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Feliz ano velho PDF

176 Pages·2013·0.93 MB·Portuguese
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MARCELO RUBENS PAIVA Feliz Ano Velho PREFÁCIO Marcelo, cara, peguei teu texto para ler em um dia de tremendo baixo-astral. Como sempre acontece comigo (desde que te conheço), recebi uma porrada de energia na boca do estômago e o moral subiu dos intestinos para a cabeça. O teu livro está um barato, especialmente porque dá pra sentir um gozo aberto tipo pôquer descoberto. No fundo eu acho que a transa da literatura está ligada à transa da verdade (assim como a revolução, o amor e um montão de coisas). E é aí que está todo o pique do que você escreveu. A tua história está transada de um jeito putamente terno, bem-humorado, erótico e sedutor, o que, aliás, é a tua maneira de ser. Agora o seguinte: vou tentar uma contribuição de leitor numas de baixo- astral. Ou então porque me sinto um tanto machucado pela vida e sinto vontade de transar a amargura como parte da realidade. Se você achar que as minhas questões não têm nada a ver com teus sentimentos, vê se não é o caso de falar sobre isso com quem transa as coisas desse jeito. Ou então desencana e manda ver no teu texto. 1. O que é que passou pela tua cabeça na hora que você mergulhou estilo Tio Patinhas? 2. Raiva, revolta contra o fatalismo do acidente (por que logo eu?)? 3. Quando você fala em “cagada”, isso expressa sentimento de culpa? 4. Eu acharia legal que, em alguma parte, viesse um relato personalizado da tua visão do Rubens Paiva e do sequestro. Tem uma firmeza no teu texto que espero que você mantenha: é um texto limpo de teorias e com um puta sentimento que expressa e defende tuas ideias. Por exemplo, é deliciosa a maneira como na história há elementos críticos sobre as pessoas, comportamentos sem nenhuma cagação de regras ou ironias baratas, mas com uma puta firmeza. Ameaça final: se você não publicar esse livro, juro que vou me aliar ao pai da sua namorada da BBB e perseguir você até o juízo final. Abração, LUÍS TRAVASSOS Inverno de 1981 O Travassos foi presidente da UNE em 68 e morreu na quarta-feira de Cinzas de 1982, aos 37 anos. Não leu o final do meu livro, nem escreveu o dele (veado, eu dizia que a história da vida dele era muito mais emocionante que a minha). Não consegui convencê-lo a escrever, mesmo depois de mostrar as minhas primeiras páginas analfabetas. Sinto saudade da gente bebendo cerveja e falando das nossas desgraçadas vidas. Nós, com quem o destino não foi muito generoso, temos uma certa cumplicidade com a vida, e procuramos juntos nos defender dela. É difícil entender por que um rapaz de 20 anos fica paralisado depois de um mergulho mal dado. Assim como é difícil aceitar que um líder estudantil teve que passar toda a sua juventude fugindo de país em país, pois alguns generais não gostavam dele. Você morreu, Zé, e eu adorava você. Este livro é dedicado a você, e, quando eu for pro céu, vou levar o que você não leu, e umas folhas em branco pra sua história. Até mais, garotão. MARCELO RUBENS PAIVA BIIIIIIIN 14 DE DEZEMBRO DE 1979 17 HORAS SOL EM CONJUNÇÃO COM NETUNO E EM OPOSIÇÃO A VÊNUS Subi numa pedra e gritei: — Aí, Gregor, vou descobrir o tesouro que você escondeu aqui embaixo, seu milionário disfarçado. Pulei com a pose do Tio Patinhas, bati a cabeça no chão e foi aí que ouvi a melodia: biiiiiiin. Estava debaixo d’água, não mexia os braços nem as pernas, somente via a água barrenta e ouvia: biiiiiiin. Acabara toda a loucura, baixou o santo e me deu um estado total de lucidez: “Estou morrendo afogado.” Mantive a calma, prendi a respiração, sabendo que ia precisar dela para boiar e aguentar até que alguém percebesse e me tirasse dali. “Calma, cara, tente pensar em alguma coisa.” Lembrei que sempre tivera curiosidade em saber como eram os cinco segundos antes da morte, aqueles em que o bandido com vinte balas no corpo suspira... — Sim, Xerife, o dinheiro do banco está enterrado na montanha azul. Por que o cara não manda todo mundo tomar no cu e morre em paz? O fôlego tava acabando, “devem pensar que estou brincando”. Era estranho não estar mexendo nada, não sentia nenhuma dor e minha cabeça estava a mil por hora. “Como é que vai ser? Vou engolir muita água? Será que vai vir uma caveira com uma foice na mão?” — Venha, bonecão, vamos fazer um passeio para o mundo do além, uuuaaaaaaa!!! Será que vou pro céu? Acho que não, as últimas missas a