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História Regional da Infâmia PDF

221 Pages·2010·1.143 MB·Portuguese
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Para Luiz Carlos Carneiro, o Caio, amigo e meu primeiro grande professor de História, que nos deixou quando setembro de 2009 entrou. In memoriam Todo imaginário é real. Todo real é imaginário. S UMÁRIO "Infames, infames" Traíram ou não traíram? O mais infame dos documentos Ainda o documento ignominioso Neto perde sua ética Os quatro dias do inferno O que prova um carrapato? Como incorporar um negro Punições e recompensas Uma moleca para Lindoca O bom uso dos negros Pequenas causas, grandes ideais Uma revolução platina envergonhada Amigos e hermanos Um golpe militar Separatismo de conveniência Uma viagem ao Rio de Janeiro Uma República militar Honra e ouro Sequestros e desapropriações Porto Alegre vale um suborno A mazorca de Alegrete Um duelo no pampa As loucuras do Bambá Bento Gonçalves, herói ou ladrão? A defesa do ladrão herói ou do herói ladrão Uma Constituição autoritária O enigma de Porongos Como se reescreve a História? Quem morreu em Porongos? Um jogo de cartas Uma carta inesquecível A estranha reação de Canabarro A primeira defesa de Rodrigues Rodrigues versus Varela (primeiro round) Varela versus Rodrigues (segundo round) Rodrigues versus Varela (terceiro round) O falso original ou o original falso A testemunha (quase) ocular da História A carta forjada Novas e velhas interpretações Farsa em Porongos e traição em Ponche Verde ou traição em Porongos e farsa em Ponche Verde? Achegas de Portinho A carta “roubada”, a hipótese radical Varela desabafa Uma barca para o Rio de Janeiro As deserções de agosto Por baixo do Ponche Verde Comissões parlamentares de antigamente Mito e História Ponche Verde, o encontro de cúpula que não existiu O acordo que o Império nunca assinou (ou trato e não tratado) O batalhão de Alegrete Por que Caxias não assinou? A linguagem de Caxias Como se produz um mito Um discurso sincero na Câmara de Deputados Uma história de encomenda O eterno recomeço O destino dos negros farrapos Da valsa ao hino Deu no jornal A saga de Manoel Congo Caxias no Paraguai A revolução da degola Catálogos da iniquidade Canudos, a infâmia primitiva Aqui se paga A força dos fracos Chibata, um capítulo da História nacional da infâmia Em busca de uma boa história I " NFAMES, INFAMES" C não muito distante grandes homens construíram o Brasil com a força das suas ONTA-SE QUE NUM PASSADO mãos, com a energia dos seus ideais e com o sangue que aceitaram verter em campos, rios, sertões e matas em nome do futuro e da pátria. Esses homens saíram da História para entrar no mito. Hoje, brilham em livros escolares ou figuram em placas de ruas paradoxalmente esquecidos e sempre lembrados. Quem foram esses homens? O que fizeram? Foram somente heróis? E se tivessem sido também infames personagens de uma época cruenta em que o futuro se fazia a golpes de preconceitos, de lança e de balas de canhão? Seria a infâmia a mesma por toda parte? Seria a infâmia um fenômeno de época, com as mesmas características conforme o período histórico e a geografia dos acontecimentos? Seria a infâmia sempre universal? Ou a infâmia assume formas e modalidades específicas? O grande Borges escreveu uma História universal da infâmia. Podemos falar de uma História regional da infâmia? Uma infâmia latino-americana? Uma infâmia brasileira? Uma infâmia gaúcha? Quais seriam os principais capítulos de uma infâmia brasileira: o esmagamento das revoltas populares da Regência pelo Duque de Caxias? O destino dos negros da Revolução Farroupilha? A participação do Brasil na Guerra do Paraguai? A destruição de Canudos? O tratamento dado a João Cândido e aos seus companheiros na Revolta da Chibata? Qual a cor da infâmia no Brasil do século XIX e começo do século XX? Pode a infâmia se esconder atrás de ideais humanistas? Podem os perpetuadores da infâmia entrar para a História como heróis? São tantas perguntas e tantos caminhos que se abrem para a busca das respostas. Escrever a História é sempre produzir um imaginário. Produzir é um modo de