ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html O EXÉRCITO DO CORDEIRO: GUERRA SANTA NO APOCALIPSE DE JOÃO Valtair Miranda* No final do primeiro século da Era Comum, uma pequena ilha da costa do Mediterrâneo foi palco de uma série de experiências visionárias experimentadas por um homem de etnia judaica. João (esse era o seu nome), posteriormente, adaptou, estruturou e organizou suas visões num livro de grande porte (são 9.851 palavras na língua grega).1 Apesar de denominar sua obra de profecia,2 ele resolveu iniciá-la com a frase “VApoka,luyij VIhsou/ Cristou/” (em português, algo como “revelação de Jesus Cristo”),3 o que rapidamente se transformou no título do livro. Essa expressão de abertura revela que este ancião era um seguidor de Jesus, talvez membro de uma das igrejas nos arredores da ilha de Pátmos. Não se sabe ao certo se suas palavras foram bem recebidas pelo seu público imediato (sete igrejas da Ásia Menor),4 mas não demorou muito e um número sem conta de outros leitores se detiveram sobre suas palavras a procura dos mistérios de Deus sobre os tempos finais. * Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da UMESP (SP), membro do Grupo Oracula de Pesquisas em Apocalíptica e professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro, RJ. [email protected] 1 Apenas para fins de comparação, a obra do profeta João é um pouco menor do que Marcos (o menor Evangelho, com 11.304 palavras), e um pouco maior do que Romanos (a maior carta de Paulo, com 7.111 palavras). É a sexta maior obra do Novo Testamento, perdendo apenas para Lucas (19.482), Atos (18.450), Mateus (18.346), João (15.635) e Marcos, nesta ordem. 2 Apocalipse 1.3; 22.7, 10, 18 e 19. João não se auto-denomina profeta diretamente, mas é assim chamado pelo anjo de 22.9: “Então, ele me disse: Vê, não faças isso; eu sou conservo teu, dos teus irmãos, os profetas, e dos que guardam as palavras deste livro. Adora a Deus.” 3 A frase de abertura do livro indica que o profeta João quer trazer uma revelação vinda da pessoa do Jesus glorificado (Jesus como o sujeito da revelação), ou trazer uma revelação sobre a pessoa do Jesus glorificado (Jesus como o objeto da revelação). 4 Aparentemente, o livro de Apocalipse foi escrito para ser lido e ouvido no contexto de culto, coisa que transparece nas palavras: “Bem-aventurados aqueles que lêem e aqueles que ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo” (Ap1.3). Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza; OTTERMANN, Monika; ADRIANO FILHO, José. Apocalíptica cristã-primitiva: uma leitura para dentro da experiência religiosa e para além do cânon, p. 169. Pensa assim também Kümmel, quando explicita que “Apocalipse foi escrito com a idéia de ser lido alto nas reuniões de culto”. Cf. KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento, p. 603. 1 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html O livro de João pode ser dividido em três partes básicas, emolduradas numa estrutura epistolar:5 - O rolo das cartas para sete igrejas; - O rolo do culto diante do trono; - O rolo da guerra escatológica.6 O visionário João inicia a obra com a narrativa do aparecimento da figura do Filho do Homem, que o vocaciona a escrever sete cartas para um grupo de igrejas da Ásia Menor: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia. Nestas cartas, a majestosa figura celestial faz ameaças, elogios e promessas, e termina cada carta, invariavelmente, com um convite para que os leitores se aliem ao grupo dos vencedores (2.7, 11, 17, 26; 3.5, 12 e 21). O conflito que precisa ser vencido, entretanto, ainda não foi anunciado com clareza. Na segunda parte do livro, João recebe o convite para entrar por uma porta aberta no céu. Ao fazê-lo, ele presencia uma impressionante sucessão de atos