Fundações de uma Antropologia Política (o caminho comparativo na obra de J.-W. Lapierre) 1 Sérgio Cardoso Depto. de Filosofia - USP RESUMO : Este texto destaca e comenta a renovação metodológica da an tropologia política proposta pelo trabalh o de J.-W. Lapi erre no final dos anos 60. Procura mostrar sua originalidade e interesse - bem como seus proble1nas - em meio aos vários balan ços críticos que, então, reava liam os rum os da disciplin a (Balandi er, Glu ckrnan , Beatti e, M . Fri ed, etc). Entende balizar, em perspectiva histórica, o terreno e os horizontes do debate em que sua solução se inscreve - as dificuldades das diversas con figurações assumid as pelo comparatismo na prática da disciplina. PALAVRA S-CHAVE: antropologia política, método comparativo. O livro de Lapi erre Essai sur le fo ndement du pouvoir politiqu e logo que publicado , em 1968, suscitou não apena s a atenç ão mas uma esti ma considerável no meio das ciência s sociais. Nas múltipla s resenh as, come ntário s e citações de que foi objeto , ressaltaram -se, em todos os SúRGIO CARDOSO. fUNDAÇÚES DE UMA ANTROPOLOGIA P üL ÍTIC/\ casos, a ousadia do e1npreenditnento, a abrangência das considerações, a erudição precisa e o vo]u1ne "impressionante" das informações pro cessadas . Evidentemente, a vastidão do objeto e a ambição da obra expuseram-na a inú1neras objeções e notações críticas. O autor, en tretanto, e1n nova edição [publicad a em 1977] 2 corrigida e acresc i - da de u1na substantiva quarta parte-, retoma e debate as controvérsias suscitadas, revê suas hipóteses, corrige e a1nplia sua docu1nentação com grande senso de autocrítica, entendendo, no total, diri1nir os equí vocos, responder às críticas mais significativas e, assim, consolidar seu projeto. O certo, todavia - como podemo s constatar hoje-, é que, sej a o autor, seja a obra, viu-se depois perder-se o ímpeto inicial de seu prestígio, se1n 1nes1no romper o círculo dos interesses intelectua is da cena doméstica francesa. E, de fato, sob várias perspectivas, a obra nos parecer á ter envelhecido: já não são as mesmas as questões e o deba te ideológico (que sempre envolvem e alimenta1n as investigações do cientista); j á não apresenta111t al vez a 1nes111eav idência 111uaits das in formações que sustentam seus resultado s. Mas, se a obra parece da tada em tantos aspectos, conserva, entretanto, um interesse indiscutí vel: ela talvez nos pennita , mais que qualquer outra, apreender os impasses e os caminhos que se abrem para a antropolog ia política num momento em que a orientação até então dada à disciplina (desde a geração pioneira - associada a Radcliffe-Brown - dos africani stas in- ,,, gleses) já não parece mais sustentável. E por sua posição exigente quanto à constituição verdadeira111entec ientífica da disciplina que este livro nos permite sondar co1n maior nitidez a direção e as dificulda des de sua reorientação neste sentido. Visto que nos ateremos à consideração dos traços essenciais de suas formulaçõe s metodológicas, convém retomar brevetnente as linhas gerais da obra. Vejamos, então. Lapierre parte da definição do ca1n po do político (aquele dos processos artificiais ou convencionai s de regulação e coordenação das condutas sociais hu1nanas)3 e pretende -8- R EVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAUL O, USP, 1995, v. 38 nº l. responder à questão relativa ao seu fundamento mostrando a vin culação desse gênero de reguJação social, sua gênese, aos processos de inovação social, que não só responderiam por sua origem como ex plicariam a diversidade de suas formas e graus (cf. Lapierre, 1977:2, 172, 182, 185 e 292), pois "tais variações", diz, "dependem elas pró- pria s das formas e graus de inovação de que as sociedades se mostram capazes" (Lapierre, 1977:7). Quanto ao projeto mesmo de constitui ção da ciência - que permeia e sustenta tais investigações-, este lhe parece condicionado ao atendi111ento de dois requi sitos. De um lado, a exigência de uma delimitação nítida de seu campo - condição preen chida por sua definição do político, que responderia aos requisitos de universalidade ("ser aplicável a qualquer soc iedade de homens" - La pi erre, 