantam. Agora são centenas os corvos no trepa-trepa, e outros milhares enchem o céu, como uma praga do Egito. Começou uma canção, que não tem fim. Quando o primeiro corvo pousou no trepa-trepa, parecia individual, especial, específico. Não era necessário deduzir uma teoria geral, um estado de coisas mais amplo que se devesse à sua presença. Mais tarde, depois que a praga começou, foi fácil para as pessoas ver o primeiro corvo como um prenúncio. Mas, quando ele pousou no trepa-trepa, era apenas uma ave. Nos anos seguintes, ele sonhará com essa cena, entendendo que a história dele é uma espécie de prólogo: a narrativa do momento em que o primeiro corvo pousa. Quando a história começou, era só a dele; individual, especial, específica. Ninguém se sentia propenso a tirar quaisquer conclusões dela. Doze anos ou mais se passariam antes que a história crescesse até encher o céu, como se o arcanjo Gabriel estivesse em pé no horizonte, como dois aviões se esborrachando contra arranha-céus, como a praga de pássaros assassinos no grande filme de Alfred Hitchcock. Nos estúdios da cbs, ele era a grande notícia do dia. Na sala da redação e em vários monitores já usavam a palavra que em breve estaria pendurada em seu pescoço como uma pedra de moinho. Usavam essa palavra como se fosse um sinônimo de “sentença de morte”, e ele queria argumentar, pedantemente, que não era esse o significado da palavra. No entanto, desse dia em diante, ela significaria isso para a maior parte das pessoas no mundo. E para ele também. Fatwa. “Informo aos muçulmanos zelosos do mundo que o autor do livro Versos satânicos, que é contra o islã, o Profeta e o Corão, bem como todos aqueles que, conscientes de seu conteúdo, envolveram-se em sua publicação, estão sentenciados à morte. Peço a todos os muçulmanos que os executem, onde quer que os localizem.” Alguém lhe entregou uma versão impressa do texto enquanto ele era levado em direção ao estúdio para a entrevista. Mais uma vez, seu velho eu quis contestar, dessa vez o verbo “sentenciar”. Aquilo não era uma sentença lavrada por um tribunal que ele reconhecesse, ou que tivesse alguma jurisdição sobre ele. Era o edito de um velho cruel e moribundo. Mas ele sabia também que os hábitos de seu antigo eu não tinham mais serventia alguma. Ele era agora uma nova pessoa. Era a pessoa que estava no olho do furacão, não mais o Salman que seus amigos conheciam, mas o Rushdie autor de Versos satânicos, um título sutilmente distorcido pela omissão do artigo Os. Os versos satânicos era um romance. Versos satânicos eram versos que eram satânicos, e ele era o autor satânico desses versículos, o “Satã Rushdy”, a criatura chifruda que estava nos cartazes carregados por manifestantes pelas ruas de uma cidade distante, o enforcado de língua vermelha para fora da boca nos cartazes toscos que carregavam. Enforquem o Satã Rushdy. Como era fácil apagar o passado de um homem e construir uma nova versão dele, uma versão esmagadora, contra a qual parecia impossível lutar. O rei Carlos i negara a legitimidade da sentença lavrada contra ele. Isso não impediu que Oliver Cromwell o mandasse decapitar. Ele não era rei. Era o autor de um livro. Olhou para os jornalistas que o fitavam e pôs-se a imaginar se era assim que as pessoas olhavam os homens que eram levados ao patíbulo, à cadeira elétrica ou à guilhotina. Um correspondente estrangeiro se aproximou para demonstrar simpatia, e o escritor perguntou a esse homem o que ele pensava sobre o que Khomeini dissera. Até que ponto deveria levar aquilo a sério? Era apenas retórica ou alguma coisa genuinamente perigosa? “Ah, não se preocupe muito”, disse o jornalista. “Khomeini sentencia o presidente dos Estados Unidos à morte toda sexta-feira de tarde.” No ar, quando lhe perguntaram como reagira à ameaça, ele respondeu: “Eu gostaria de ter escrito um livro mais crítico”. Orgulhou-se, naquele dia e para sempre, de ter dito aquilo. Era a verdade. Não considerava que seu livro criticasse demais o islã, mas, como disse na televisão americana naquele dia, era provável que uma religião