Coleção PASSO-A-PASSO CIÊNCIAS SOCIAIS PASSO-A-PASSO Direção: Celso Castro FILOSOFIA PASSO-A-PASSO Direção: Denis L. Rosenfield PSICANÁLISE PASSO-A-PASSO Direção: Marco Antonio Coutinho Jorge Ver lista de títulos no final do volume Adriano Correia Hannah Arendt Sumário Introdução Chegando ao mundo A filosofia se impõe O conceito de amor em Agostinho Apátridas e refugiados Origens do totalitarismo A condição humana Um relato sobre a banalidade do mal A vida do espírito Seleção de textos Cronologia Referências e fontes Leituras recomendadas Sobre o autor Introdução Hannah Arendt afirmou mais de uma vez que o pensamento tem de estar enraizado na experiência e só estabelece algo de relevante e significativo se permanece nessa situação. A sua condição de pensadora política dentre as mais destacadas do século XX não pode ser compreendida se pensarmos nela apenas como mais uma herdeira da tradição da filosofia alemã. Ainda que já em seus primeiros escritos se refletisse uma preocupação com a existência do homem no mundo mais que com qualquer princípio puramente metafísico, foram os eventos extremos do seu tempo que a atingiram frontalmente e desafiaram sua capacidade de compreender. Aceitar o desafio, para ela, significou pensar a fundo o totalitarismo, o evento que tornou um fato do mundo o que antes era parte apenas da história do pensamento: a ruptura do fio da tradição ocidental e, por conseguinte, das afinidades que estabeleceu. O que é marcante no pensamento de Arendt é a consciência do ocaso do político nos nossos tempos, consciência que também atua como ponto de partida de uma reflexão que, na sua busca por compreensão, tem em mente o caráter irremediável daquela ruptura. Em um contexto pós-tradicional, no qual não podemos pressupor que o homem seja um animal político, como os antigos, nem considerar como assentados os tradicionais princípios que eram também os fundamentos da moralidade, a questão que se propõe é como estabelecer os necessários espaços públicos, nos quais os homens não apenas atualizem sua capacidade de agir e vivam a cidadania, mas também os preservem como espaços de visibilidade em que a grandeza fugaz da frágil existência humana possa aparecer e ser rememorada. Em sua reflexão sobre a política, Hannah Arendt tem sempre em conta o conflito entre aquele que elegeu o pensar como modo de vida e aquele que se dedica à ação. A condenação do filósofo pela pólis, no evento emblemático que foi o julgamento e a morte de Sócrates, teria feito com que o filósofo e o político seguissem caminhos antagônicos, mais que distintos. Os filósofos passaram então a se ocupar em seu pensamento com o domínio dos assuntos humanos não por um interesse autêntico pelos eventos no mundo ou pelos feitos dos homens, mas devido a uma preocupação com o estabelecimento de condições mais seguras para o exercício da atividade filosófica. Nesse sentido é que se pode entender a busca dos filósofos por compreender a política consoante a preocupação fundamental de fazer com que a necessária convivência entre os homens represente o menos possível um recíproco constrangimento. Para Arendt, apenas na contemporaneidade, com o fim da nossa tradição, podemos conceber um novo pensamento político, a reconhecer no domínio dos assuntos humanos, notadamente a ética e a política, autênticos problemas filosóficos. O resultado mais importante desse novo interesse do filósofo pela política, não mais motivado por uma questão de “interesse profissional”, talvez seja o abandono da condição de quem está fora de toda disputa e contempla o mundo a distância. Com Karl Jaspers, Hannah Arendt advogava um uso da razão marcado pela comunicação ilimitada, compreendendo, por sua vez, que “a própria verdade é comunicativa e desaparece fora da comunicação. … Pensar é antes uma prática entre os homens que o desempenho de um indivíduo na solidão que escolheu