ebook img

José Saramago O ano da morte de Ricardo Reis PDF

269 Pages·2009·1.88 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview José Saramago O ano da morte de Ricardo Reis

José Saramago O ano da morte de Ricardo Reis http://groups.google.com/group/digitalsource 1 Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo Ricardo Reis Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida. Bernardo Soares Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca existiu, respondo que também não tenho provas de que Lisboa tenha alguma vez existido, ou eu que escrevo, ou qualquer coisa onde quer que seja. Fernando Pessoa 2 Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas de barro, há cheia nas lezírias. Um barco escuro sobe o fluxo soturno, é o Highland Brigade que vem atracar ao cais de Alcântara. O vapor é inglês, da Mala Real, usam-no para atravessar o Atlântico, entre Londres e Buenos Aires, com uma lançadeira nos caminhos do mar, para lá, para cá, escalando sempre os mesmos portos, La Plata, Montevideo, Santos, Rio de Janeiro, Pernambuco, Las Palmas, por esta ou inversa ordem, e, se não naufragar na viagem, ainda tocará em Vigo e Boulogne-sur-Mer, enfim entrará o Tamisa como agora vai entrando o Tejo, qual dos rios o maior, qual a aldeia. Não é grande embarcação, desloca catorze mil toneladas, mas aguenta bem o mar, como outra vez se provou nesta travessia, em que, apesar do mau tempo constante, só os aprendizes de viajante oceânico enjoaram, ou os que, mais veteranos, padecem de incurável delicadeza do estômago, e, por ser tão caseiro e confortável nos arranjos interiores, foi-lhe dado, carinhosamente, como ao Highland Monarch, seu irmão gémeo, o íntimo apelativo de vapor de família. Ambos estão providos de tombadilhos espaçosos para sport e banhos de sol, pode-se jogar, por exemplo, o cricket, que, sendo jogo de campo, também é exercitável sobre as ondas do mar, deste modo se demonstrando que ao império britânico nada é impossível, assim seja essa a vontade de quem lá manda. Em dias de amena meteorologia, o Highland Brigade é jardim de crianças e parada de velhos, porém não hoje, que está chovendo e não iremos ter outra tarde. Por trás dos vidros embaciados de sal, os meninos espreitam a cidade cinzenta, urbe rasa sobre colinas, como se só de casas térreas construída, por acaso além um zimbório alto, uma empena mais esforçada, um vulto que parece ruína de castelo, salvo se tudo isto é ilusão, quimera, miragem criada pela movediça cortina das águas que descem do céu fechado. As crianças estrangeiras, a quem mais largamente dotou a natureza da virtude da curiosidade, querem saber o nome do lugar, e os pais informam-nas, ou declinam-no as amas, as nurses, as bonnes, as fräuleins, ou um marinheiro que passava para ir à manobra, Lisboa, Lisbon, Lisbonne, Lissabon, quatro diferentes maneiras de enunciar, fora as intermédias e imprecisas, assim ficaram os meninos a saber o que antes ignoravam, e isso foi o que já sabiam, nada, apenas um nome, aproximativamente pronunciado, para maior confusão das juvenis inteligências, com a acento próprio de argentinos, se deles se tratava, ou de uruguaios, brasileiros e espanhóis, que, escrevendo certo Lisboa no castelhano ou português de cada qual, dizem cada um sua coisa, fora do alcance do ouvido comum e das 3 imitações da escrita. Quando amanhã cedo o Highland Brigade sair a barra, que ao menos haja um pouco de sol e de céu descoberto, para que a parda neblina deste tempo astroso não obscureça por completo, anda à vista de terra, a memória já esvaecente dos viajantes que pela primeira vez aqui passaram, estas crianças que repetem Lisboa, por sua própria conta transformando o nome noutro nome, aqueles adultos que franzem o sobrolho e se arrepiam com a geral humidade que repassa as madeiras e os ferros, como se o Highland Brigade viesse a escorrer do fundo do mar, navio duas vezes fantasma. Por gosto e vontade, ninguém haveria