desvelamento, uma forma de dizer o mundo, de descobrir, de “desencobrir”, de recobrir e de tecer novamente o passado. A História nunca para de ser refeita, reescrita, redita, reinventada. Por que não se fazer uma breve cartografia da infâmia neste Brasil construído a ferro e a fogo? Por que não se fazer um inventário, mesmo incompleto, de iniquidades? Esta História regional da infâmia se apresenta assimétrica. Alguns episódios importantes terão capítulos curtos por já terem sido magistralmente tratados em obras-primas. É o caso de Canudos. O espaço maior está reservado ao lado infame da Revolução Farroupilha. Por quê? Talvez por ser a Revolução Farroupilha o acontecimento mais reconstruído e mitificado da História brasileira, a ponto de História e Mito acharem-se atualmente quase inteiramente confundidos, com ampla vantagem para a idealização. O historiador desmancha prazeres. Cabe-lhe muitas vezes atrapalhar os mais belos sonhos daqueles que têm o poder de fazer sonhar. E se em cada herói se escondesse também um carrasco? E se a História, como a lemos nas cartilhas, não passasse de um romance de não ficção, uma narrativa estranha em que, sem poder mentir, não se dissesse a verdade? O que é a verdade? No mundo inteiro, obviamente, historiadores discutem há décadas os limites da narrativa histórica. O problema é quando tudo isso diz respeito aos nossos heróis. Há quem desconfie da fidelidade dos relatos históricos de Samarcande. E os nossos? Como são? Seria a História um labirinto de espelhos que se refletem e neutralizam como uma série infinita de versões incompletas, sobre um mesmo acontecimento, narradas por cegos de olhos bem abertos e interiormente iluminados? Quem sabe? Vejamos alguns episódios. T RAÍRAM OU NÃO TRAÍRAM? T ? Esta é a questão que o tempo não consegue silenciar, embora grandes sejam os RAÍRAM OU NÃO TRAÍRAM esforços dos construtores de mitos e dos orgulhosos defensores de uma forte identidade gaúcha para que não se perca tempo com mesquinhos detalhes de uma ordem supostamente inferior. A traição, afinal, não passa de um ponto de vista, a vista do ponto do traído. Os farrapos traíram ou não traíram os negros que com eles lutaram contra o Império brasileiro movidos pela promessa de liberdade? Traíram em Porongos? Traíram em Ponche Verde? Traíram não abolindo a escravidão quando proclamaram a República, em 1836, e sentiram-se livres? Traíram ao final do conflito, quando, para selar uma paz dita honrosa, mais ou menos rendosa, com direito a indenização, aceitaram entregar os últimos negros ainda incorporados às suas forças? Traíram quando financiaram parte da luta com a venda e o aluguel de negros no Uruguai? Traíram os escravos dos imperiais que atraíram para as suas fileiras estimulando sublevações, esperanças e fugas? Domingos José de Almeida, na minuta de uma carta a Manuel Antunes da Porciúncula, dava conta dos seus temores em escrever uma História da Revolução Farroupilha: “Eis meu amigo Antunes por que não querem que eu escreva essa História: e estarei livre de algum assassinato! O futuro o dirá” (Coleção Varela 714). Essa correspondência falava de Porongos. Quase todos os farroupilhas que um dia criticaram os principais chefes farroupilhas acabaram assassinados: Paulino da Fontoura, Onofre Pires – este num duelo, sem testemunhas, com Bento Gonçalves – e até Antônio Vicente da Fontoura, apunhalado por um liberto chamado Manoel, em 1861, para a libertação do qual havia colaborado com dez onças de ouro. Santa infâmia! Isso tudo sem contar a morte em condições jamais bem esclarecidas de Joaquim Teixeira Nunes, o comandante dos lanceiros negros massacrados em Porongos. As razões oficiais para essas mortes jamais convenceram a todos. Domingos José de Almeida, em outra carta, endereçada a Bernardo Pires, ao abordar a tragédia de Porongos, destacara as enormes resistências ao seu insano projeto de contar tudo o que sabia: “Eis meu amigo por que do nosso lado e do lado dos nossos antagonistas há oposição para a transcrição da nossa História: oposição que talvez triunfe pelo meu estado de saúde, de finanças, de capacidade e de dificuldades que me criam e que renascem