1977: 263), nitidez ("permitir, em cada sociedade, reconhe cer o que é político e distingui-lo do que não é político" - Lapierre, 1977:265) e operatoriedade (mostrar-se uma "categoria analítica" eficaz para as operações metódicas praticada s pela disciplina, "as ope rações de estabelecimento dos fatos, análise e síntese explicativas que são próprias do método científico" - Lapierre, 1977:264) que se de ve1n esperar do conceito que carrega tal responsabilidade. De outro lado, o estabelec irnento da disciplina estaria condicionado à compreen são adeq uada do enquadramento metodológico requerido pelas ope rações científicas. No caso da antropologia, as exigências do "méto do comparativo" (c f. Lapierre, 1977 :263), quase se1npre distorcido - segundo acredita - no exercício de suas investigações. Seja no que diz respei to ao conceito encarregado da deli1nitação do campo da disciplina, seja no que se refere ao método , a tarefa cons trutiva - afirmativa- está aqui, como ocorre sempre, estreita1nente li gada àquela - negativa - da demolição. No pri1neiro caso, Lapierre analisa longamente as definições do político mobilizadas com maior freqüência nas pesqu isas, buscando mostrar em cada caso a insuficiên cia destes enunciados em face dos requisitos - anteriormente 1nen- -9- SÉRGIO CARDOSO. F UNDAÇÕES DE UMA AN TROPOLOGIA POLÍTICA cio nados - de uma definição apropriada do campo de operação da 4 ciência. No caso do método - que nos oferece uma perspectiva mai s abrangente,já que contextualiza o próprio emprego da definiç ão-, seus alvos serão os "procedimento s dicotômico s" ( ou o "pen samento dico tô1nico" - Lapierre, 1977:324 -, segundo diz), verdadeiro "pecado original" da antropologia política, visto que marcaria não some nte sua Uá história desde o trabalho pioneiro de M. Fortes e Evans-Pritchard de 1940 -Africa n political systems), mas também a da antropologia soc ial, sua matriz ( cf. Lapierre, 1977 :260). Dado que o "método com parativo" é o método da antropologia, seria preci so reconhecer que ele, por sua natureza mesma , repele os dualismos , o "s i1npJismo" e a "i nge nuidade " (cf. Lapierre, 1977:326) das 1neras oposiçõe s, já que "to da classificação em dua s categorias (dicotomia), tão cômoda para discursar, comete injúria para com a complexidade do rea l".5 Ora , este tipo de operação - estranho aos postu lados científicos e se1npre infir mado pela experiência ("não resistem à prova do s fatos" - Lapierre, 1977:327) - poderia ser explicado apenas por razõe s de ordem históri- ca: trata-se de um procedimento "ideo lógico" e "etnocêntrico" (Lap ierre, 1977 :70, 261 e 325), próprio de te111pos de co lonialis1no e império, fi xados na oposição - dual - co Jonizado/colonizador. 6 A antropo logia política operar ia, portanto , num domínio fundarnen talmente homogêneo - circunscrito conceituahnente-, cujas variações, advindas das situações diver sas em que se encontram as diferente s so ciedades, seriam o objeto das comparações 1netódicas a que se dedica a ciência. As variadas fonnas política s não apresenta1n, pois , diferen ça fundamental de estatuto, e as oposições "reducionista s" - co1no a que confronta soc iedade s selvagens e soc iedad es civilizadas, e outras sen1elhante s - devem ser vistas como ilegíti111as. Assim, a destituição destas "retóricas dua l is tas" (Lapierre, 1977: 325-6) - condição da aber tura da antropologia para "a divers idade e comp lexidade do real" -, pela co1npreensão das exigências metodoló gicas que se i1npõe1n à - l O- REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 1995, v. 38 nº 1. operação da disciplina , poderá finalmente colocar-nos no caminho seg uro (e ]argo) da ciência: "Talvez", diz , "tenha chegado hoje o mo mento em que [ ... ] vai, enfim, poder se constituir uma antropologia que renuncia às oposições ideológica s entre sociedades 'primitivas' e soc iedades 'civilizadas', sociedades 'arcaicas' e sociedades 'históricas', soc iedades 'frias' e sociedades 'quentes', e que compara metodicamen te civilizações diferentes, historicamente situadas" (Lapierre, 1977 :261; grifo nosso). E/ esta nova antropologia que é oferecida ao leitor ao longo do seu livro ; ainda que - pois "toda obra de ciência é imperfeita" - "mu itas ocasiões aí se ofereçam à sua sagaci dade crítica" (Lapierre, 1977:8 ). Mas que o leitor entenda bem: toda obra de ciência é imper feita, desde que ciência, evidentemente. De modo que os espaços de controvérsia que admite referem-se ao exercício do método, não à sua natureza e configuração. Os conceitos de base, as hipóte ses que co mandam as classificações e generalizações, os resultados destas ope rações, estão sempre sujeito s à contestação; o que é certo e seguro é a definição do caminho, o método: só a "comparação metódica das diferentes civilizações" nos põe - com Lapierre - no caminho certo da ciência. E/ sua convicção de ter chega do à compreensão e utiliza- ção adequadas desse caminho que anima seu propósito de firmar o terreno da antropologia política . Se Lapierre pretende , pois , em algum sentido, abrir caminho para uma nova antropologia política, se sua crítica da disciplina se prolon ga em algum desdobramento afirmativo e construtivo , é porque en tende conduz i-la a unia definição adequada de seu can1po e, mais ain da, fazê-la observar de modo apropriado as condutas exigidas de uma verdadeira ciência. Podemos, portanto, co1neçar por examinar seu método, deixando provisoria1nente de lad o a que stão da definição. E isto, não só porque estaria no registro do método , como vimos, a ver dadeira caução da ciênc ia, ma s sobretudo porque a definição - sua ex igência e condições - já está enquadrada por ele e deve ser compreen- - 11- St~RGIO CJ\RDOSO. F UNDAÇÜES DE UMA ANTROPOLO GIA POLÍTICA dida como uma de suas disposições, um dos quesitos articulados no conjunto de regras que rege sua operação. Ora, logo que nos dispomos a examinar os contornos desta proposta metodológica - o avesso afirmativo de sua recu sa das "ideologias dualistas"-, damo-nos conta do quanto sua pretensão fundadora ( ou mesmo apenas de proporcionar à disciplina u111an ova orientação) parece equívoca e desconcertante. Pois logo verificamos que sua acu sação dos procedimentos dicotômico s pensa-se apenas co 1110d esobs trução de u1n caminho que, na verdade,já estaria estabelecido. Ele não parece exigir da crítica um trabalho efetivo de edificação , de constru ção - basta que lhe removam os entulhos, que lhe corrijam os desvios. O caminho seguro e verdadeiro da ciência já lhe parece dado, traçado de antemão: "O 1nétodo desta antropologia ['uma antropologia ver dadeiramente científica'] é o método comparativo" (Lapierre, 1977: 263), diz ele, a quem a asserção parece dispen sar maiores considera ções. Parece-lhe bastante reiterar, numa alusão ligeira, a afirmação habitual de que assi1n é porque o ca111inho da experimentação - a via régia da ciência - lhe está vedado. 7 Podere111os vê-lo, então , exam i nar, aqui e ali, a pertinência e a adequação do exercício desse méto do, a correção dos comporta111entos dos que se dispõem ( ou que su põe dispostos) a trafe gar por ele, mas em nenhum momento porá em questão o próprio sistema de operações que possibilitaria ou valida ria este can1inho, como se houvesse, nos quadros da disciplina, um acordo amplo sobre os procedinnentos a serem respe itados , so bre as vias a serem percorridas na direção da ciência (suposição que se assi nala co1n toda clareza quando o ve111osa rgüir os autores 111aisd iver sos sobre sua fidelidade ao "método co1nparativo"). A vertente crítica da obra de Lapierre supõe, portanto , a questão 1netodológica resolvida. Por isso ela se volta para o exa1ne da adequa ção dos conceitos mobilizados na delimitação do campo das operações da ciência (c f. Lapierre, 1977 :265-9) e para a apreciação, seja da perti - -12- R EVISTA Dt~ ANTROPOLOGIA,·SÃo PAULO, USP, 1995, v. 38 nº 1. nência e operaciona lidade das hipóteses· que possibilitariam a explo ração 111etódicad este campo, seja das operações mesmas da compa ração e da indução de regularidades (por exemplo, na crítica relativa ao conceito de Estado que, em Fortes e Pritc.hard, e também em Clastres, instrumentalizaria, a modo de hipótese, a operação de suas classifica ções dicotô1nicas - cf. Lapierre , 1977:324; e tarnbé111L apierre , 1976: 990-2). Ou