de querer ficar neste porto. São poucos os que vão descer. O vapor atracou, já arrearam a escada do portaló, começam a mostrar-se em baixo, sem pressa, os bagageiros e os descarregadores, saem do refúgio dos alpendres e guaritas os guardas-fiscais de serviço, assomam os alfandegueiros. A chuva abrandou, só quase nada. Juntam-se no alto da escada os viajantes, hesitando, como se duvidassem de ter sido autorizado o desembarque, se haverá quarentena, ou temessem os degraus escorregadios, mas é a cidade silenciosa que os assusta, porventura morreu a gente nela e a chuva só está caindo para diluir em lama o que ainda ficou de pé. Ao comprido do cais, outros barcos atracados luzem mortiçamente por trás das vigias baças, os paus-de-carga são ramos esgalhados de árvores, negros, os guindastes estão quietos. É domingo. Para além dos barracões do cais começa a cidade sombria, recolhida em frontarias e muros, por enquanto ainda defendida da chuva, acaso movendo uma cortina triste e bordada, olhando para fora com olhos vagos, ouvindo gorgolhar a água dos telhados, algeroz abaixo, até ao basalto das valetas, ao calcário nítido dos passeios, às sarjetas pletóricas, levantadas algumas, se houve inundação. Descem os primeiros passageiros. De ombros encurvados sob a chuva monótona, trazem sacos e maletas de mão, e têm o ar perdido de quem viveu a viagem como um sonho de imagens fluidas, entre mar e céu, o metrónomo da proa a subir e a descer, o balanço da vaga, o horizonte hipnótico. Alguém transporta ao colo uma criança, que pelo silêncio portuguesa deve ser, não se lembrou de perguntar onde está, ou avisaram-na antes, quando, para adormecer depressa no beliche abafado, lhe prometeram uma cidade bonita e um viver feliz, outro conto de encantar, que a estes não correram bem os trabalhos da emigração. E uma mulher idosa, que teima em abrir um guarda-chuva, deixa cair a pequena caixa de folha verde que trazia debaixo do braço, com forma de baú, e contra as pedras do cais foi desfazer-se o cofre, solta a tampa, rebentado o fundo, não continha nada de valor, só coisas de estimação, uns trapos coloridos, umas cartas, retratos que voaram, umas contas que eram de vidro e se partiram, novelos brancos agora maculados, sumiu-se um deles entre o cais e o costado do barco, é uma passageira da terceira classe. 4 Consoante vão pondo pé em terra, correm a abrigar-se, os estrangeiros murmuram contra o temporal, como se fôssemos nós os culpados deste mau tempo, parece terem-se esquecido de que nas franças e inglaterras deles costuma ser bem pior, enfim, a estes tudo lhes serve para desdenharem dos pobres países, até a chuva natural, mais fortes razões teríamos nós de nos queixarmos e aqui estamos calados, maldito inverno este, o que por ai vai de terra arrancada aos campos férteis, e a falta que ela nos faz, sendo tão pequena a nação. Já começou a descarga das bagagens, sob as capes rebrilhantes os marinheiros parecem manipanços de capuz, e em baixo os bagageiros portugueses mexem-se mais à ligeira, é o bonezinho de pala, a veste curta, de oleado, assamarrada, mas tão indiferentes à grande molha que o universo espantam, talvez este desdém de confortos leve a compadecerem-se as bolsas dos viajantes, porta-moedas como se diz agora, e suba com a compaixão a gorjeta, povo atrasado, de mão estendida, vende cada um o que tiver de sobejo, resignação, humildade, paciência, assim continuemos nós a encontrar quem de tais mercadorias faça no mundo comércio. Os viajantes passaram à alfândega, poucos como se calculava, mas vai levar seu tempo saírem dela, por serem tantos os papéis a escrever e tão escrupulosa a caligrafia dos aduaneiros de piquete, se calhar os mais rápidos descansam ao domingo. A tarde escurece e ainda agora são quatro horas, com um pouco mais de sombra se faria a noite, porém aqui dentro é como se sempre o fosse, acesas durante todo o dia as fracas lâmpadas, algumas queimadas, aquela está há uma