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Hannah Arendt PDF

20 Pages·2015·0.23 MB·Portuguese
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Hannah Arendt: uma leitora de Maquiavel Maria Francisca Pinheiro Coelho Professora Titular do Departamento de Sociologia, da Universidade de Bra- sília. Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Ceará, mestrado e doutorado em Sociologia, pela Universidade de Brasília; e pós-doutorado na The New School for Social Research, em Nova York, com pesquisa sobre Hannah Arendt. É autora do livro José Genoino: esco- lhas políticas (Centauro, 2007) e uma das organizadoras dos livros Política, ciência e cultura em Max Weber (Universidade de Brasília, 2000); Política e valores (Universidade de Brasília, 2000); Marx morreu: viva Marx! (Papirus, 1993), entre outros. Endereço eletrônico: [email protected] Whether the criterion is glory – the shining out in the space of appearances – or whether the criterion is justice, that is not the decisive thing. The decisive thing is whether your own motivation is clear – for the world – or, for yourself, by which I mean for your soul. That is the way Machiavelli put it when he said, “I love my country, Florence, more than I love my eternal salvation”. That doesn’t mean he didn’t believe in an after-life. But it meant that the world as such is of greater interest to me than myself, my physical as well as my soul self. Hannah Arendt1 Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 104 HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL O interesse pela obra de Hannah Arendt provém, comumente, de sua refl exão sobre a política como o espaço da pluralidade e da liberdade. Viver como ser distinto entre iguais constitui a premissa de seu pensamento político. A pluralidade é a condição da ação humana “pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir” (ARENDT, 1987, p. 16). E por ser a ação a atividade política por excelência, a esfera pública, o espaço comum compartilhado, pressupõe a liberdade. O preceito da li- berdade foi criado ao mesmo tempo em que o homem: “A liberdade, como a capacidade interior do homem, equivale à capacidade de começar, do mesmo modo que a liberdade política equivale a um espaço que permita o movimento entre os homens” (1989a, p. 525). A política é uma maneira ampliada de pensar: pensar com o outro e no lugar de todos os outros. O poder corresponde à capacidade humana não somente de agir, mas agir de comum acordo. A violência se distingue do poder por ser uma ação instrumental e, por isso mesmo, precisa de justifi cativa. Com base nesses conceitos, como explicar o interesse tão grande de Hannah Arendt pela obra de Maquiavel e sua frequente interlocução com o pensamento do autor? Como entender a conexão do pensamento de uma autora tão preocupada com a dimensão libertária da política com Maquia- vel, cuja compreensão da política se vincula à conquista e manutenção do poder? O presente trabalho procura se reportar à recepção de Maquiavel no pensamento de Hannah Arendt. A partir das referências de Arendt ao autor e da interpretação de suas ideias, tenta-se aqui reconstruir os elos do diálogo entre ambos. Hannah Arendt foi uma exímia leitora de Maquiavel, como demonstram seus cursos, livros e entrevistas (2013). Dentre os cursos de teoria política que ministrou em diferentes universidades nos Estados Unidos, três deles foram dedicados a Niccolò Machiavelli. Em 1955, em uma série de cursos sobre “History of Political Theory”, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, no Departament of Poltical Science, um deles foi Machiavelli, Niccolò – Lectures. Em 1961, na Wesleyan University, Middletown, Con- necticut, ministrou Machiavelli, Niccolò – Seminar, cujo conteúdo abrangia The Prince, The Discourses, The Letters, Florentine History e Mandragola, praticamente o conjunto de sua obra. Nesse seminário, além dos escritos de Maquiavel, foi incluída uma bibliografi a complementar, Required Reading e Recomended Reading, com uma lista de comentadores. Em 1965, ministrou o curso From Machiavellito Marx, na Cornell University, Ithaca, New York, no qual abordou questões relacionadas a poder, violência e esfera política. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO 105 Nos livros de Hannah Arendt, destacam-se as referências a Maquiavel em The Human Condition (1989b), publicado em 1958, e em On Revolution, de 1963. A epígrafe deste artigo foi extraída da participação de Arendt na conferência The Work of Hannah Arendt, em novembro de 1972, no Cana- dá, três anos antes de sua morte: “Hannah Arendt was invited to attend the conference as the guest of honor, but replied that she would prefer to be invited to participate” (HILL, 1979, 301).2 Durante os três dias do evento, no curso de intenso intercâmbio, Arendt espontaneamente revelou aspectos do seu pensamento, esclareceu dúvidas, respondeu questões, assim como comentou pontos relativos aos papers apresentados.3 Para fi ns de edição de sua participação no seminário, foi organizado um paper com o título Hannah Arendt on Hannah Arendt, publicado junta- mente com os papers do evento no livro Hannah Arendt: The Recovery of the Public World (1979). Esse ensaio biográfi co é bastante elucidativo do pensamento de Hannah Arendt, de suas motivações e opções pessoais. Parte do ensaio é composta de perguntas e respostas, e outra, de depoimentos – um deles, com o título Thinking and Acting (“Pensamento e ação”). Nesse ensaio biográfi co, Hannah Arendt refere-se algumas vezes a Maquiavel. Ao retratá-lo por meio da expressão “Eu amo meu país, Florence, mais do que a minha salvação eterna” quis demarcar a diferença estabelecida por ele entre a esfera pública e a esfera privada. Desse modo, Maquiavel não só delimitava o campo da autonomia da política, como também indicava que essa não era a esfera para os que estavam preocupados com a salvação da alma. Contudo, o contexto de interlocução de Hannah Arendt com Maquiavel também envolve, argui-se aqui, a própria orientação de Arendt como pen- sadora, ao expressar, nesse mesmo ensaio, sua motivação pessoal para a atividade do pensamento e não da ação. A autora também sublinha o vínculo indissolúvel entre as duas atividades. O pensamento está relacionado com a experiência no mundo e não pode ser diferente: “Eu não acredito que possa haver qualquer processo de pensamento sem experiência pessoal. Todo pensamento é ‘re-pensado’: ele pensa depois da coisa.” (ARENDT, 1993, p. 141). Porém, ao dedicar-se à atividade da compreensão, Arendt afi rma querer se ater à realidade factual, sem modelos a priori: “Eu quero focalizar a política com os olhos, por assim dizer, depurados de qualquer fi losofi a” (ibidem, p. 124). Assume-se aqui que o diálogo de Hannah Arendt com o pensamento de Maquiavel faz parte da própria refl exão da autora sobre seu posiciona- mento entre fi losofi a e política. Arendt expõe que sua motivação pessoal é Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 106 HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL para a atividade do pensamento, mas essa atividade é indissociável de sua experiência no mundo. Sua crítica à fi losofi a não é a atividade do pensa- mento, mas a separação dessa atividade do mundo, como se o pensamento subsistisse sem a experiência. Sua busca pela compreensão estava a serviço da objetividade do conhecimento. Como escreve no prefácio à primeira edição de Origens do totalitarismo, “Compreender não signifi ca negar nos fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar-se de generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência” (1989a, p. 12). Em síntese, compreender signifi ca enfrentar a realidade sem preconceitos. Maquiavel delimita a esfera da política e constrói o modelo do ho- mem de ação, suas paixões, suas virtudes, sua ligação com o mundo, como preocupações centrais da vida pública. Para destacar os elos da leitura de Hannah Arendt de Maquiavel, este trabalho se concentra nos seguintes tópicos: o conceito de foundation; as esferas pública e privada; política e ação; pensamento e ação. O CONCEITO DE FOUNDATION Para Hannah Arendt, Maquiavel é o pai espiritual da revolução. A questão da pobreza emerge quando os homens questionam a pobreza como inerente à condição humana: A secularização – a separação entre religião e política e o surgimento de uma esfera secular com dignidade própria – é sem dúvida um fato crucial no fenômeno da revolução. Na verdade, é bem possível que o que chamamos revolução seja precisamente essa fase de transição que resulta no nascimento de uma esfera nova, de tipo secular (2011, p. 53). Em On Revolution, Hannah Arendt desenvolve uma refl exão sobre as revoluções modernas, confi guradas na Revolução Francesa e na Revolução Americana. O uso do termo revolução no sentido moderno se aplica a essas duas revoluções pelas suas características de ruptura com uma ordem insti- tucional constituída e de criação de uma nova ordem, independentemente da sobrevivência nessa nova ordem de elementos do passado, suas heranças e processos históricos. Nesses movimentos, que se constituem pela luta contra a opressão e em nome da liberdade, o uso da violência e a manifestação do poder se confundem. De acordo com a autora, dois são os elementos da revolução: a con- vergência entre a ideia de liberdade e a experiência de um novo começo. O Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO 107 conceito de foundation é utilizado para defi nir esse novo começo. No primeiro capítulo do livro, “O signifi cado da revolução”, Hannah Arendt reserva cinco páginas para exemplifi car como o sentido do conceito de foundation está contido na compreensão de Maquiavel dos movimentos de unifi cação na Itália, embora o sentido de fundação, para ele, fosse de rinovazione. A palavra ‘revolução’ também está ausente “naquele lugar em que mais tenderíamos a pensar que se faria presente, a saber, a historiografi a e a teoria política do começo do Renascimento na Itália” (ARENDT, 2011, p. 65). Para Arendt, o que defi ne a grande pertinência de Maquiavel para uma história da revolução, da qual ele foi um precursor, “é que ele foi o primeiro a pensar a possibilidade de fundar um corpo político permanente, constante e duradouro” (ibidem, p. 65). Segundo a autora, Maquiavel já estava familiarizado com certos elementos marcantes que iriam estar presentes nas revoluções modernas, como a conspiração, a luta de facções, a instigação à violência, e acabam por desmoronar o corpo político, bem como as opor- tunidades que as revoluções criam para os que vêm de baixo e “se elevam ao esplendor da esfera política, saem da insignifi cância e se erguem a um poder a que antes estavam submetidos” (ibidem, p. 66). No entanto, acrescenta Arendt, o mais importante em Maquiavel naquele contexto das lutas de unifi cação da Itália foi o fato de ele ser o primeiro a visualizar, de um âmbito exclusivamente secular, que as leis e princípios de ação eram independentes das doutrinas, da Igreja em particular, e dos critérios morais: “Era por isso que ele insistia que o homem que ingressava na política devia primeiramente aprender a ‘não ser bom’, isto é, a não agir de acordo com os preceitos cristãos” (ibidem, p. 66). O traço principal a diferenciá-lo dos homens da revolução era seu conceito de ‘fundação’, que signifi cava “[...] a criação de um Itália unifi cada, de um Estado nacional italiano aos moldes do exemplo francês e espanhol – entendida como rinovazione, e a renovação era a única alterazione a salute, a única alteração saudável que lhe era possível conceber” (ibidem, p. 66). Arendt argumenta que o movimento de unifi cação da Itália não era entendido por Maquiavel como o de fundação nos moldes que vai assu- mir no século XVIII, mas de renovazione, e que a renovação era a única alteracione saudável que ele conseguia conceber. Nesse sentido, o pathos revolucionário de um movimento específi co do absolutamente novo era estranho a Maquiavel. Mas, apesar disso, “ele não estava tão distante de seus sucessores no século XVIII como poderia parecer” (ibidem, 66), pois o pathos revolucionário de um início totalmente novo “nascia apenas no decorrer do próprio acontecimento” (ibidem, p. 66). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 108 HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL De acordo com a autora, a maior tentação de deixar de lado a his- tória da palavra e datar o fenômeno da revolução a partir do turbilhão nas cidades-estado italiano durante o Renascimento surge com os escritos de Maquiavel. A insistência de Maquiavel sobre o papel da violência no âmbito da política nunca deixou de chocar seus leitores, mas isso ocorreu também nas palavras e nas ações dos homens da Revolução Francesa. A ênfase de Maquiavel sobre a violência era o resultado da dupla perplexidade em que ele se encontrava teoricamente, e que mais tarde passou a ser uma perplexidade muito concreta a assediar os homens da revolução. Essa perplexidade, segundo Arendt, “consistia na tarefa da fundação, no es- tabelecimento de um novo início, que, enquanto tal, parecia exigir violência e violação” (ibidem, p. 68). Mesmo que o sentido de unifi cação das cidades-estado italianas não incluísse o signifi cado de algo novo, de início, a tarefa de fundação iden- tifi cada com a função de unifi cação vinha acompanhada da tarefa de criar e impor aos homens uma nova autoridade, que conseguisse ocupar o lugar da velha autoridade absoluta, conferida por um Deus onipotente. Por isso, “Maquiavel, inimigo jurado de qualquer consideração de ordem religiosa nos assuntos políticos” (ibidem, p. 68), ao ser levado a procurar um novo absoluto para substituir o absoluto do poder divino, vai apoiar-se no poder da legislação. Para Arendt, as refl exões de Maquiavel ultrapassavam em muito todas as experiências concretas de sua época: “A nova palavra que Maquiavel introduziu na teoria política, e que já era usada mesmo antes dele, foi ‘esta- do’, lostato” (ibidem, p. 69). Com as revoluções modernas, a libertação no sentido revolucionário veio a signifi car que [...] todos aqueles, não só no presente, mas ao longo da história, não só enquanto indivíduos, mas como integrantes da imensa maioria da humanidade, os humildes e os pobres, que sempre tinham vivido na obscuridade e na sujeição ao poder vigente, iriam se levantar e se tornar os soberanos supremos da terra (ibidem, p. 70). Isso quer dizer igualdade de direitos, e essa própria ideia de igualda- de como direito inato de todos ao nascer era absolutamente desconhecida antes da era moderna. Em Hannah Arendt, o conceito de ‘fundação’ vem acompanhado do sentido de ‘ruptura’, da busca pela liberdade e da noção de um novo começo. Nessas situações, poder e violência, ainda que fenômenos distintos, quase sempre aparecem juntos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO 109 Nem sempre o signifi cado de ‘fundação’, presente em uma revolução ou em uma guerra, como experiência fundadora de um novo começo é pre- servado em termos da ampliação do signifi cado do público e do sentido da república. Nas próprias comparações feitas pela autora entre a Revolução Americana e a Revolução Francesa, esta, posterior àquela, substituiu um poder absoluto por outro, o Estado, ou a força da lei; e a primeira centrou seus ideais na independência e no valor do indivíduo livre. Na Revolução Francesa, o ódio à desigualdade social foi maior do que o amor à liberdade; enquanto que, na Revolução Americana, o sentido de fundação portava em si, de forma duradoura, o princípio da opinião pública e da liberdade. Embora possa parecer um truísmo, Arendt procura distinguir os con- ceitos de ‘libertação’ e ‘liberdade’: o primeiro se caracteriza pela luta contra a opressão e pela conquista de direitos, sempre expresso nas revoluções; o segundo se caracteriza pela escolha da liberdade como modo de vida. A libertação pode ser a condição da liberdade, mas de forma alguma conduz automaticamente a ela. A noção de liberdade implícita à de libertação não é igual ao desejo de liberdade. Com essas duas noções de ‘liberdade’, Arendt quis pontuar uma das principais diferenças entre a Revolução Americana e a Francesa: na Revolução Americana, o conceito de ‘liberdade’, pública e privada, expressou-se como uma escolha de modo de vida, na busca da felicidade pública, representada pelo espírito da república; na Revolução Francesa, o conceito de ‘liberdade’ expressou-se na busca da liberdade pública, representada pela libertação do estado de necessidade. Na França, a liberdade só podia existir em público, como uma