para si”. A obra de Hannah Arendt tem sempre reafirmado seu vigor, não apenas por haver pensado a fundo os abismos de nosso tempo, mas também por conceber o pensamento estreitamente vinculado ao estar junto aos outros no mundo. Chegando ao mundo A citação mais recorrente na obra publicada de Hannah Arendt é a seguinte frase de Agostinho de Hipona: “Para que houvesse um início o homem foi criado.” Ela julgava que cada nascimento é percebido no mundo porque todo recém- chegado possui a capacidade de agir, de iniciar algo novo. Sendo cada homem um indivíduo singular, no nascimento algo singularmente novo vem ao mundo. Não é outra a razão de a natalidade ser para ela a categoria central do pensamento político, distintamente do pensamento metafísico, ocupado com a mortalidade. O mundo, se deixado à própria sorte, tende a seguir a mesma lei da mortalidade que preside a vida e todas as coisas humanas. Apenas a ação interpõe rupturas no movimento retilíneo do homem, do nascimento em direção à morte, em sua vida biológica. A capacidade de agir, de iniciar algo novo, tal como a compreende Hannah Arendt, está fundada no fato do nascimento, que é como um milagre que salva o mundo de sua ruína. O nascimento renova, assim, a persistente inserção de novidade e imprevisibilidade. Cada indivíduo se insere no mundo como um estranho e deve ser então acolhido e protegido em seu desenvolvimento, de modo que se sinta em casa e possa agir e afirmar sua singularidade. Quando Hannah Arendt nasceu, em 1906, em Hannover, não se podia imaginar que o século XX, para ela bastante longo, iria desafiar sua capacidade de agir e de compreender os persistentes eventos extremos e catastróficos que transformariam profundamente a sua vida. A Alemanha fragmentada das primeiras décadas do século passado poucas vezes se mostrou um lar para ela. A infância tranqüila e alegre vivida em Königsberg foi interrompida pela abrupta fuga para Berlim em 1914, ante o temor do avanço do exército russo. No ano anterior, aos sete anos, teve de lidar com as mortes do pai e do avô. Junto a suas enfermidades na infância, as perdas familiares fizeram com que a “criança ensolarada” se convertesse em uma adolescente soturna, nas palavras de sua mãe, Martha Cohn. A vida de uma judia. Os pais de Hannah Arendt provinham de famílias judias russas emigradas para Königsberg menos de um século antes do nascimento dela. Na infância, desfrutou uma condição econômica consideravelmente confortável de classe média, antes que a aguda instabilidade após a Primeira Guerra Mundial tragasse a estabilidade financeira de sua família. Tanto Martha Cohn quanto Paul Arendt viviam como judeus educados, viajados e mais à esquerda em política. Já na adolescência tornaram-se socialistas, quando o Partido Socialista ainda era ilegal na Alemanha. Martha Cohn inclusive apoiou os espartaquistas de Rosa Luxemburg quando sua rebelião provocou uma greve geral. Não eram religiosos, mas permitiam que sua filha fosse à sinagoga com os avós. O contato com o rabino reformista Hermann Vogelstein, um dos mais influentes líderes dos judeus alemães liberais de Königsberg, e, mais tarde, a presença nas palestras de Romano Guardini sobre Kierkegaard em Berlim foram decisivos para o interesse inicial de Hannah Arendt por teologia, quando ingressou na Universidade de Marburg, em 1924. Arendt se manteve na universidade a duras penas, com auxílios e bolsas precários, em vista da deterioração da condição financeira de sua família e do Estado alemão no pós- guerra. Hannah Arendt mencionava que durante sua infância nunca ouvia em casa a palavra “judeu”, mas ela logo se tornou familiar nos comentários anti-semitas das crianças na rua e na escola. Longe de resultar de uma adesão, a condição de judia se mostrou para ela antes de tudo um fato. Quando escreveu a biografia Rahel Varnhagen — a vida de uma judia alemã na época