semana assim e ainda não a substituíram. As janelas, sujas, deixam transluzir uma claridade aquática. O ar carregado cheira a roupas molhadas, a bagagens azedas, à serapilheira dos fardos, e a melancolia alastra, faz emudecer os viajantes, não há sombra de alegria neste regresso. A alfândega é uma antecâmara, um limbo de passagem, que será lá fora. Um homem grisalho, seco de carnes, assina os últimos papéis, recebe as cópias deles, pode-se ir embora, sair, continuar em terra firme a vida. Acompanha-o um bagageiro cujo aspecto físico não deve ser explicado em pormenor, ou teríamos de prosseguir infinitamente o exame, para que não se instalasse a confusão na cabeça de quem viesse a precisar de distinguir um do outro, se tal se requer, porque deste teríamos de dizer que é seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já, contudo tão diferentes, passageiro um, bagageiro outro. Carrega este a mala grande num carrinho metálico, as duas outras, pequenas em comparação, suspendeu-as do pescoço com uma correia que passa pela nuca, como um jugo ou colar de ordem. Cá fora, sob a protecção do beiral largo, pousa a carga no chão e vai procurar um táxi, não costuma ser necessário, habitualmente há-os por ali, à chegada dos vapores. O viajante olha as nuvens baixas, 5 depois os charcos no terreno irregular, as águas da doca, sujas de óleos, cascas, detritos vários, e é então que repara em uns barcos de guerra, discretos, não contava que os houvesse aqui, pois o lugar próprio desses navegantes é o mar largo, ou, não sendo o tempo de guerra ou de exercícios dela, no estuário, largo de sobra para dar fundeadouro a todas as esquadras do mundo, como antigamente se dizia e talvez ainda hoje se repita, sem cuidar de ver que esquadras são. Outros passageiros saíam da alfândega, acolitados pelos seus descarregadores, e então surgiu o táxi espadanando águas debaixo das rodas. Bracearam os pretendentes alvoroçados, mas o bagageiro saltou do estribo, fez um gesto largo, É para aquele senhor, assim se mostrando como até a um humilde serventuário do porto de Lisboa, quando a chuva e as circunstâncias ajudem, é dado ter nas mãos sóbrias a felicidade, em um momento dá-la ou retirá-la, como se acredita que Deus a vida. Enquanto o motorista baixava o porta-bagagens fixado na traseira do automóvel, o viajante perguntou, pela primeira vez se lhe notando um leve sotaque brasileiro, Por que estão na doca aqueles barcos, e o bagageiro respondeu, ofegando, ajudava o motorista a içar a mala grande, pesada, Ahn, é a doca da marinha, foi por causa do mau tempo, rebocaram-nos para aqui anteontem, senão eram bem capazes de garrar e ir encalhar a Algés. Chegavam outros táxis, tinham-se atrasado, ou o vapor atracara antes da hora esperada, agora havia no terreiro feira franca, tornara-se banal a satisfação da necessidade, Quanto lhe devo, perguntou o viajante, Por cima da tabela é o que quiser dar, respondeu o bagageiro, mas não disse que tabela fosse a tal nem o preço real do serviço, fiava-se na fortuna que protege os audaciosos, ainda que descarregadores, Só trago dinheiro inglês comigo, Ah, isso tanto faz, e na mão direita estendida viu pousar dez xelins, moeda que mais do que o sol brilhava, enfim logrou o astro-rei vencer as nuvens que sobre Lisboa pesavam. Por causa dos grandes carregos e das comoções profundas, a primeira condição para uma longa e próspera vida de bagageiro é ter um coração robusto, de bronze, ou redondo teria caído o dono deste, fulminado. Quer retribuir a excessiva generosidade, ao menos não ficar em dívida de palavras, por isso acrescenta informações que lhe não pediram, junta-as aos agradecimentos que não lhe ouvem, São contratorpedeiros, senhor, nossos, portugueses, é o Tejo, o Dão, o Lima, o Vouga, o Tâmega, o Dão é aquele mais perto. Não fazem diferença, podiam mesmo trocar-lhes os nomes, todos iguais, gémeos, pintados de cinzento-morte, alagados de chuva, sem sombra viva nos