litúrgicos. Neste culto celestial, o visionário é apresentado às principais personagens do livro, que o acompanharão até o final: o ancião sentado sobre o trono, os quatro seres viventes, os 24 anciãos e vários seres angelicais. O principal personagem, entretanto, é mesmo o Cordeiro. É ele que, durante uma parte do culto, recebe um rolo selado com sete selos, que serão quebrados para revelar para João a natureza de eventos que se dão sobre a humanidade. A cada selo corresponde uma revelação, até o sétimo que, em vez de encerrar a série, se desdobra em outro grupo de sete elementos, desta vez sete trombetas. Como os selos, cada trombeta está relacionada com um evento, numa escala 5 Segundo Lambrecht, a maioria dos estudiosos concorda em separar a seção de cartas do restante do Apocalipse. A dificuldade residiria, então, em estruturar a parte do livro que começa em 4.1. Cf. LAMBRECHT, J. A structuration of Revelation 4,1-22,5, p. 85-86. Este trabalho, então, segue alguns autores que indicam que esta seção de 4.1-22.5 sofre uma forte transição a partir do capítulo 12, como Yarbro Collins (seu primeiro bloco, entretanto, começa já em 1.9, indo até 11.19; o segundo vai de 12.1- 22.5. Cf. COLLINS, Adela Yarbro. The combat myth in the Book of Revelation, p. 19.) e David L. Barr, de quem este trabalho depende na definição da segunda seção em torno do culto e da terceira em torno da guerra (Cf. BARR, David L. Tales of the end: a narrative commentary on the Book of Revelation. Santa Rosa: Polebridge Press, 1998. 228 p.) 6 A denominação de cada parte como um rolo vem de BARR, David L. Tales of the end: a narrative commentary on the Book of Revelation. Santa Rosa: Polebridge Press, 1998. 228 p. Tem-se em vista os três principais rolos mencionados no Apocalipse: o primeiro é o rolo ditado pelo Filho do Homem para ser enviado para as sete igrejas; o segundo aparece selado com sete selos, e será aberto pelo Cordeiro ensaguentado; o terceiro surge no final da segunda seção, e é oferecido para João comer, profetizando aquilo que poderia ser a terceira seção do Apocalipse. 2 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html crescente de intensidade, que culmina com a audição de um hino que comemora o reinado do Cordeiro. A terceira parte do livro não se concentra mais no culto (apesar de ainda descrever vez por outra cenas litúrgicas do céu), mas numa guerra cósmica e escatológica. O conflito começa quando o Dragão Vermelho falha tanto em destruir a criança messiânica quanto num confronto com Miguel e seus anjos no céu.7 Derrotado, foi expulso para a terra. Sua reação foi instaurar uma guerra contra os demais filhos da mãe da criança messiânica, os que guardam os mandamentos de Deus e o testemunho de Jesus. Sua estratégia bélica consistiu em levantar duas bestas, uma do mar e outra da terra. São elas que implementarão o conflito. Os lados começam a ser definidos rapidamente, já que as bestas marcam seus aliados com um número na testa e na mão. Em contrapartida, os aliados do Cordeiro recebem seu selo na testa, o que define também o início de sua reação na guerra contra o Dragão, as bestas e seus aliados. Sobre o Monte Sião, 144.000 homens virgens se reúnem em volta do Cordeiro, prontos para ir aonde quer que ele vá. Do confronto inicial, entretanto, resulta a morte desses guerreiros, cujo sangue é derramado em grande quantidade, descrito como uma ceifa escatológica. Mas suas mortes não representam suas derrotas, e sim a vitória, já que eles aparecem logo depois como os vencedores sobre um mar de vidro cantando o cântico de Moisés e do Cordeiro. Suas mortes completam o sangue que precisa ser derramado, provocando a ira de Deus sobre a humanidade impenitente, na forma de sete taças. Cada taça é derramada sobre elementos da terra e da