representação do Estado. A autora também destacou, entre as diferenças das duas revoluções, a distinção entre a compaixão e o discurso, a persuasão. O sentido de compaixão não estava presente na Revolução Americana; na Revolução Francesa sim, pois a questão social, o problema da necessidade, “invadiu a esfera pública, a única esfera em que os homens podem ser verdadeiramente livres” (2011, p. 157). AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA Se, para Hannah Arendt, Maquiavel é o precursor do conceito de foundation ao antever os desafi os da formação do Estado italiano, também para a autora, ao propugnar pela separação entre religião e política, ele se referia à separação entre a esfera pública e a esfera privada. A experiência política não é a mesma coisa que uma experiência pessoal. No entanto, as Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 110 HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL experiências públicas e privadas são interligadas. Elas são tocadas pela experiência pública política e vice-versa, mas as diferenças permanecem. Em A condição humana (1987), no capítulo dois, “As esferas pública e privada”, Arendt discorre sobre a natureza pública da política e suas par- ticularidades. É nesse capítulo, mais especifi camente, que a autora dialoga com Maquiavel sobre as suas contribuições alusivas a esse tema, e de forma muito particular. Apesar disso, Habermas (1980) e O’Sullivan (1982), nas críticas à compreensão da política e do poder em Hannah Arendt, vão se reportar mais à sua infl uência helenista nessa obra. Ao analisar o público e o privado, Hannah Arendt recupera os en- sinamentos de Jesus de Nazaré para a esfera privada da religião, e os de Maquiavel para a esfera pública política, com o intuito de explorar distinções e virtudes de cada uma delas. Ao tratar das diferenças, a autora faz uma longa digressão sobre a bondade, um ensinamento de Jesus de Nazaré, que não deve ser praticado na esfera pública em busca de reconhecimento. Para mostrar o quanto a bondade não é uma virtude da política, Arendt se apoia em Maquiavel. Como única atividade que Jesus ensinou, a bondade não deve ser mostrada na esfera pública. Ao se referir à bondade, Arendt menciona que essa foi a única atividade que Jesus ensinou, por palavras e atos. E a bondade contém, obviamente, certa tendência de evitar ser vista e ouvida: Quando a bondade se mostra abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como ato de solidariedade. Daí: ‘Não dês tuas esmolas perante os homens, para seres visto por eles.’ A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou zeloso membro da Igreja. Daí: ‘Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita’ (ibidem, p. 85). A bondade, como modo sistemático de vida, não é apenas impossível nos confi ns da esfera pública; pode até mesmo destruí-la. Para a autora, talvez ninguém tenha percebido tão claramente essa qualidade destrutiva da bondade quanto Maquiavel, que, em famosa passagem, tem a ousadia de ensinar aos homens ‘a não serem bons’: O critério pelo qual Maquiavel julgava a ação política era a glória, o mesmo critério da antiguidade; e a maldade, como a bondade, não pode assumir Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 MARIA FRANCISCA PINHEIRO COELHO 111 o resplendor da glória. Assim, qualquer método pelo qual um homem possa realmente conquistar o poder político, mas não a glória, é mau. A maldade que deixa seu esconderijo é imprudente e destrói diretamente o mundo comum; a bondade que sai de seu esconderijo e assume papel público deixa de ser boa, torna-se corrupta em seus próprios termos e levará essa corrupção para onde quer que vá. Assim, para Maquiavel, o motivo pelo qual a Igreja era uma infl uência corruptora na política italiana é que participava de assuntos seculares, e não a corrupção individual dos bispos e prelados (ibidem, p. 87-88). O caráter extramundano das boas obras faz do amante da bondade uma fi gura essencialmente religiosa. Contraposta à bondade, que não deve buscar reconhecimento no mundo público, a coisa política está ligada ao perigo e ao risco: A coragem é a mais antiga das virtudes