cujos líderes procediam dessa forma merecesse algumas críticas. Terminada a entrevista, disseram-lhe que sua mulher tinha telefonado. Ele ligou para casa. “Não volte aqui”, disse ela. “Há duzentos jornalistas na calçada, à sua espera.” “Vou para a agência”, disse ele. “Arrume uma mala e se encontre comigo lá.” Sua agência literária, a Wylie, Aitken & Stone, ficava numa casa de estuque branco, na Fernshaw Street, em Chelsea. Não havia jornalistas acampados diante dela — era evidente que a imprensa mundial não imaginara que ele fosse à sua agência num dia daqueles — e, quando ele entrou, todos os telefones do prédio estavam tocando, e todas as chamadas eram a respeito dele. Gillon Aitken, seu agente britânico, lançou-lhe um olhar estupefato. Falava ao telefone com Keith Vaz, representante anglo-indiano de Leicester East no Parlamento. Cobriu o bocal e sussurrou: “Quer falar com essa pessoa?”. Naquela conversa, Vaz disse que o acontecido era “espantoso, nada menos que espantoso”, e prometeu seu “pleno apoio”. Semanas depois, foi um dos principais oradores numa manifestação contra Os versos satânicos, com a presença de mais de 3 mil muçulmanos, e descreveu o evento como “um dos grandes dias na história do islã e da Grã-Bretanha”. Ele percebeu que não podia planejar o que fazer, que não conseguia imaginar como seria sua vida daí em diante ou que planos fazer. Só podia se concentrar no imediato, e o imediato era o culto fúnebre em memória de Bruce Chatwin. “Meu caro, você acha que deve ir?”, perguntou Gillon. Ele mesmo tomou a decisão. Bruce fora muito amigo dele. “Que se dane”, disse. “Vamos.” Marianne chegou, com um certo ar tresloucado, furiosa por ter sido cercada pelos fotógrafos ao sair de casa na St. Peter’s Street, 41. No dia seguinte, estava na primeira página de todos os jornais do país. Um dos jornais deu nome à sua expressão, em letras garrafais: o rosto do medo. Não falaram muito. Nenhum dos dois. Entraram no carro deles, um Saab preto, e ele saiu pelo parque em direção a Bayswater. Gillon Aitken ia junto, com uma expressão de preocupação, e o corpo comprido e lânguido estirado no banco de trás. Sua mãe e a irmã mais nova moravam em Karachi. O que lhes sucederia? A irmã do meio, havia muito afastada da família, morava em Berkeley, Califórnia. Estaria a salvo lá? A irmã mais velha, Sameen, sua “gêmea irlandesa”, morava em Wembley, subúrbio da zona norte de Londres, não muito longe do famoso estádio. O que teria de ser feito para protegê-los? Seu filho, Zafar, que só tinha nove anos e oito meses, estava com a mãe, Clarissa, na casa deles em Burma Road, 60, que sai de Green Lanes, perto de Clissold Park. Naquele momento, o décimo aniversário de Zafar parecia muito, muito distante. “Papai”, Zafar perguntara, “por que você não escreve livros que eu possa ler?” Aquilo lhe fizera lembrar um trecho de “St. Judy’s comet”, uma canção que Paul Simon escrevera como acalanto para o filho pequeno. Se não consigo cantar para fazer meu menino dormir, bem, seu papai famoso parece um bobo. “Boa pergunta”, ele respondera. “Quando eu acabar este livro em que estou trabalhando, escrevo um livro para você. Certo?” “Certo.” De modo que ele tinha acabado o livro, que fora publicado, e agora talvez não tivesse tempo para escrever outro. Nunca se deve quebrar uma promessa feita a uma criança, pensou, e aí sua cabeça a mil acrescentou um adendo idiota: mas a morte do autor é uma desculpa válida? Sua mente estava voltada para o tema assassinato. Cinco anos antes, ele estivera viajando com Bruce Chatwin pelo “centro vermelho” da Austrália, onde, em Alice Springs, anotara o grafite que dizia renda-se, homem branco, sua cidade está cercada, fazendo um esforço sem nome

Description:
Em 14 de fevereiro de 1989, Salman Rushdie recebeu um telefonema que mudaria sua vida para sempre. Mal contendo a excitação provocada pela notícia, uma jornalista da BBC informava o escritor britânico de origem indiana que o aiatolá Khomeini, líder supremo do Irã, acabara de emitir uma fatwa
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