humanidade, até que a última atinge a própria Babilônia, acusada de derramar o sangue dos profetas, dos santos e de todos que morreram sobre a terra. Após o juízo sobre a grande cidade, finalmente, o guerreiro escatológico desce do céu com suas hostes para enfrentar a coalizão adversária. A vitória do guerreiro se dá em duas fases. Na primeira, as bestas são lançadas num lago de fogo, todo seu exército é morto com a espada que sai da boca do guerreiro celestial e o Dragão é preso por mil anos. A segunda fase da guerra só se levanta após o término deste período intermediário de paz, quando o Dragão, novamente solto, mobiliza outro exército contra os santos. O fim desta coalizão, entretanto, é uma nova derrota, desta vez definitiva, quando o Dragão foi jogado no mesmo lago de fogo onde estavam já as 7 A visão da Mulher Grávida e o Dragão Vermelho ocupa a posição central dentro do Apocalipse, funcionando como a porta de abertura para o ciclo de visões que encerrará o livro. Cf. COLLINS, Adela Yarbro. The combat myth in the Book of Revelation, p. 211. 3 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html duas bestas e seu exército foi queimado com fogo que caiu do céu. Com o fim da guerra escatológica, o visionário finalmente descreve as bodas do Cordeiro, a descida da Nova Jerusalém, o lar final dos santos de Deus. A última parte de Apocalipse é uma pequena seção de bênçãos para aqueles que lerem o livro e imprecações contra aqueles que alterarem-no. Os aspectos litúrgicos e bélicos estão presentes em todas as três partes do Apocalipse. Na primeira seção, enquanto o culto poderia aparecer na menção do dia do Senhor como o espaço no qual o visionário vê o Filho do Homem, a guerra é visualizada nas promessas dirigidas aos vencedores de cada igreja. Apesar da segunda parte se concentrar na narrativa do culto no céu, há menções esporádicas da guerra, quando a besta, personagem de destaque na terceira parte, surge para fazer guerra contra as duas testemunhas. A terceira parte, igualmente, se concentra na narrativa da guerra cósmica e escatológica, mas com freqüência tem sua história interrompida com visões do culto no céu. A ênfase deste ensaio, entretanto, vai se concentrar em demonstrar a importância da guerra cósmica e escatológica para o Apocalipse e verificar a natureza deste conflito, deixando a questão do culto para um segundo momento. Isso faremos através de dois momentos. Primeiramente, com o recurso da estatística de termos e temas, para demonstrar a importância da guerra na obra de João. Em segundo lugar, analisando uma passagem específica que poderia demonstrar a natureza deste conflito, no caso, o ajuntamento do exército do Cordeiro sobre o Monte Sião. Palavras de guerra e conflito A palavra po,lemoj (guerra) aparece no Apocalipse mais do que em qualquer outra obra do Novo Testamento. Das 18 ocorrências do termo, nove estão no Apocalipse (três delas estão na segunda seção, e as outras seis na terceira).8 O verbo poleme,w (guerrear) é raro no Novo Testamento. Ele ocorre apenas sete vezes. Destas ocorrências, seis estão no Apocalipse.9 Estas, por sua vez, estão 8 Mt 24:6; Mc 13:7; Lc 14:31; Lc 21:9; 1Co 14:8; Hb 11:34; Tg 4:1; Ap 9:7, 9; 11:7; 12:7, 17; 13:7; 16:14; 19:19; 20:8. 9 Tg 4:2; Ap 2:16; 12:7; 13:4; 17:14; 19:11. 