conveses, as bandeiras molhadas como trapos, salvo seja e sem ao respeito querer faltar, mas enfim, ficámos a saber que o Dão é este, acaso tornaremos a ter notícias dele. O bagageiro levanta o boné e agradece, o táxi arranca, o motorista quer que lhe digam, Para onde, e esta pergunta, tão simples, tão natural, tão adequada à circunstância e 6 ao lugar, apanha desprevenido o viajante, como se ter comprado a passagem no Rio de Janeiro tivesse sido e pudesse continuar a ser resposta para todas as questões, mesmo aquelas, passadas, que em seu tempo não encontraram mais que o silêncio, agora mal desembarcou logo vê que não, talvez porque lhe fizeram uma das duas perguntas fatais, Para onde, a outra, e pior, seria, Para quê. O motorista olhou pelo retrovisor, julgou que o passageiro não ouvira, já abria a boca para repetir, Para onde, mas a resposta chegou primeiro, ainda irresoluta, suspensiva, Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece, Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro, Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o motorista. Ao viajante não parecia que as mudanças fossem tantas. A avenida por onde seguiam coincidia, no geral, com a memória dela, só as árvores estavam mais altas, nem admira, sempre tinham sido dezasseis anos a crescer, e mesmo assim, se na opaca lembrança guardava frondes verdes, agora a nudez invernal dos ramos apoucava a dimensão dos renques, uma coisa dava para a outra. A chuva rareara, só algumas gotas dispersas caíam, mas no espaço não se abrira nem uma frincha de azul, as nuvens não se soltaram umas das outras, fazem um extensíssimo e único tecto cor de chumbo. Tem chovido muito, perguntou o passageiro, É um dilúvio, há dois meses que o céu anda a desfazer-se em água, respondeu o motorista, e desligou o limpa-vidros. Poucos automóveis passavam, raros carros eléctricos, um ou outro pedestre que desconfiadamente fechava o guarda-chuva, ao longo dos passeios grandes charcos formados pelo entupimento das sarjetas, porta com porta algumas tabernas abertas, labregas, as luzes viscosas cercadas de sombra, a imagem taciturna de um copo sujo de vinho sobre um balcão de zinco. Estas frontarias são a muralha que oculta a cidade, e o táxi segue ao longo delas, sem pressa, como se andasse à procura duma brecha, dum postigo, duma parta da traição, a entrada para o labirinto. Passa devagar o comboio de Cascais, travando preguiçoso, ainda vinha com velocidade bastante para ultrapassar o táxi, mas fica para trás, entra na estação quando o automóvel já está a dar a volta ao largo, e o motorista avisa, O hotel é aquele, à entrada da rua. Parou em frente de um café, acrescentou, O melhor será ir ver primeiro se há quartos, não posso esperar mesmo à porta por causa dos eléctricos. O passageiro saiu, 7 olhou o café de relance, Royal de seu nome, exemplo comercial de saudades monárquicas em tempo de república, ou remanescência do último reinado, aqui disfarçado de inglês ou francês, curioso caso este, olha-se e não se sabe como dizer a palavra, se roial ou ruaiale, teve tempo de debater a questão porque já não chovia e a rua é a subir, depois imaginou-se regressando do hotel, com quarto ou ainda sem ele, e do táxi nem sombra, desaparecido com as bagagens, as roupas, os objectos de uso, os seus papéis, e a si mesmo perguntou como viveria se o privassem desses e todos os outros bens. Já ia vencendo os degraus exteriores do hotel quando compreendeu, por estes pensamentos, que estava muito cansado, era o que sentia, uma fadiga muito grande, um sono da alma, um desespero, se sabemos com bastante suficiência o que isso seja para pronunciar a palavra e entendê-la. A parta do hotel, ao ser empurrada, fez ressoar um besouro eléctrico, em tempos teria havido uma sineta, derlim derlim, mas há sempre que contar com o progresso e as suas melhorias. havia um lança de escada empinado, e sobre o arranque do corrimão, em baixo, uma figura de ferro fundido