apenas destruídas as primeiras” (CV 711). Por quê? Em 1836, quando os farrapos proclamaram a República contra a tirania do Império, tendo como lema “liberdade, igualdade e humanidade”, a luta contra a escravidão era uma realidade em vários lugares do mundo. A abolição começou a ser decretada em Portugal, na metrópole, em 1767, com a proibição de importar novas peças e com a lei do ventre livre de 1773; na Dinamarca (1792); na França (1794), embora Napoleão a tenha restabelecido em 1802; no Haiti (1794 e 1804); no Chile (1823); no México (primeira investida em 1810, segunda em 1829); na Inglaterra (1834); na Bolívia (1831). Simón Bolívar começara o seu empenho abolicionista em 1816 e 1817, libertando os negros republicanos. Em 1821, finda a Batalha de Carabobo, ele libertou os escravos que possuía na fazenda San Mateo. Com esse tipo de atitude, só poderia se tornar perigoso e produzir, ainda hoje, um gosto amargo na boca dos conservadores. Na época, os proprietários de escravos defendiam seu patrimônio em nome da ordem e do bom-senso. Na América do Sul, foi necessário, em muitas nações, abolir mais de uma vez a escravidão, pois as leis simplesmente não eram cumpridas. Não pegavam. O ato final na Venezuela só aconteceria em 24 de março de 1854. Houve resistência branca à resistência negra. Em 1815, no Congresso de Viena, as potências europeias restauradoras declararam-se contrárias à escravidão. A Inglaterra pagou aos portugueses 750 mil libras para parar o tráfico, o que só ocorreu mesmo em 1850. Em quase toda parte, por razões humanistas ou econômicas, mais econômicas do que humanistas, combatia-se o horror, que se tornara horrorosamente pouco rentável, salvo para os farrapos. Prometíamos a liberdade com uma mão e apertávamos as correntes com as duas. Era uma questão de cálculo. O historiador Walter Spalding ajudou, depois de 1930, a consolidar um mito com a sua Revolução Farroupilha e com o seu talento para a omissão de dados inconvenientes: “Lá no Prata, D. Juan Manuel de Rosas, sanguinário, crudelíssimo, exercia, com todo o furor, a sua ditadura” (1980, p. 74). Rosas não possuía escravos. A Argentina adotara a abolição parcial, com uma lei do ventre livre, em 1813. Rosas se apoiou nos negros e em outros marginais, entre os quais os “gaúchos”, para frear seus inimigos. A Constituição uruguaia de 1830 estipulava a abolição. Rivera deu-lhe realidade de fato em 1842 ao libertar todos os negros que se incorporassem ao exército. De direito, definitivamente, foi preciso esperar 1846 por pressão de escravocratas do Rio Grande do Sul, desejosos de repatriar os seus negros. Reunidos em Alegrete, ao final de 1842, para escrever a Constituição da República Rio- Grandense, os farrapos, embora houvesse uma proposta de abolição da escravatura, recusaram-se a apostar numa ideia tão cruel e a deixar os escravos desamparados dos seus senhores. Seriam cidadãos rio-grandenses apenas os homens nascidos livres e aqueles que por razões especificadas merecessem a alforria. A infâmia só se torna realmente universal quando praticada, em cada aldeia, com esmero, sofisticação e boas maneiras. Engana-se, porém, quem imagina que a traição seja a forma por excelência da infâmia. A barbárie e o preconceito marcam outras modalidades igualmente eficazes de infâmia, cujo apogeu, entretanto, é quando esta se apresenta como sua própria negação, travestida de benefício a quem sofre a sua ação sinuosamente deletéria, assim como a forma mais sofisticada da barbárie pode ser a civilização. Na fase primitiva, a infâmia espalha certezas. Na fase superior, pode assumir a forma de simulacro da dúvida e da ambiguidade, fazendo do mito a única verdade essencial. Conta-se que em tempos imemoriais viveu um homem tão infame que se tornou benfeitor de todos os seus concidadãos somente para melhor poder desprezá-los. Esse homem paradoxalmente bondoso não deve ter sido muito diferente de Domingos José de Almeida, considerado o cérebro da Revolução Farroupilha, mulato e dono de uma centena de escravos, que vendeu algumas dezenas deles para comprar armas, fardas e cavalos destinados a um movimento que se gabaria de ser