4 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html concentradas na terceira seção. Apenas uma ocorrência aparece fora deste bloco, na seção de cartas. No Apocalipse, a guerra10 é dirigida contra as duas testemunhas proféticas (11.7), contra a comunidade de santos (12.17 e 13.17) e contra o Cordeiro (17.14). Por sua vez, o guerreiro escatológico faz guerra contra os impenitentes da igreja de Tiatira (2.16), contra as bestas (19.19) e contra o Dragão (20.8). O verbo nika,w (vencer) também tem grande importância no vocabulário de Apocalipse. Das 28 ocorrências do Novo Testamento, 17 estão em Apocalipse. Destas, sete estão apenas na seção de cartas (3-4), outras três na seção do culto e o restante (cinco ocorrências) na seção da guerra.11 O verbo vencer, na seção de cartas, parece constituir um convite para que a audiência se envolva em algum tipo de conflito, apesar da natureza deste conflito só ser esclarecida nas seções seguintes, especificamente na terceira seção. O termo stra,teuma (exército) aparece oito vezes no Novo Testamento. Destas, a metade das aparições está no Apocalipse de João.12 João vê em Apocalipse 9.15 um exército demoníaco pronto para destruir um terço dos povos da terra, e em outra visão, Apocalipse 19.14, ele vê o exército celestial do guerreiro celestial, o verbo de Deus, o Rei dos Reis e Senhor dos Senhores pronto para enfrentar a coalizão das bestas (19.19).13 Vamos verificar, agora, alguns termos que descrevem instrumentos de guerra. O termo, r`omfai,a (espada), aparece sete vezes no Novo Testamento. Destas, seis estão no livro do Apocalipse.14 10 Tanto o nome quanto o verbo tem uma longa história textual, já aparecendo nos textos de Homero e Hesíodo como o antônimo de eivrh,nh (paz). Na LXX, po,lemoj traduz o termo hebraico hm'x'l.mi ((guerra). Aparentemente, estes termos estavam relacionados com os negócios divinos. Os deuses Ares e Pales Atenas eram os deuses da guerra, estando, frequentemente, por trás das guerras dos mortais. Cf. BAUERNFEIND, Otto. Po,lemoj, poleme,w. In: FRIEDRICH, Gehard (ed.) Theological Dictionary of the New Testament, vol. VI. Grand Rapids: Eerdmans, 1968, p. 503-504. 11 Lc 11:22; Jo 16:33; Rm 3:4; Rm 12:21; 1Jo 2:13; 1Jo 4:4; 1Jo 5:4; Ap 2:7, 11, 17, 26; 3:5, 12, 21; 5:5; 6:2; 11:7; 12:11; 13:7; 15:2; 17:14; 21:7. 12 Mt 22:7; Lc 23:11; At 23:10, 27; Ap 9:16; 19:14, 19. 13 Segundo Baungarten, o visionário não vê a contraparte positiva que alguém esperaria ver para enfrentar o exército demoníaco da terra, ou seja, um outro exército da terra, composto de fiéis que, impulsionado pela fé, aliariam ao exército celestial e ajudarão o Rei dos Reis. Segundo este autor, os primeiros crentes entendiam que esse rei não precisaria de ajuda, nem mesmo a desejaria. Cf. BAUERNFEIND, Otto. Strateu,omai, strate,ia, stratia,, strateu,ma, stratiw,thj, sustratiw,thj, strathgo,j, strato,pedon, stratologe,w. In: In: FRIEDRICH, Gehard (ed.) Theological Dictionary of the New Testament, vol. VII. Grand Rapids: Eerdmans, 1968, p. 708. 14 Lc 2:35; Ap 1:16; 2:12, 16; 6:8; 19:15, 21. 5 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html Destas ocorrências, apenas Apocalipse 6.8 parece usar o termo no sentido literal; os demais são usos figurados, onde r`omfai,a é a palavra de Jesus.15 De qualquer forma, sobressai a importância da espada para o livro do Apocalipse, quando comparado com os demais livros do Novo Testamento. A outra palavra grega traduzida como “espada” é ma,caira. Esta, entretanto, tem pouco uso no Apocalipse. Das 29 ocorrências no Novo Testamento, apenas quatro estão no livro de João. Seu uso mais freqüente é mesmo nos Evangelhos Sinóticos (15 ocorrências).16 O sentido mais imediato de ma,caira é faca, sendo um instrumento utilizado em sacrifício, cozinha, tosquia e nas ocupações de curtidor e jardineiro. Como arma, indicava uma pequena espada de defesa, diferenciada então de r`omfai,a, normalmente uma espada de ataque. Ma,caira também aparece no Novo Testamento relacionada com a “palavra”, em Hebreus 4.12, cuja idéia, entretanto, não guarda relação com punição ou destruição, mas com a revelação dos pensamentos ou percepções do coração, quase como um bisturi ou um instrumento cirúrgico.17 A predominância de r`omfaia, quando comparada com ma,caira, pode estar relacionada