À memória de Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida, romancistas da fome no Brasil. Euclides da Cunha e Rodolfo Teófilo, sociólogos da fome no Brasil. Prefácio à nona edição A fome — eis um problema tão velho quanto a própria vida. Para os homens, tão velho quanto a humanidade. E um desses problemas que põem em jogo a própria sobrevivência da espécie humana, a qual, para garantir sua perenidade, tem que lutar contra as doenças que a assaltam, abrigar-se das intempéries, defender-se dos seus inimigos. Antes de tudo, porém, precisa, dia após dia. encontrar com que subsistir — comer. E esta necessidade, é a fome que se encarrega de lembrá-la. Sob o seu ferrão e para lutar contra ela. a humanidade aguçou seu gênio inventivo. Ninguém o ignora. E todo mundo sabe também que, nesse velho combate contra esta praga permanente, o homem conseguiu apenas uma vitória incerta e precária. Contudo — e é o que nos faz ver o Prof. Josué de Castro logo às primeiras páginas do seu livro a Geografia da Fome — nos países mais adiantados, parece que as gerações passadas preferiram não aprofundar muito esse grande problema. Para quê? No decurso da História, tinha havido, sem dúvida, épocas de fome. Mas isso parecia tão remoto! Continuava a haver fome em certos países. Mas isso parecia tão distante! As guerras às vezes acarretavam a fome. Mas isso parecia tão raro! Na realidade, sob essa aparente indiferença, havia algo mais do que simples imprevidência e egoísmo. Havia dois sentimentos mais profundos. O primeiro, oriundo da convicção milenar de que os males provocados por flagelos naturais são inevitáveis; o segundo, da ideia de que a própria organização das sociedades comporta desigualdades entre os homens e que estas, por sua vez, são inevitáveis. Para que então pensar no irremediável? Essas duas ideias, essas duas atitudes já se tornaram, porém, insustentáveis. Um flagelo só é inevitável quando permanece em mistério. Os males provenientes da falta de alimentos continuam sendo um problema, mas já não são um mistério. Foi este o resultado de cento e cinquenta anos de trabalho científico. Já hoje sabemos em que consistem as necessidades em alimentos. Já hoje sabemos o que é alimentação. Três etapas foram percorridas nessa conquista de importância capital para a humanidade. Foi no século XVIII que Lavoisier abriu as portas e mostrou o caminho da primeira etapa. Descobriu o que é o fogo, a combustão viva: uma fixação de oxigênio, uma oxidação. A seguir, o que é a calcinação das terras: fixação de oxigênio, uma oxidação. A seguir, o que é a calcinação das terras: uma combustão lenta e, por conseguinte, também uma fixação de oxigênio, uma oxidação. E, finalmente, o que é a respiração: uma combustão ainda mais suave, porém, da mesma forma, uma fixação de oxigênio, uma oxidação. E foi assim que demonstrou que a própria vida se assemelha aos grandes processos da Natureza. A vida traduz-se por um encadeamento organizado de acontecimentos físico-químicos. Quando nosso organismo mantém constante sua temperatura, enquanto declina a do meio ambiente ou quando ele desempenha qualquer trabalho muscular — tudo isso se traduz em reações químicas: o gasto das reservas que se faz através da fixação do oxigênio e da emissão de calor. O trabalho do organismo — sua vida — pode, pois. exprimir-se exatamente por essa emissão de calor que permite determinar-se o que ele perde. Determinar a perda significa também determinar as necessidades, uma vez que, para manter-se, o organismo precisa reparar suas perdas. E pela alimentação que fazemos essa compensação, essa restauração. Consumimos fragmentos de seres vivos, que, por sua vez, são combustíveis. Seu valor de reparação, de restauração, seu valor como alimento pode também, por seu lado, ser medido com exatidão, pelo calor que se desprende de sua combustão. Assim, as necessidades alimentares do homem e o valor de sua alimentação podem ser definidos fisicamente, tornando-se calculáveis em termos de calor, em calorias. A segunda etapa teve lugar no século XIX. Seguindo as pegadas de Lavoisier, descobriram os químicos que a Natureza — e os seres vivos, que nela se encontram — são todos compostos de elementos simples que, segundo supunham, seriam imutáveis e indestrutíveis. O organismo é formado de certo número desses elementos, presentes em determinadas proporções. Uma parte desses elementos se perde no trabalho do organismo. Se essa perda não for reparada, o organismo estará em perigo mortal. Foi levantada a relação desses elementos indispensáveis. Calculou-se o que o organismo gasta e o que necessita para recuperar estes gastos. Pois, tal como ocorria com os químicos do século XIX, mas não com os dos nossos dias — o organismo não sabe fabricar elementos químicos. Precisa encontrá-los todos em sua alimentação. Esta se