que fui eram as de sétimo dia dos tios e avós. Depois, não sei se deus gosta de jovens que, vez em quando, dão uma bola, gostam de rock. Pelo menos não é isso o que os seus representantes na Terra demonstram. É, meu negócio vai ser com o diabo, vou ganhar chifrinhos, um rabinho em forma de flecha, e ficar peladinho, curtindo uma fogueira. De repente estava respirando, alguém me virou. — Você tá bem? — Era o professor Urtiga, que me carregava no colo. Sem saber o que dizer, pedi uma respiração boca a boca. Ele me olhou assustado e foi me levando pra margem fazendo a respiração. Já em chão firme, os bêbados e loucos falavam: — Ei, Marcelo, levanta! — Que é isso, Paiva? — E aí, tinha muito ouro? — Levanta, que ele fica bom logo, é só dar uma chacoalhada. — Isso, me levanta, eu devo estar meio bêbado. Me levantaram, mas não deu em nada. Todos ficaram impressionados, logo começaram a transar uma ida a um hospital qualquer: uma cabeça mágica arrumou uma tábua. Deitaram-me e fomos até onde estavam os carros. Não havia dúvidas de que a Kombi era o melhor deles. Entraram Urtiga, Florência, Marcinha, Gregor e não sei mais quem. Urtiga foi cantando em castelhano, imaginei que fosse algum ritual maia, já que ele é mexicano. Gregor foi cutucando meu pé e chamou seu deus que até hoje não sei quem é, a Marcinha apelou pro Pai-Nosso e a Florência só chorava. O caminho tava demorando, mas eu nem me importava, tava gostoso ali, deitado, ouvindo o canto maia, com a certeza de que nada de grave havia acontecido. No hospital me dariam uma injeção qualquer e tudo bem. Urtiga começou a passar a mão na minha cabeça. Reparei que ele tava preocupado, olhei pra sua mão e vi que estava toda ensanguentada. Só poderia ser de algum corte da minha cabeça. Chegando no pronto-socorro, percebi que o negócio era sério: maca, oxigênio, enfermeiros, médicos, maca correndo, teto branco, todo mundo olhando, mesa de raio X. — Sente aqui? — Não. — E aqui? — Só acima do pescoço. — Ih, meu deus... Veio uma mulher: disse calmamente meu nome e pedi para avisar minha família em São Paulo. — Ah! Avisa também o dr. Miguel aqui em Campinas. O telefone dele é 29045. Não sei como consegui lembrar o telefone do pai da minha ex-girl. Comecei a pensar nela, doce Lalá, faz quase dois anos e não teve outra paixão igual. Lembrei-me de que sempre que a gente ia jantar fora, pedíamos vinho e ficávamos tão bêbados que todas as privadas de bares campineiros estavam registradas com meu vômito. — Não, moça, não corte minha unha, é que eu toco violão e vou fazer uma gravação neste fim de semana. Seria a primeira vez que ia entrar num estúdio profissional. — Guarda esse colar, que ele é muito especial. — Pô, meu cabelo não, é que eu sou muito vaidoso. Me deixaram carequinha, carequinha. Apaguei. DO LADO DE CÁ DOS TRILHOS De um lado, sou neto de latifundiários; de outro, comerciante italiano da rua Santa Rosa. Filho de engenheiro e advogada, tenho quadros bonitos na parede e piso em tapetes persas. O único calo que tenho em minhas mãos é de tocar violão. Não tenho marcas de estilete nem de balas pelo corpo, apenas arranhões devido a uma infância debaixo das traves. Sempre joguei no gol. Nasci do lado de cá dos trilhos, de marginal somente no colegial, onde os colegas eram príncipes; eu, apenas burguês. Eles calçavam All Star, um tênis todo fresco, americano, que encantava as menininhas, dando um porte de jogador de basquete da Harvard University. Eu usava um Bamba, figurando um goleiro do Vasquinho, meu time de futebol. O Tietê enche, mas não molha minha casa; o temporal cai, mas não atola minha rua. Nunca tive que trabalhar. Meu berço não era de ouro, mas era um berço. Só aos 10 anos peguei no batente, no Rio de Janeiro. Fora eleito presidente do Vasquinho. Era um cargo glorioso, mas tinha que pôr dinheiro na Caixa. Varria quintais e ganhava Cr$5,00. Em outras palavras, cinquenta chicletes. Sempre fui um grande pidão, e, nos jantares que meus pais ofereciam, eu punha uma urna na entrada, escrito: “DÊ UMA COLABORAÇÃO A UM POBRE GAROTO.” Eles achavam graça e davam. Como os jantares eram frequentes, já estava me tornando um milionário. Resolvi investir, capitalizar minhas economias. Virei um sócio fanático da Caixa Econômica Federal. No Natal e no meu aniversário, o bolo era grande. Pensei até em investir no overnight, mas não tinha know-how para tanto. No dia seguinte, ia direto para minha amiga Caixa, onde os caras já me conheciam, e todo