JAMES JOYCE FINN'S HOTEL Tradução Caetano W. Galindo SUMÁRIO NOTA DO TRADUTOR .i..’. .o..l — Danis Rose James Joyce e sua História da Irlanda — Seamus Deane Colaboradores FINN’S HOTEL 1. A tintinjoss de Irlanda 2. Bondade com peixinhos 3. Uma história de um tonel 4. Seus encantos dela 5. O grande beijo 6. Bordões da memória 7. Firmamente ao estrelato 8. A casa dos cem cascos 9. Homem Comum Enfim 10. Eis que te carto Anexo — Giacomo Joyce NOTA DO TRADUTOR Me agrada muito que a nota de rodapé da página 59 não apenas seja a única a todo o texto, mas anuncie um tanto orgulhosamente esse fato. Finn’s Hotel é um texto enigmático, lacunar, indecidível. E tentar elucidá-lo à força de notas e exegeses pode ser uma empresa natifrustre, por assim dizer. Além disso, a história editorial do manuscrito é bem defendida aqui por seu editor original, e as ressonâncias mais especificamente irlandesas de um texto tão ancorado naquela cultura são devidamente exploradas na introdução de Seamus Deane. Não preciso me estender demais nesta minha nota, até por ter me dado o direito de anotar devidamente o aparato crítico, tentando propiciar ao leitor que não tem grande trânsito pelo verdadeiro mundo que é a crítica de Joyce uma entrada mais plena e uma compreensão maior dos comentários dos dois estudiosos. Mesmo assim, gostaria ainda de fazer dois comentários: um como leitor de Joyce; outro como tradutor. Em primeiro lugar, vale ressaltar que as opiniões dos vários acadêmicos que trabalham com Joyce estão longe de ser unânimes a respeito do relato genético apresentado aqui por Danis Rose. Se em algum momento houve de fato a intenção, da parte de Joyce, de rascunhar uma obra independente, se esse Finn’s Hotel era um ensaio interrompido, uma introdução abortada ou um livro engolido pelo Finnegans Wake, são coisas que talvez jamais venhamos a saber com certeza. E, a bem da verdade, cabe reconhecer que são coisas que o próprio Rose não declara estarem totalmente resolvidas. E, mais importante ainda, talvez pouco importe. Estamos (ou ao menos estou eu) diante deste Finn’s Hotel como quem olha para os últimos quadros de J.M.W. Turner. Saber se ele pretendia expô-los naquele estado, se são fragmentos, estudos ou obras inacabadas não afeta em nada o avassalador efeito estético que aquelas imagens têm sobre o espectador. Duvido muito que qualquer crítico literário, dedicado ou não ao estudo de Joyce, negue o óbvio valor destes manuscritos. Duvido que alguém negue o interesse intrínseco desses textos, assim como a contribuição que podem dar ao insondável processo que leva o Joyce dos primeiros episódios do Ulysses a se transformar, na segunda metade do livro, em escritor dedicado a reformular todas as regras do romance e, já no Finnegans Wake, no criador de uma nova tradição-de-um-homem-só, que conseguiu se transformar numa tradição para-todos-os-homens. E mulheres... Este Finn’s Hotel ainda há de fazer correr muita tinta. Mas desconsiderado ele não deve vir a ser. O leitor do Ulysses vai encontrar aqui temas, vozes conhecidas. O leitor (ou pré-leitor) do Wake terá acesso a retratos em miniatura de alguns personagens centrais, a uma primeira releitura do mito de Tristão e Isolda (absolutamente fulcral para todo o Wake) e até a um esboço da famosa carta, comentada durante todo o romance e apresentada apenas em suas últimas páginas. É uma bem-vinda introdução a um livro famoso por ser quase inabordável. É, nesse sentido, uma contribuição inestimável. Encontrar Joyce como que afiando as ferramentas, testando o terreno, escolhendo os caminhos que o levariam do grande romance do século XX à maior obra literária dos últimos quatrocentos anos, na opinião de gente como Harold Bloom, é um privilégio que, sozinho, já justificaria a publicação deste