com a natureza violência do conflito no Apocalipse. A guerra no Apocalipse tem como função punir as hostes adversários dos santos de Deus. Faz sentido, então, o uso de r`omfaia em detrimento de ma,caira. Um instrumento que não é essencialmente forjado para uso bélico, mas que parece assumir essa função no Apocalipse é a dre,panon (foice). Das oito ocorrências do termo no Novo Testamento, sete estão no Apocalipse (a outra ocorrência é Mc 4.29). Todas as ocorrências do Apocalipse estão concentradas no capítulo 14. O símbolo da ceifa é definido pelo autor do Evangelho de Mateus: “O inimigo que o semeou é o diabo; a ceifa é a consumação do século, e os ceifeiros são os anjos” (Mt 13.39). Uma outra passagem usa a ceifa e a foice como imagens do tempo final: “Não dizeis vós que ainda há quatro meses até à ceifa? Eu, porém, vos digo: erguei os olhos e vede os campos, pois já branquejam para a ceifa” (Jo 4.35). A hora da ceifa é o 15 MICHAELIS, Wilhelm. r`omfaia. In: FRIEDRICH, Gehard (ed.) Theological Dictionary of the New Testament, vol. VI. Grand Rapids: Eerdmans, 1968, p. 993-998. 16 Mt 10:34; 26:47, 51, 55; Mc 14:43, 47; Lc 21:24; 22:36, 38, 49, 52; Jo 18:10; At 12:2; 16:27; Rm 8:35; 13:4; Ef 6:17; Hb 4:12; 11:34, 37; Ap 6:4; 13:10, 14. 17 MICHAELIS, Wilhelm. Ma,caira. In: FRIEDRICH, Gehard (ed.) Theological Dictionary of the New Testament, vol. IV. Grand Rapids: Eerdmans, 1968, p. 524-527. 6 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html momento de colher as uvas, imagem que está associada aqui com a morte dos guerreiros do Cordeiro que foram reunidos sobre o Monte Sião. Estas mortes, entretanto, funcionam como sacrifício agradável a Deus. Quando este lagar da ira de Deus estiver cheio com o sangue desses mártires, seu juízo será derramado sobre os adversários, como parece indicar Apocalipse 6.11 (“Então, a cada um deles foi dada uma vestidura branca, e lhes disseram que repousassem ainda por pouco tempo, até que também se completasse o número dos seus conservos e seus irmãos que iam ser mortos como igualmente eles foram.”) e 15.1 (“Vi no céu outro sinal grande e admirável: sete anjos tendo os sete últimos flagelos, pois com estes se consumou a cólera de Deus.”). Isso indica que a foice é realmente uma arma contra as bestas, mas funciona de forma indireta, ao colher o sangue dos santos do Cordeiro. É símbolo da morte dos santos, que é, no final, a arma de vitória desses guerreiros. Deve-se destacar, ainda, algumas ausências curiosas. Apesar de stratiw,thj (soldado) e seu verbo strateu,omai (fazer guerra) aparecer várias vezes no Novo Testamento, ele está ausente do Apocalipse. Isso poderia estar relacionado com o aspecto voluntário da guerra no livro do visionário. João não espera o envolvimento de qualquer soldado profissional, mas a adesão voluntária de fiéis que deixam suas atividades cotidianas para se envolver no conflito. Neste sentido, não é um soldado profissional que faz a guerra. Esta, por sua vez, não é desenvolvida com técnicas militares especializadas, mas com o recurso de práticas religiosas, como o testemunho. A guerra na seção das cartas. Desta forma, então, o tema da guerra aparece na seção das cartas predominantemente na forma das promessas ao vencedor de cada igreja, promessa essa que adquire forma de convocação para o conflito que ainda não foi apresentado para a audiência do Apocalipse. Além dessas, o tema ocorre ainda nesta seção nas seguintes situações: - por duas vezes (2.12, 16), a espada aparece no contexto da carta para Pérgamo, em ambos os casos associada com a palavra que sai da boca do Filho do Homem. Na primeira ocorrência, como parte da auto-apresentação do remetente da carta; na segunda ocorrência, como parte de uma ameaça contra os nicolaítas. A espada, nesta situação, está associada com a imagem do juízo. 