dia 26 de dezembro ou 2 de maio já tinha um comprovante de depósito preenchido em meu nome no valor de Cr$500,00 (cinco mil chicletes), era o bolo da minha avó. Pena que todo ano, até hoje, a ficha continue preenchida em Cr$500,00. Minha avó não entende nada de correção monetária. A conta crescia, começava a ficar apetitosa. Andava pelas vitrines escolhendo o que poderia e o que não poderia ser meu. Um dia, encheu o saco. Não queria morrer rico sem ter nada em mãos. Primeiro foi uma prancha de isopor, dessas de pegar jacaré. Fiquei bom no mar, passei pruma de surfe, mas vim morar em São Paulo, e, até agora, as ondas do laguinho do Ibirapuera não subiram. Tinha de fazer um investimento mais paulistano: comprei um violão. Aos 17 anos, conheci uma linda paraguaia na Unicamp. Com as férias, veio o convite. Nunca havia saído do Brasil. Então, fechei a conta numa aventura ao Paraguai. Que decepção: ela tinha um namorado paraguaio. Tinha carregado o Fabião comigo, mas ele também levou um fora de uma muchacha. Decidimos então ir à Argentina, mas comemoramos a última noite paraguaia numa boate. Bêbados e mal-amados, uns caras insistiram para irmos pro “quilombo”. Quilombo? Deve ser algum gueto de negros, pensei. Que nada, era um puteiro. Bêbados, mas nem tão mal-amados, eu e o Fabião fomos pra Argentina, onde torramos todo o dinheiro em cassinos e mulheres. Que besteira, ficamos duros. Tenho um pouco de vergonha, mas também um pouco de orgulho, pois não era só nos filmes que os caras se estrepavam em Las Vegas. Nós também. Estávamos com fome e frio em Buenos Aires. Como explicar às nossas famílias que não tínhamos dinheiro pra voltar? Apelamos para a criatividade: — Fomos assaltados. — Que coisa horrível. Em dois dias havia dinheiro suficiente para passarmos mais um mês, porém, cinco minutos depois, fomos pra rodoviária, pegamos um Pluma. Quarenta e oito horas de viagem sem abrir a boca. A Argentina e o Paraguai riram de nós como quem diz: “Enganamos mais dois trouxas.” UTI UNIDADE DE TERAPIA INTENSIVA Acordei. De um lado, um caninho com um líquido amarelo que entrava em minha veia; do outro, um com sangue. Na boca, um acoplado, aqueles aparelhinhos de respiração artificial que já conhecia do Fantástico. Muito eficiente, fechava a boca com a língua, mesmo assim o ar entrava. Tinha uma sanfoninha pendurada que enchia e esvaziava. Assoprava e ela nem se tocava, enchia e esvaziava... Fiquei curtindo o bicho: como é gostoso respirar sem fazer força, enchia e esvaziava... Passei a reparar no ambiente. Era uma sala pequena, com luz fria. Não sabia se era dia ou noite, porque não havia janelas, só paredes brancas. À minha esquerda, um leito com um cara em cima. Também tinha uma sanfoninha. À direita, dois leitos. Tentei me erguer, mas não consegui. É mesmo, não mexia nada. Lembrei-me do acidente, só podia estar num hospital. “O que aconteceu comigo? Será que fui operado? Será que é por causa da bebida que estou assim? Algum trauma devido à batida na cabeça?” Ouvi vozes e percebi que havia gente na sala. Comecei a balançar o pescoço pra chamar a atenção. Veio uma enfermeira e perguntou se tava tudo bem. — Eh, eh, eh... Perguntou se eu queria tirar o aparelho. Fiz um gesto afirmativo, ela pediu pra esperar um pouco e saiu. Nunca sentira tanta falta da minha voz. Precisava saber se era sério o que tinha acontecido, queria falar, ouvir, e naquela sala não havia nada. A enfermeira voltou com mais dois caras. Perguntaram-me se eu seria capaz de respirar sem a sanfoninha. Era óbvio que podia, afinal de contas eu tava absolutamente acordado. Minha boca livre, perguntei o que havia acontecido. Responderam que eu fora operado e que estava tudo bem. — Como assim? — Mantenha-se calmo e com um pouco de paciência, que você vai pra casa logo. Tua mãe teve aqui, mas voltou pra São Paulo, porque já é tarde. — Que horas são? — Três da manhã. — Tudo isso? Mas o que aconteceu? Por que acordei só agora? Quebrei alguma coisa? Por que é que não me mexo? — Calma, amanhã cedo virá o médico que te operou, e você vai saber de

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Publicado originalmente em 1982, Г© um relato verdadeiro do acidente que deixou Marcelo tetraplГ©gico, a poucos dias do Natal de 1979. Jovem paulista de classe mГ©dia alta, vida boa, muitas namoradas, estudante de Engenharia AgrГ­cola na Unicamp, ele vГЄ sua vida se transformar num pesadel
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