seja , Lapierre preocupa-se com a correção do exercício dos vários registros ou n1omentos que integraria111o método, 111sa e1n ne nhum mo111entop õe em questão seu alcance ou sua legitimidade, co1110 se houvesse consenso não só sobre os procedimento s, 111sa tambérn so bre o que nos é permitido esperar do conhecimento, sobre os alvos e o tipo de racionalidad e envolvido s na prática da ciência. Enfi111t,u do se passa como se no nível das operações da disciplina e de sua confi guração episte1nológica - no nível do método, se tomamos esta pala vra en1 seu sentido mais denso-, Lapierre se visse instalado no seio de urn território seguro, cuja legitimidade seu próprio silêncio, reite rando a paz (unia suposta ausência de querelas e contestações), ates taria mais uma vez.8 Diría1nos, em vista desta conduta, que se repete aqui aquela situação e111q ue Kant acreditava ter encontrado a ciência: aplicada a seu objeto e esquecida de si mes1na. Na verdade, portanto, o olhar novo que Lapierre se propõe lançar sobre a disciplina se oferece efet iva1nente como um olhar turvo. O ponto que ele próprio considera central aparece etn seu texto vago e nebuloso, desfocado , pois parece difícil dar qualquer contorno nítido ou catalisa r consenso na antropologia para o que nos é proposto sob ., a rubrica de "método co1nparativo". E verdade que se conside rannos ofáctun1 desta ciência - e 111es1nao breve história de sua especia liza ção política que aqui nos interessa - , não é difícil constatar em toda a sua extensão u1n uso a1nplo dos proceditnentos classificatórios e co1n parati vos. Tambétn é verdade que, já desde suas origens , no fim do sécu lo XIX, a "antropolo gia cultural" pretendeu vincular sua cien- - 13- SFRGIO C .\RDOSO. FUNDAÇÜES DE Uf\lA ANTROPOLOGIA POLÍTICA tificidade ao emprego do ·'método compa rativ o'' - contraposto ao "'n1étodo histórico". que a relegaria ao domínio das humanidades. De pois disso. co1no sabemos, esse "n1étodo". mesmo discutido nas suas pretensões ou cercado de cautelas no seu exercício, nunca foi cfetiva- 1nente recusado ou 1nesmo relegado a um plano secundário pelos gran des investigadores, à exceção, talvez, apenas de Lévi-Strauss , no qual o papel das comparações - ainda que preservado - se ofusca de tal rnodo (por sua subord inação às operações lógicas requeridas para a dedução dos rnodelos estruturais) que se torna itnpossível falarrnos em continuidade ern seu caso. Ora, é possível afinnar que tais observações parecem respaldar a suposição de consenso capitalizada por Lapierre. e que nos obriga1n a conter o í1npeto de tomá-la por ingênua ou des cabida. No entanto, justan1ente este uso generalizado dos procedi1nen tos con1parativos - sua reivindicação por empresas de conhecimento tão díspare s - não nos deveria alertar para a pretensão de lhes atribuir, por seu simples recurso a tais procedimentos, homogeneidade metodo lógica? Se a supos ição é ingênua, é porque apenas o e1nprego das comparações, n1es1noq uando pensado como o instru1nento exclusivo da disciplina, não é suficiente para definir en1 cada caso o que seria seu "1nétodo. .. O certo é que os diferentes enquadrarnentos dados ao exer cício das con1parações carregan 1 irnplicações episternológicas diver sas. Como veremos adiante, as dispo sições que circunscreven1 seu exercício não dize1n respeito apenas, con10 se poderia pretender. a divergências pontuais ou a apreciações discordantes sobre exigências técnicas ou sobre os caminhos de sua maior rentabiJidade científica: nem põem e1n causa apenas a vai idade cJasc orrelações e conclusões que o método proporciona (corno faz crer, entre outros, Isaac Shapera),9 mas envolve1n concepções diversas sobre os alvos visados pela ciên cia e mesmo sobre seu estatuto de científicidade. Enfin1: a deJi1nita ção do ca1npo designado para sua operação, a definição das unidades con1paráveis, o raio de ação que lhe é facultado nesse carnpo (seu e1n- 4- - J REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 1995, v. 38 nº 1. prego genera lizado e extensivo ou mais restrito e condicionado), o gê nero de "razão " que se acredita que proporcione (simples correlações ou regularidade s estabelecida