do romantismo, no começo dos anos 1930, ela relatou que o desejo central da vida de Rahel Varnhagen era escapar do judaísmo, como única alternativa para a assimilação. Hannah Arendt acabou por concluir, a partir da própria Rahel, que não se escapa do judaísmo. O judaísmo nunca se apresentou para Hannah Arendt como um problema pessoal ou como algo de que se pudesse escapar. De qualquer modo, em toda sua vida não manifestou tal desejo, devido ao que ela denominava gratidão básica por tudo que é como é. Gershom Scholem, importante pensador judeu, acusou Arendt, em uma carta de 1963 — por ocasião da controvérsia que se seguiu à publicação de Eichmann em Jerusalém — um relato sobre a banalidade do mal — de não amar o povo judeu, mesmo fazendo parte dele. Ela respondeu que nunca se sentiu sequer tentada a negar sua judeidade, o que seria, para ela, uma insanidade, já que a compreendia como um dos dados factuais indisputáveis de sua vida. Não obstante, enfatiza o seguinte: Eu nunca “amei”, em toda a minha vida, qualquer povo ou coletividade — nem os alemães, nem os franceses, nem o povo americano, nem a classe operária ou algo desse gênero. De fato, amo “apenas” os meus amigos e o único tipo de amor que eu conheço e em que acredito é o amor a pessoas. Em segundo lugar, este “amor aos judeus” me pareceria algo muito suspeito, uma vez que eu mesma sou judia. Gershom Scholem, que conheceu a obra sobre Rahel Varnhagen já na época em que era concebida, pela apresentação elogiosa de Walter Benjamin, nos anos 1930, não reataria mais a amizade com Arendt. A filosofia se impõe Na carta mencionada anteriormente, respondendo à indicação de Scholem de que faria parte da intelectualidade proveniente da esquerda alemã, Hannah Arendt afirma que, se proveio de alguma parte, foi da tradição da filosofia alemã. Seu interesse por filosofia remonta à sua adolescência. Ela leu primeiro a Crítica da razão pura, de Immanuel Kant, e a Psicologia das visões de mundo, de Karl Jaspers. Depois de ler Sølem Kierkegaard, a teologia e a filosofia permaneceram em uma associação bastante estreita para ela, desfeita claramente apenas em sua tese de doutoramento, sobre o conceito de amor na obra de Agostinho de Hipona. Hannah Arendt ouvira falar do filósofo Martin Heidegger já em 1922, quando um amigo relatou a ela com entusiasmo as primeiras palestras do jovem professor em Marburg, às quais estivera presente. Ela ingressou em Marburg em 1924, com 18 anos, em um ambiente acadêmico dominado pelo conservadorismo e em busca de recuperação do impacto inflacionário de 1922 e 1923. Em um período de aguda nostalgia pelos grandes sistemas, ela foi tragada por uma profunda transformação que então se instaurava na filosofia alemã, capitaneada fundamentalmente por Heidegger e precedida em grande medida por Edmund Husserl, com seu apelo para ir às coisas mesmas, e por Karl Jaspers, proveniente da psiquiatria e conscientemente rebelde com relação à tradição filosófica. O que Hannah Arendt julgava novo em Heidegger era justamente o fato de que com esse professor, cujo nome circulava pela Alemanha antes de publicar qualquer texto, talvez se pudesse aprender a pensar. O pensar que ele ensinava era absolutamente não-contemplativo e possuía uma qualidade cáustica, sempre a repensar o já pensado e a estabelecer uma grande rede de trilhas cujo resultado foi a derrubada do edifício da metafísica existente, no qual há tempos ninguém mais se sentia à vontade. Hannah Arendt, que em toda sua obra se juntou às fileiras dos que buscavam desmontar a metafísica e dava por assente que o fio da tradição estava definitivamente rompido, compreendia, com Heidegger, que a perda da continuidade do passado, tal como nos era transmitido desde os gregos e os romanos, não o destrói. Pelo contrário, como notava Friedrich Nietzsche, ela
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