livro. Colagem desentranhada de fragmentos do enlouquecedor manuscrito do Finnegans Wake? Relíquia de uma obra que poderia ter sido um prelúdio ao último romance de Joyce? Realmente, pouco importa. Finn’s Hotel é uma obra interessantíssima, absolutamente singular: um grande presente. Imprima-se. * Como tradutor, tenho pouco a acrescentar, o que eu precisava e pude pôr no texto já está nele, na forma com que se apresenta em português. Mas queria só registrar, quase como mais um agradecimento ao autor que me transformou em tradutor, que tradutores (como os portadores das cartas) são criaturas venais, que vivem de prazeres vicários. E traduzir Joyce é se sentir, momentaneamente, no paraíso. Saem dos teus dedos as frases mais bonitas, mais divertidas e mais tocantes. Mas saem porque na verdade estão saindo da construção de Joyce, e sendo vestidas, naquele momento, por você. Saem somente porque Joyce obriga o tradutor a espremer as últimas convoluções cerebrais em busca de algum efeito, sonoro, semântico, rítmico. Ele faz exigências impossíveis e, por isso mesmo, demanda o máximo. Cobra que você fuce em cantos do português que normalmente ficam ali só pegando pó. É, em suma, um imenso prazer para quem tem esse tipo de perversão. Poder traduzir este Joyce foi uma alegria sem fim. Poder tentar cobrir de português (e de Castro Alves e Carlos Sussekind) essa prosa que se descobria totalmente livre de qualquer constrição de correção, de estilo, de adequação... uma prosa que se queria plenamente efeito, evocação, eficácia... me deu uma satisfação que eu espero que os leitores consigam encontrar e provar por si próprios. O Joyce de Finn’s Hotel já está um degrau acima do fim do Ulysses. Ele ainda não encontrou a desfaçatez que o levaria a quase abrir mão da compreensibilidade no Finnegans Wake. Como lembra Danis Rose, este livro é basicamente legível. Mas já goza aqui de uma desconsideração pelo bom-mocismo gramatical, semântico e literário que o deixa solto, leve, quase irresponsável. Se no princípio o verbo fez-se carne, no fim (segundo Joyce) o Wake descarnou-se e atingiu planos pós-verbais que só podemos alcançar abrindo mão da compreensão tradicional do texto. Aqui, no entanto, Joyce ainda não tinha alçado esse voo. Aqui ainda dançava em meio aos seres deste mundo, girava com todas as cores, tendo os pés a meros dois milímetros do chão molhado pela língua de todos. É tentar lhe dar a mão. * E, falando em mãos dadas, também é um grande prazer poder lançar junto com este Hotel uma nova tradução de Giacomo Joyce, texto bem mais conhecido, que estaria para o Ulysses mais ou menos como seu irmão aqui presente está para o Finnegans Wake. Mas com uma grande diferença: Giacomo Joyce também nunca foi publicado por Joyce. A primeira edição, aos cuidados de seu biógrafo Richard Ellmann, apareceu apenas em 1968. Mas seu estatuto como obra independente e concluída é um bocado mais claro que o de Finn’s Hotel, pois as oito folhas (frente e verso) que compõem seu texto foram encontradas quando seu irmão organizava a biblioteca que Joyce deixara em Trieste. E foram encontradas organizadas, em ordem, dentro de uma pasta, com esse título escrito na capa e com versão italiana do nome do autor, como nas obras do jovem Luigi Beethoven. Mas a coisa não é tão simples assim (e em algum momento foi simples?), pois o fato é que a mão que escreveu essas palavras na capa da pasta que continha as páginas do texto não é a de Joyce. Ou, se for, terá de ser a outra mão. Um Joyce canhoto disfarçando sua própria caligrafia, acreditam alguns... Ele organizou o texto? Ou outra pessoa? E quem teria sido? E que texto é esse, que já aparece cercado de dúvidas? Trata-se, como no caso de Finn’s Hotel, de uma série de vinhetas mais ou menos