s ao estilo de uma "sistemática", unifor midades ou caracteres gerais induzido s da observação, sínteses teóri cas de tipo exp licativo, ou mesmo, como parece pretender o próprio Lapierre, o fundamento e origem do domínio a que se aplica), não são quesitos indiferentes à configuração do "método ". ,, E preciso, por exemp lo, levar em consideração que o recurso às comparações e classificações dos primórdios evolucionistas da antro pologia socia l, tal como estas operações são praticadas (ou seja, com todo o conjunto de preceitos e dispos ições 111etodológicos impo stos à sua prática), pouco tem a ver com o recurso aos "mesmos" procedi mentos nas investigações da esco la boasiana, pois, ainda que nestas investigações freqüentemente se acredite que o método esteja a ser viço do mes1no objetivo que o dos evolucionistas - o conhecimento das leis que governariam o desenvolvimento da cultura humana (Boas, 1949:4 e 276) -, é nítida a diferença entre eles acerca do modo de atin gir tais objetivos e acerca do alcance e do estatuto dos conhecimen tos assim assegurados. Na escola evolucionista, o traço 1narcante do emprego das compa rações é sua abrangência : tanto no sentido de que o "compararismo" ( que foi posterionnente, como se sabe, quase sempre identificado co111 esta escola) abarca todo o âmbito de seus estabelecimentos 11e1todoló gicos e carrega sozinho a responsabilidade do conhecimento, quanto no sen tido de seu emprego irrestrito a todo s os fenômenos das dife rentes sociedades conhecidas, já que vê todos os traços discretos destas culturas como objetos possíveis das con1parações. Ora, todos sabemos que se o comparatismo aí reina soberano - totalizando, portanto, a prática da ciência co1110s eu recurso fundamental e 1nesmo exclusivo - não é, sir11ples1nente, porque os evolucionistas acreditariam, como Lapierre, que "o 111étodod a antropologia verdadeiramente científica - 15- SÉRGIO C ARDOSO. F UNDAÇÕES DE UMA ANT ROPOLOG IA POLÍT ICA é o 1nétodo comparativo " (c o1110s e a deci são sobre o método prec e desse a con stituição da ciência e a circun scrição de seu "objeto "), 1nas sim porque o inscrevem no interior de u111q uadro de pre ssupo stos que justifica o recurso a este procedilnento e a tal modo determinado de sua opera ção. Se aí se afirma, portanto , a pos sibilidade de cla ssificar e comparar , e ainda a co1nparabilidade de todos os traço s discreto s das diferentes soci edade s, é porque - corno se sabe - esta afirmação se sustenta na crença de que um proc esso linear e uniforme de evoluç ão das culturas guia a variação de todo s os seus termos segundo leis. E111o utras palavra s: o "1nétodo con1parativo" só ganha a extr e111a desenvoltura que aí o caracteriza porque aliado à pretensão - arbitrá ria- de que as variações por ele proce ssadas dos diferentes traço s das sociedade observada s (e, portanto , de algum modo contemporâneo s ao observador) corresponderiam aos vário s graus - estágio s ou eta pas - da suce ssão temporal de u1n processo nece ssário (mas submeti do a condições e contexto s, sobretudo geográfico s e ambientai s, di verso s) de complexificação e diferenciação crescentes de toda a cultura humana, cujas leis uniformes a co111paração das variaçõe s - reduzidas a tipo s - permitiria detectar. Assi111, os procedimentos da ciência se fundem - e se confundem - co1n estes pressupostos ou crença s 10 para produzir a configuração epistemológica original do "comparati smo evolucionista" , que faz da comparação a instância soberana da ciên cia como sua prática exclusiva e irrestrita (responsável por aquele "canibalismo pseudocientífico" disposto , na expressão de Lévi-Strauss, a triturar todas as diferenças das culturas na unidade monótona de sua evolução - cf. Lévi-Strauss , 1973:389). Ora, no auge mes1no da influência da escola evolucionista e do pres tígio desse método, em texto de ] 896 ( cf. Boas, 1949:270-80), Boas já vai alertar , corno també111 se sabe, contra esse uso abrangente e indiscriminado do procedi111ento comparativo, indicando com grande precisão - e tendo o cuidado de tomá -Ias e fonnulá-Jas estritamente - 16-
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