7 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html - em Apocalipse 2.22-23, o Filho do Homem ameaça com enfermidade e tribulação a Jezabel, líder da igreja, e com a morte os seus seguidores. A violência do conflito aparece com clareza no verso 23: “Matarei os seus filhos, e todas as igrejas conhecerão que eu sou aquele que sonda mentes e corações, e vos darei a cada um segundo as vossas obras”. A guerra no rolo das cartas, então, surge na forma de convocação para o conflito, e ameaças para parte da audiência em termos muito semelhantes aos ataques sofridos pelos seguidores do Dragão e das bestas na seção do rolo da guerra. Afinal, na terceira seção do Apocalipse, o guerreiro celestial derrotará o exército da besta com a palavra que sai de sua boca (19.15), para poder reger as nações com vara de ferro (mesma promessa feita aos vencedores da igreja de Tiatira). A guerra na seção do culto. Na seção do rolo do culto no céu, a guerra também aparece em vários momentos. A primeira ocorrência se dá exatamente no momento em que o principal personagem da seção se manifesta. Logo após João se desesperar por não perceber alguém apto para abrir o livro selado: “Todavia, um dos anciãos me disse: Não chores; eis que o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selos. Então, vi, no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um Cordeiro como tendo sido morto. Ele tinha sete chifres, bem como sete olhos, que são os sete Espíritos de Deus enviados por toda a terra.” (Ap. 5.5-6) Esta passagem apresenta a figura digna de abrir o livro como o Leão de Judá e a Raiz de Davi. São dois títulos que evocam o messianismo davídico de Gênesis 49.9 e Isaías 11.1-5 (textos clássicos para a esperança messiânica judaica do primeiro século da Era Comum). Neste contexto, a imagem do Messias é daquele que vence um confronto militar sobre os inimigos de Israel.18 Apesar de João alterar a imagem messiânica com o recurso da associação imediata com o Cordeiro ensangüentado, a idéia de conflito não desaparece, pois mesmo o Cordeiro é descrito com um símbolo de poder: os sete chifres. A guerra aparece em seguida na seqüência dos quatro primeiros selos (6.1-8), na forma dos cavalos branco, vermelho, preto e amarelo (respectivamente, a conquista, a guerra, a fome e a morte). Desta vez a guerra não é feita pelo Cordeiro ou contra o 18 BAUCKHAM, Richard. The Apocalypse as a Christian War Scroll. In: BAUCKHAM, Richard. The Climax of prophecy. New York: T & T Clark, 1993, p. 214. 8 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html Cordeiro. Parece ser uma visão mais geral sobre as conseqüências imediatas da guerra para as pessoas e nações. A próxima ocorrência da guerra é indireta e se manifesta na forma de um interlúdio entre o sexto e o sétimo selo. João descreve a visão de 144.000 homens selados, no que parece ser um censo das tribos de Israel. Na Bíblia hebraica, um censo é geralmente uma forma de definir a força militar da nação, onde os homens em idade militar são contados (Nm 1.3, 18, 20). De qualquer forma, no Apocalipse, o número do exército é simbólico: 12.000 de cada tribo. Evoca-se a esperança de que as tribos retornassem no fim dos tempos, especialmente para participar da guerra escatológica.19 A descrição dos gafanhotos da quinta trombeta (9.1-12) tem fortes imagens militares. Eles são descritos como cavalos prontos para a guerra. Seu poder de trazer a dor também é acentuado. Seu papel parece ser trazer um tipo de juízo sobre pessoas que não tinham o selo de Deus, apesar da narrativa ainda não ter deixado claro o motivo do juízo. O sexto selo segue a imagem do quinto, e também se apresenta no formato de um ataque bélico (9.13-21). Desta vez são anjos, com exércitos de vinte mil vezes dez