abolicionista. Pelo jeito, a infâmia é um estado de espírito que nega a grandeza da alma e engrandece a pequenez dos instintos. O MAIS INFAME DOS DOCUMENTOS T e se perde no seguinte. A História sempre se faz num presente alheio ao UDO SE VINCULA NUM MOMENTO dos fatos. Perguntas vão e voltam. Como se financiou a Revolução Farroupilha? A famosa Coleção Varela, publicada sob o título de Anais do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul, contém em torno de treze mil documentos sobre a guerra dos farrapos que podem dar respostas surpreendentes e curiosas a essa questão. No volume 3, sob o número 652, encontra-se aquele que se deveria chamar de o mais infame dos documentos, ou documento ignominioso, ainda mais se o lema dos farrapos era mesmo “liberdade, igualdade e humanidade” e se, na época da eclosão do movimento, a causa abolicionista havia vencido, como já se disse, em outros países ocidentais, inclusive nalguns da triste América do Sul. O tráfico no Brasil estava formalmente proibido. Domingos José de Almeida, autor do documento infame, foi o mentor intelectual dos farroupilhas. O historiador e general Morivalde Calvet Fagundes, repetindo muitos outros, garante que Almeida foi um dos que definiram “o rumo da revolução” (1984, p. 151). Ele chegou a ser ministro da Fazenda da República Rio-Grandense. Vicente da Fontoura, que o sucedeu no posto, acusou-o de malversação de verbas e outros deslizes burocráticos tão comuns atualmente. Em 25 de outubro de 1845, Almeida comete o documento ignominioso. Em carta a David Canabarro, pede o testemunho do último chefe do exército farroupilha em seu favor numa causa infame: “Com a ocorrência de 15 de junho de 1836 que pôs a capital da Província em poder de nossos antagonistas, forçoso foi para cada um de nós, além de nossos serviços pessoais, concorrer com a quota que nos foi possível agenciar para obter objetos bélicos e todos os meios de prosseguir na empresa em que nos achávamos empenhados: a mim, pois, me coube despender no conserto da escuna ‘2 de Junho’, no armamento da escuna ‘30 de Maio’, na criação do Trem de Guerra, no feitio de roupas para o exército, e no suprimento de quantias à soma de Rs. 3.647$455”.[1] O financiador queria então receber. Para sustentar a sua reclamação, explicava como financiara a parte que lhe coubera num movimento revolucionário cujos herdeiros ainda pretendem que tenha sido abolicionista: “Prevendo os resultados da retirada de 4 de janeiro de 1837 se nossos companheiros não fossem de pronto socorridos de cavalgadura, roupa, fumo e erva, nesse mesmo dia despachei 35 escravos, que de minha propriedade tinha já no departamento de Cerro Largo, com Vicente José Pinto para serem vendidos em Montevidéu e seu produto aplicar a esse importante fim”. A Revolução Farroupilha foi, portanto, financiada com a venda de homens. Uma revolução por igualdade, liberdade e humanidade sustentada com a venda de negros. Almeida ainda precisou, para que o seu interlocutor não o tomasse por desonesto: “Tais escravos foram com efeito vendidos a Manuel Gonçalves da Costa, e pouco depois dois mais: um a José Tavares, de Taquari, em pagamento de cavalos que lhe comprei para o exército”. Uma verdade incômoda. Almeida apresenta provas documentais e garante que as quantias foram “fielmente aplicadas na manutenção da guerra”. Para confirmar que estava falando rigorosamente a verdade, recorre ao testemunho imparcial do inimigo. Correspondência sua ao general Neto, de 23 de março de 1839, sobre o caso, tendo caído em mãos dos adversários, havia sido impressa no jornal O Mercantil do Rio Grande, e, segundo ele, “tanto me havia de servir um dia essa impressão para mostrar pelo veículo do inimigo a veracidade dos fatos”. Almeida dizia tudo isso a Canabarro para combater a “torpeza” e as “negras calúnias” que o faziam sentir “agonias mortais”, o que o obrigava a “apelar para o reto bom- senso e a probidade” de Canabarro. No imaginário dos homens comuns, revoluções pela igualdade e pela humanidade normalmente libertam escravos, não se financiam com a venda deles. Ou, seja por

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