levantava no braço direito um globo de vidro, representando, a figura, um pajem em trajo de corte, se a expressão ganha com a repetição alguma coisa, se não é pleonástica, pois ninguém se lembra de ter visto pajem que não estivesse em trajo de corte, para isso é que são pajens, mais explicativo seria ter dito, Um pajem trajado de pajem, pelo talhe das roupas, modelo italiano, renascença. O viajante trepou os intérminos degraus, parecia incrível ter de subir tanto para alcançar um primeiro andar, é a ascensão do Everest, proeza ainda sonho e utopia de montanheiros, o que lhe valeu foi ter aparecido no alto um homem de bigodes com uma palavra animadora, upa, não a diz, mas assim pode ser traduzido o seu modo de olhar e debruçar-se do alcandorado patamar, a indagar que bons ventos e maus tempos trouxeram este hóspede, Boas tardes, senhor, Boas tardes, não chega o fôlego para mais, o homem de bigodes sorri compreensivamente, Um quarto, e o sorriso agora é de quem pede desculpa, não há quartos neste andar, aqui é a recepção, a sala de jantar, a sala de estar, lá para dentro cozinha e copa, os quartos ficam em cima, por isso vamos ter de subir ao segundo andar, este aqui não serve porque é pequeno e sombrio, este também não porque a janela dá para as traseiras, estes estão ocupados, Gostava era de um quarto de onde pudesse ver o rio, Ah, muito bem, então vai gostar do duzentos e um, ficou livre esta manhã, mostro-lho já. A porta ficava ao fim do corredor, tinha uma chapazinha esmaltada, números pretos sobre fundo branco, não fosse isto um recatado quarto de hotel, sem luxos, fosse duzentos e dois o número da porta, e já o hóspede poderia chamar-se Jacinto e ser dono duma quinta em Tormes, não seriam estes episódios de Rua do Alecrim mas de Campos Elísios, à direita de quem sobe, como o Hotel Bragança, e só nisso é que se parecem. O viajante 8 gostou do quarto, ou quartos, para sermos mais rigorosos, porque eram dois, ligados por um amplo vão, em arco, ali o lugar de dormir, alcova se lhe chamaria noutros tempos, deste lado o lugar de estar, no conjunto um aposento como uma casa de habitação, com a sua escura mobília de mogno polido, os reposteiros nas janelas, a luz velada. O viajante ouviu o rangido áspero de um eléctrico que subia a rua, tinha razão o motorista. Então pareceu-lhe que passara muito tempo desde que deixara o táxi, se ainda lá estaria, e interiormente sorriu do seu medo de ser roubado, Gosta do quarto, perguntou o gerente, com voz e autoridade de quem o é, mas blandicioso como compete ao negócio de alugador, Gosto, fico com ele, E vai ser por quantos dias, Ainda não sei, depende de alguns assuntos que tenho de resolver, do tempo que demorem. É o diálogo corrente, conversa sempre igual em casos assim, mas neste de agora há um elemento de falsidade, porquanto o viajante não tem assuntos a tratar em Lisboa, nenhum assunto que tal nome mereça, disse uma mentira, ele que um dia afirmou detestar a inexactidão. Desceram ao primeiro andar, e o gerente chamou um empregado, moço dos recados e homem dos carregos, que fosse buscar a bagagem deste senhor, O táxi está à espera defronte do café, e o viajante desceu com ele, para pagar a corrida, ainda se usa hoje esta linguagem de cocheiro e sota, e verificar que nada lhe faltava, desconfiança mal encaminhada, juízo imerecido, que o motorista é pessoa honesta e só quer que lhe paguem o que o contador marca, mais a gorjeta do costume. Não vai ter a sorte do bagageiro, não haverá outras distribuições de pepitas, porque entretanto trocou o viajante na recepção algum do seu dinheiro inglês, não que a generosidade nos canse, mas uma vez não são vezes, e ostentação é insulto aos pobres. A mala pesa muito mais do que o meu dinheiro, e quando ela alcança o patamar, o gerente, que ali estava esperando e vigilando o transporte, fez um movimento de ajuda, a mão por baixo, gesto simbólico como o lançamento duma primeira pedra, que a carga vinha