políticas e ainda hoje pertence às poucas virtudes cardeais da política, porque só podemos chegar no mundo público comum a todos nós – que, no fundo, é o espaço político – se nos distanciarmos de nossa existência privada e da conexão familiar com a qual nossa vida está ligada (ARENDT, 1998, p. 53). A passagem de Maquiavel à qual Hannah Arendt se remete é de O Príncipe, ao mencionar que a bondade não é uma virtude pública – no livro XV, “Das razões pela quais os homens, especialmente os príncipes, são louvados ou vituperados”. Ali, o autor fl orentino diz não ser a bondade o critério para medir a efi cácia de uma ação política: Quem quiser praticar sempre a bondade em tudo o que faz está condenado a penar, entre tantos que não são bons. É necessário, portanto, que o príncipe que deseja manter-se, aprenda a agir sem bondade, faculdade que usará ou não, em cada caso, conforme for necessário. [...] Se se refl etir bem, será fácil perceber que certas qualidades que parecem virtudes levam à ruína, e outras que parecem vícios trazem como resultado o aumento da segurança e do bem estar (MAQUIAVEL, 1982, p. 106). Para Maquiavel, o critério para se medir uma boa ou má ação po- lítica é o êxito, e o único fi m que deve orientar todas as ações do Príncipe é a manutenção do poder, um fi m honroso. O diálogo de Hannah Arendt com Maquiavel perpassa a todo momento por esse foco na política como Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122 112 HANNAH ARENDT: UMA LEITORA DE MAQUIAVEL coisa pública, pela dessacralização da política, pela abordagem da política como um campo de atividade que se caracteriza pela ação no mundo e pelo profundo vínculo com as questões públicas. E essa paixão de Maquiavel pela política se manifesta em seu amor por Florença, diante da situação particular da Itália na época. POLÍTICA E AÇÃO Em 1965, no curso From Machiavelli to Marx, Arendt apresenta mais ou menos assim os livros O Príncipe e os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio: O Príncipe, Maquiavel o endereça ao poder e a todos aqueles que têm poder; e os Discursos, para todos aqueles que não têm poder. O Príncipe trata daqueles que têm fortuna sem virtude; e os Discursos, daqueles que têm virtude sem fortuna. Ele mesmo, Maquiavel, claramente pertence a esses últimos. Com base no constante estudo da Antiguidade, dedica-se a estudar as ações dos grandes e a longa experiência dos eventos modernos. E resume: “He is interested only in the new foundation.”4 Acrescenta ainda que, para Maquiavel, há alguma coisa arbitrária em todo começo e nada mais difícil de alcançar e mais incerto do que o sucesso. Maquiavel demarca o campo da política e do que não se deve espe- rar do homem político. Ressalta Arendt: “The business with goodness was not brought up by me but by Machiavelli. It has something to do with the distinction between the public and the private” (1979, p. 310-311).5 Para Maquiavel, os políticos reais, e não os imaginários, são avalia- dos segundo suas ações, que lhe valem elogios ou desaprovação. E como é impossível ter todas as boas qualidades, pois as condições humanas não o permitem, é necessário que se tenha prudência para evitar vícios que possam levar à perda do poder. Na busca pela conquista e manutenção do poder, a estratégia da guerra é um meio para se alcançar esse fi m. Em O Príncipe, nos capítulos VI, VII, VIII e IX, ao descrever as quatro formas de conquista do poder, pelo valor (virtù), pela fortuna (sorte), pelas armas e pelo consentimento dos concidadãos, sua exposição é clara: a virtù prevalece sobre a fortuna; e o consentimento, sobre a violência (COELHO; MENEZES, 2013). A violência pode conduzir ao poder, mas é necessário virtù para que este seja mantido e para que se obtenha a glória. Em Maquiavel, como nos antigos, a glória é o critério para se avaliar a política. Do mesmo modo, a coragem, e não a bondade, é a virtude do político. Segundo ele, deve-se também estar atento à sorte: “O príncipe que baseia seu poder inteiramente Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 45, n. 2, jul/dez, 2014, p. 103-122

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