milhares, cuja missão é matar a terça parte das pessoas da terra. Quase no fim do rolo do culto surge a narrativa proléptica das duas testemunhas. Segundo Apocalipse 11.7: “Quando tiverem, então, concluído o testemunho que devem dar, a besta que surge do abismo pelejará contra elas, e as vencerá, e matará.” É a primeira menção da guerra promovida pelas bestas contra os santos de Deus. Já no rolo da guerra, a passagem de 13.7a se coloca quase em paralelo com o relato das duas testemunhas: “Foi-lhe dado, também, que pelejasse contra os santos e os vencesse.” Surge, então, a terceira seção do Apocalipse, dedicada especificamente ao assunto da guerra cósmica e escatológica. A narrativa começa apresentando o motivo do conflito e termina com a vitória definitiva de Jesus, aqui apresentado, entre outras imagens, como oGuerreiro Celestial. É sobre esta terceira seção que nos voltaremos agora. As questões que se levantam são: o visionário espera que os santos participem do conflito? Que tipo de guerra o Apocalipse apresenta? Qual a função deste imaginário bélico na estratégia retórica do Apocalipse?20 19 BAUCKHAM, Richard. The Apocalypse as a Christian War Scroll, p. 217. 20 Fiorenza, entre outros, argumenta que o Apocalipse é uma construção poético-retórica. Enquanto obra poética o visionário cria e organiza experiências imaginativas, e enquanto retórica, ele quer persuadir e 9 ANAIS DO II ENCONTRO NACIONAL DO GT HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DAS RELIGIOSIDADES Revista Brasileira de História das Religiões – ANPUH Maringá (PR) v. 1, n. 3, 2009. ISSN 1983-2859. Disponível em http://www.dhi.uem.br/gtreligiao/pub.html O ajuntamento do exército do Cordeiro Para demonstrar a natureza do conflito, vamos analisar o momento em que o visionário descreve o ajuntamento do exército do Cordeiro. Neste instante, fica claro não apenas a natureza do conflito, mas também a natureza dos guerreiros. Na abertura da terceira seção do Apocalipse, neste ensaio denominada de o rolo da guerra escatológica, o Dragão, por causa de seus fracassos em destruir a criança messiânica e derrotar o exército de Miguel no céu, instaura a guerra contra os santos. Sua estratégia inicial foi levantar duas bestas para promover e estender o confronto. Logo em seguida, entretanto, o episódio do Cordeiro e os 144.000 começa abruptamente. O visionário rapidamente muda o foco do olhar. Este episódio ocupa os versos 1 a 5 de Apocalipse 14, podendo ser dividido em duas partes básicas. Num primeiro momento, João descreve uma visão. Depois, uma audição.21 De forma esquemática, o episódio pode ser estruturado da seguinte maneira:22 E eu vi e eis o Cordeiro parado sobre o monte Sião E com ele cento e quarenta e quatro mil Tendo o nome dele e o nome do pai dele escritos sobre as testas deles. E eu ouvi uma voz do céu como uma voz de muitas águas e como uma voz de grande trovão e (a voz que ouvi) como de arpistas dedilhando nas arpas deles. E cantam [como] uma canção nova diante do trono e diante dos quatro seres viventes e dos anciãos, E ninguém podia aprender a canção se não os cento e quarenta e quatro mil motivar sua audição em direção de uma determinada ação. Cf. FIORENZA, Elisabeth Schüssler. The followers of the Lamb: visionary rhetoric and social-political situation, p. 129. Também para David Aune, é possível imaginar que o visionário tenha produzido uma obra deliberada e conscientemente com objetivos de persuasão para levar sua audiência em uma direção determinada. Cf. AUNE, David. The Apocalypse of John and the problem of genre, p. 90. 21 AUNE, David E. Revelation 6-16, p. 796. 22 Os recuos e tabulações indicam a estrutura literária do texto, cuja tradução, nesta parte do ensaio, é do próprio ensaísta. 10
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