subindo toda às costas do moço, só moço de profissão, não de idade, que essa já carrega, carregando ele a mala e pensando dela aquelas primeiras palavras, de um lado e do outro amparado pelos escusados auxílios, o segundo, igualzinho, dava-lho o hóspede, dorido da força que via fazer. Já lá vai a caminho do segundo andar, É o duzentos e um, ó Pimenta, desta vez o Pimenta está com sorte, não tem de ir aos andares altos, e enquanto ele sobe tornou o hóspede a entrar na recepção, um pouco ofegante do esforço, pega na caneta, e escreve no livro das entradas, a respeito de si mesmo, o que é necessário para que fique a saber-se quem diz ser, na quadrícula do riscado e pautado da página, nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade, 9 parece o princípio duma confissão, duma autobiografia íntima, tudo o que é oculto se contém nesta linha manuscrita, agora o problema é descobrir o resto, apenas. E o gerente, que estivera de pescoço torcido para seguir o encadeamento das letras e decifrar-lhes, acto contínuo, o sentido, pensa que ficou a saber isto e aquilo, e diz, Senhor doutor, não chega a ser vénia, é um selo, o reconhecimento de um direito, de um mérito, de uma qualidade, o que requer uma imediata retribuição, mesmo não escrita, O meu nome é Salvador, sou o responsável do hotel, o gerente, precisando o senhor doutor de qualquer coisa, só tem que me dizer, A que horas se serve o jantar, O jantar é às oito, senhor doutor, espero que a nossa cozinha lhe dê satisfação, temos também pratos franceses. O doutor Ricardo Reis admitiu com um aceno de cabeça a sua própria esperança, pegou na gabardina e no chapéu, que pousara numa cadeira, e retirou-se. O moço estava à espera, do lado de dentro do quarto, com a porta aberta. Ricardo Reis viu-o da entrada do corredor, sabia que, em lá chegando, o homem iria avançar a mão serviçal, mas também imperativa, na proporção do peso da carga, e enquanto caminhava notou, não se apercebera antes, que só havia portas de um lado, o outro era a parede que formava a caixa da escada, pensava nisto como se tratasse de uma importante questão que não deveria esquecer, realmente estava muito cansado. O homem recebeu a gorjeta, sentiu-a, mais do que a olhou, é o que faz o hábito, e ficou satisfeito, tanto assim que disse, Senhor doutor, muito obrigado, não poderemos explicar como o sabia ele, se não vira o livro dos hóspedes, é o caso que as classes subalternas não ficam a dever nada em agudeza e perspicácia às pessoas que fizeram estudos e ficaram cultas. A Pimenta só lhe doía a asa duma omoplata por mau assentamento, nela, duma das travessas de reforço da mala, nem parece homem com tanta experiência de carregar. Ricardo Reis senta-se numa cadeira, passa os olhos em redor, é aqui que irá viver não sabe por quantos dias, talvez venha a alugar casa e instalar consultório, talvez regresse ao Brasil, por agora o hotel bastará, lugar neutro, sem compromisso, de trânsito e vida suspensa. Para além das cortinas lisas, as janelas tornaram-se de repente luminosas, são os candeeiros da rua. Tão tarde já. Este dia acabou, o que dele resta paira longe sobre o mar e vai fugindo, ainda há tão poucas horas navegava Ricardo Reis por aquelas águas, agora o horizonte está aonde o seu braço alcança, paredes, móveis que reflectem a luz como um espelho negro, e em vez do pulsar profundo das máquinas do vapor, ouve o sussurro, o murmúrio da cidade, seiscentas mil pessoas suspirando, gritando longe, agora uns passos cautelosos no corredor, uma voz de mulher que diz; Já lá vou, deve ser criada, estas palavras, esta voz. Abriu uma das janelas, olhou para fora. A chuva parara. O ar fresco, 10

Description:
Se me disserem que é absurdo falar assim de quem nunca .. Se somente isto sou, pensa Ricardo Reis depois de ler, vestígio de ironia no sorriso, se de sorriso ainda justificam o nome dois lábios abertos sobre Page 84
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.