tornou, desde então, quimicamente definida. Terceira etapa: a do século XX. Acreditava-se até então que, de posse dos elementos, o organismo era capaz de sintetizar todas as moléculas de que ele se compõe, mas isso era um erro. Os seres vivos são químicos incompletos. Descobriu-se que existe toda uma série de moléculas (ácidos aminados, ácidos graxos, vitaminas) que eles não sabem fazer e que precisam encontrar já preparadas, dentro da alimentação. Mas essas moléculas são indispensáveis à preparadas, dentro da alimentação. Mas essas moléculas são indispensáveis à vida. Basta faltar alguns miligramas de algumas delas na alimentação cotidiana para sobrevir uma doença grave ou a morte. Os resultados dessas descobertas têm alcance incalculável. Para começar, a palavra fome já não basta. É que o termo evoca simplesmente a insuficiência da quantidade de alimentos, provocando a subnutrição e a “morte pela fome”. Trata-se agora de outra coisa. Viemos a saber que não é apenas quando nossa alimentação é insuficiente que estamos ameaçados. Também o estaremos se ela for mal constituída. Neste último caso, surge uma série de estados de subnutrição. Quando essa subnutrição é grave, pode tornar-se rapidamente mortal: traduz-se por doenças de há muito conhecidas, mas cujas causas permaneciam ignoradas. Se a carência de moléculas indispensáveis for menos pronunciada, determinará o mau funcionamento do organismo, o desenvolvimento defeituoso das crianças, a fraqueza parcial dos adultos, certa desagregação do estado mental e, por fim, a degeneração progressiva terminando por provocar o desaparecimento de grupos humanos. Os efeitos de uma má alimentação são, por conseguinte, muito mais profundos e mais amplos do que se pensava. Influem na duração e na qualidade da própria vida, na capacidade de trabalho, no estado psicológico das populações. Mas esses males são facilmente curáveis. Quem já tiver assistido à ressurreição de um pelagroso coberto de horríveis lesões, devorado pela doença, demente, moribundo, curando-se em poucos dias pela ingestão de alguns miligramas dessas moléculas que faltavam na sua alimentação e que os químicos fabricam hoje às toneladas, não duvidará dessa verdade. A subnutrição endêmica não se presta, porém, a essas curas espetaculares. Exige intervenção contínua. Pode ser eliminada e pode ser evitada por meios naturais: basta que se garanta às populações uma boa alimentação, suficiente, completa e equilibrada. Sabemos hoje em que consiste tal alimentação. Sabemos calcular em termos de calorias em que deve consistir a massa de alimentos cotidianos. Podemos calcular em gramas, em miligramas, o que essa alimentação deve conter de princípios alimentares, de moléculas indispensáveis. Temos, pois, doravante, noções sólidas, inabaláveis, permitindo determinar com bastante precisão o que deve ser a alimentação de uma criança, de um adulto em descanso ou trabalhando, de uma mãe, de uma família, de uma cidade, de uma população inteira. E isso constitui um acontecimento de importância capital na história da humanidade. A questão é, pois. a seguinte: existem, no nosso planeta, mais de dois bilhões de seres humanos. Como se alimentam eles? Os primeiros inquéritos realizados nos permitem responder: alimentam-se mal. Mais da metade desses seres humanos se encontra, mais ou menos, em estado de subnutrição. E tal estado só humanos se encontra, mais ou menos, em estado de subnutrição. E tal estado só tende a agravar-se, uma vez que a população da Terra cresce de ano a ano em cerca de 50 a 60 milhões de indivíduos. Devemos acrescentar que a subnutrição não atinge apenas os países mais atrasados, mas também grupos inteiros de população nos países mais adiantados do mundo. Trata-se, por conseguinte, de alimentar bem essas populações. Ao plano de alimentação traçado deve corresponder um plano de produção agrícola adequado. Os cálculos indicam que esse plano deverá comportar considerável aumento da produção atual. Será tal aumento tecnicamente possível? Neste caso ainda á resposta será bem diferente da que se poderia ter dado há um século atrás. Os progressos da Ciência e da Técnica têm sido de tal ordem — dispomos hoje de inúmeros meios pura aumentar a produção das plantas e do trabalho humano — que já é possível, querendo, alimentar e alimentar bem todos os homens. Provocar sistematicamente um aumento considerável e ordenado da produção agrícola não é problema de pura técnica agronômica. É um problema econômico. Efetivamente, trata-se de integrar a agricultura no conjunto da economia. Não se pode criar uma agricultura moderna sem considerável despesa de equipamento. Não se pode fornecer esse equipamento sem criar a indústria necessária. Não se pode tornar a indústria e a agricultura fregueses recíprocos, fazê-las interdependentes, sem distribuir