interdependentes, que no entanto esboçam uma história aqui muito mais nítida. A trajetória do amor de um professor por sua discípula, e de sua descoberta final de que o amor, ou a mera existência, de uma outra mulher em sua vida (Nora!) impossibilita essa aventura. Sabemos que o texto foi escrito em Trieste, provavelmente 1914. Sabemos que ele, assim, cabe com a peça Exilados entre os textos preparatórios à escrita do Ulysses, onde Joyce explorou alguns temas de maneira mais experimental. Especialmente o tema da tentação e do adultério. Podemos, num escritor tão abertamente biográfico como sempre foi Joyce, encontrar nos eventos de sua vida e na vida da cidade entre 1911 e 1914 (e especialmente na relação de Joyce com Amalia Popper, sua aluna de inglês na escola Berlitz) as sementes e a fonte de quase todos os eventos narrados em Giacomo Joyce. Sabemos também que podemos encontrar dentro do Ulysses e até do Retrato do artista fragmentos que inicialmente faziam parte desta outra obra, e que talvez seja esse um dos motivos por que Joyce a manteve inédita: ela já teria cumprido seu papel de ensaio. No entanto, acredito realmente que, como no caso de Finn’s Hotel, não é nem a empresa investigativa biográfica e nem o interesse filológico e genético na obra prévia de Joyce que garantem o valor do Giacomo Joyce. Agora, depois de mais uma de inúmeras releituras, e depois de finalmente ter me dedicado a traduzir o texto todo, acredito mais do que nunca que a obra se sustenta por si própria, como curiosíssima história de amor, como evocativa sequência de quadros por vezes primorosos que, aos olhos do século XXI, parece radicalmente nova, poderosa e viva. Basta, a qualquer leitor curioso, conferir aquela cena incrível em que um vestido desliza de um corpo nu. Ou o desfecho doloroso, risível e insubstituível. Acredito de fato que, junto com Finn’s Hotel, este Giacomo apresente a qualquer leitor uma generosíssima porta de entrada para dois momentos distintos da carreira deste que pode ter sido o maior prosador da história da língua inglesa. Em poucas páginas. Quase incomparavelmente férteis. .i..’. .o..l Danis Rose Há uma outra história. Era uma vez e que dia bonito que estava e um rapazinho descia a estrada e esse rapazinho que descia a estrada encontrou uma mocinha chamada Nora Barnacle...1 Ele era James Joyce — Sunny Jim2 —, definitivamente o homem certo no lugar certo. Tinha olhos azuis bem claros, uma tez pálida e exibia um boné de iatista, e ela achou que ele parecia um marujo sueco. Ela, a mais linda da Irlanda, tinha cabelos castanhos arruivados como um alagadiço ao pôr do sol, globos de um azul profundo que rolavam como Oceano, e uma carinha safada. Ela morava estrada abaixo num prédio sisudo de tijolos à vista chamado Finn’s Hotel, onde, depois de fugir de um convento de Galway e de um tio irascível (Mick, não Mark),3 tinha achado um emprego de camareira e garçonete ao mesmo tempo. Ah, se ela não quiser! Logo ele ganhou o seu amor, e ela, o dele; e ele a levou dali num navio sobre a face do abismo, apassionatamente, para pasmo dos locais. Depois de muitas lidas e deslindes, viram-se, dois sem- lar, vivendo em Paris, França. Ele havia, nesses tempos de exílios e de idílios mais raros, tornado-se mestre da prosa: havia escrito Ulysses. Mesmo assim, ainda não deixara sua marca: forjar no cadinho de sua alma a consciência incriada de sua raça rebelde.4 Aí, como que por precursá-lo, São Patrício, voz dos irlandeses, conclamou-o em sonhos. Aquela voz e aqueles sonhos — tão terrivelmente difíceis para o resto do mundo entender — viriam a dominar sua última, grandiosa e avassaladora obra, o Finnegans Wake. Mas isso ainda não era. Ele estava com dificuldades para engrenar.
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