metodicamente a população ativa de acordo com certa divisão do trabalho e sem que se organize, entre as diversas partes dessa população, uma distribuição da renda nacional, de modo a permitir o intercâmbio entre elas. E ainda: não basta criar a capacidade aquisitiva, a capacidade de intercâmbio. Faz-se mister aumentar progressivamente essas capacidades, aumentar a renda nacional. Será isso possível? Ainda neste ponto a resposta é positiva: não é impossível uma vez que tal desideratum já foi conseguido nos países mais adiantados. E não é só. Há uma condição indispensável à criação de uma “economia de expansão” e essa condição suscita um problema social. Para multiplicar os bens da Terra, “valorizar o mundo” e obter plena utilização dos recursos naturais é necessário aplicar integralmente as possibilidades da Ciência e da Técnica. Mas essa aplicação completa só se consegue através de um imenso esforço de educação, através de uma elevação progressiva do nível cultural das populações do mundo. E tudo isso depende da instrução que se der às crianças e aos adolescentes e das informações que forem divulgadas entre os adultos. Por outro lado a expansão econômica e a multiplicação do intercâmbio só serão conseguidas pela diversificação das necessidades humanas, fornecendo-se meios para satisfazê-las; aumentando-se ao mesmo tempo sua capacidade meios para satisfazê-las; aumentando-se ao mesmo tempo sua capacidade aquisitiva e a parte reservada às despesas de civilização. Assim, a “valorização do mundo” só é possível graças à “valorização dos homens”, permitindo-lhes a expansão de suas faculdades. Não basta dizer que a valorização do Homem deveria constituir o objeto da Economia. Na realidade constitui ela a condição indispensável para a expansão econômica. Essa grande obra que se ergue diante de nós nada tem de irrealizável. Em nenhum ponto está fora do nosso alcance, desde que saibamos querer. O problema da fome é difícil, não há dúvida. Mas pode ser exposto claramente. As condições de sua solução podem ser definidas e a ação a empreender para chegar ao fim já pode ser calculada. Já não podemos, pois, silenciar sobre o assunto. E preciso, pelo contrário, atacá-lo com coragem, no interesse de todos. As cinquenta e sete nações membros da Organização Internacional de Alimentação e Agricultura (FAO) já o compreenderam. E resolveram agir. É dentro dessa ação de grande envergadura, de tanta amplitude e de importância tão fundamental, que se coloca o livro do Prof. Josué de Castro. E chega em momento oportuno. Uma das primeiras coisas a fazer é levantar um inventário, tão completo quanto possível, da situação atual. É preciso designar as populações, os grupos mais ameaçados e estudá-los. Trata-se, no sentido médico da palavra, de fazer a “observação” de seu estado de nutrição. No sentido geográfico, de um ensaio ecológico dessas populações, estudando o complexo que criou o solo, o clima, as plantas e os animais. E no sentido sociológico, um inquérito econômico-social. Historicamente, trata-se de um estudo da origem e do desenvolvimento da situação atual. O Prof. Josué de Castro estava bem apto para empreender essa difícil tarefa. Não é ele apenas um homem de laboratório — um conceituado fisiólogo. É também um geógrafo, um pesquisador, um historiador. E os resultados que conseguiu através dos métodos de indagação de disciplinas tão diferentes foram por ele ordenados filosoficamente. Seu livro não é apenas uma coletânea sistemática de fatos instrutivos. É uma obra profundamente atraente porque é eminentemente viva. Ninguém poderá esquecer, depois de as ter lido, as páginas em que o autor nos conta a tragédia dos seringueiros alquebrados pelo beribéri, engolidos na voragem da floresta amazônica, nem aquelas em que nos descreve a seca alastrando-se pelo sertão do Nordeste brasileiro, esterilizando as terras, matando os animais, expulsando os homens. Ou então as páginas em que nos narra a história impressionante dos colonos destruindo progressivamente a floresta do mesmo Nordeste, para plantar a cana-de-açúcar e deixando-se iludir pela atração do lucro, até suprimirem as próprias culturas de sustentação e destruírem aquelas mesmas populações que próprias culturas de sustentação e destruírem aquelas mesmas populações que edificavam sua fortuna. Nesta Geografia da Fome, o problema da subnutrição e da carência alimentar aparece em toda a sua realidade, permitindo ao leitor compreender-lhe os diversos aspectos e a importância primordial. Um livro como este suscita ação e serve-lhe de guia. O leitor verá que é um livro de utilidade imediata e, ao mesmo tempo, um livro inteligente e generoso. Em suma: que é um bom livro. ANDRÉ MAYER Professor da Universidade de Paris ex-Presidente do Conselho Executivo da FAO
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