Felipe Amaral Borges Ketlle Duarte Paes INTRODUÇÃO1 Em Josefina, a Cantora ou O Povo dos Camundongos, Franz Kafka (1998) narra a história de uma comunidade de ratos, onde Josefina, ao exercitar seu assobiar, ao emitir seus singelos ruídos, consegue deter a audiência de toda sua comunidade. A voz de Josefina não é especial. Ela não é especial. Josefina nada representa a não ser a homogeneidade daquele povo, enquanto indivíduos singulares. São eles, pois, iguais em sua singularidade. Josefina luta para que seja dispensada do trabalho diário, em razão do seu ofício de cantora. Contudo, não obtém êxito e desaparece 1 Este texto foi escrito entre 2013 e 2014, quando estudávamos na Universidade Federal de Santa Catarina, tendo sido divulgada uma versão preliminar em seguida. Nesta versão, procuramos 6 4 manter, na medida do possível, a redação original, sem incluir desdobramentos posteriores dos 8 casos citados. Hoje, passados cinco anos dos marcantes acontecimentos de 2013, esperamos que estas a n narrativas permitam a todos alguma reflexão. i g á P FELIPE AMARAL BORGES E KETLLE DUARTE PAES narcisicamente, na expectativa de ser valorizada por sua ausência. Erro de cálculo. O povo segue tranquilo, sem desilusão aparente, “uma massa que encontra em si mesma o equilíbrio”, certos de que não perderão muito (Kafka, 1998, p. 59). O pensamento único/universalizante produz ausências e homogeneizações artificiais (Santos, 2002) a ponto de a singularidade de um sujeito desaparecer, como é o caso de Josefina, a cantora do conto de Kafka. Nesse sentido, Boaventura de Sousa Santos (2002), observa que vivemos, no presente, um tempo de ambiguidade e de transição, difícil de entender e de percorrer. Diante dessa constatação, o autor nos convida a refletir sobre novas possibilidades de sociabilidade produzidas a partir de experiências alternativas à razão indolente que emergem dos subterrâneos do pensamento hegemônico. O autor nos leva a questionar a racionalidade dominante que produz ativamente como não existentes as experiências sociais alternativas numa operação de expansão do presente e de contração do futuro, ocultando todas as temporalidades existentes e possíveis de existir. Os reflexos da razão indolente se 7 4 8 fazem sentir nas ciências sociais em geral e em suas disciplinas relativamente a n i autônomas como, por exemplo, as ciências das organizações, um campo de estudos g á P importante no âmbito desse ensaio. SERES DO SUBTERRÂNEO: OS INVISÍVEIS DO MUNDO MODERNO Nesse sentido, importa observar que, nesse ensaio, seguimos Reed (1999) para quem, o campo dos estudos organizacionais é um campo historicamente contestado. De acordo com o autor, qualquer debate teórico ou reconstrução histórica referente aos estudos organizacionais são uma interpretação controversa e contestada que como tal, sempre poderá ser refutada. Portanto, para Reed (1999), a teoria da organização é um campo de conflitos históricos em que diferentes abordagens lutam por reconhecimento e aceitação. Assim, concordamos com Reed (1999) e vamos além, deixando claro que nosso posicionamento vai em direção de que qualquer perspectiva de circunscrição, delimitação ou agrupamento exterior será sempre limitada, precária e contingente (Laclau, 2013). E, justamente, no limite, nas frestas e fissuras se posicionará o questionamento, a quebra, a ruptura. À ideia de que o intento deste trabalho seja pretensioso, oferecemos a noção de que ele é marginal. Não em oposição, pois isso, ao lado de uma sólida definição de um campo, seria uma contradição em termos da perspectiva teórica adotada. Por isso, nos posicionamos no limiar, “o lugar das mais estranhas criaturas”. A 8 4 8 fronteira, que se deve guardar e respeitar, dado o medo do que exista para além a n i dela. O limiar, contudo, é uma zona nebulosa, instável, que atrai pelo que promete g á P e onde Walter Benjamin diz que se pode praticar uma “ciência das passagens, dos FELIPE AMARAL BORGES E KETLLE DUARTE PAES limiares”. Isto é, uma ciência que abra espaço para atingirmos uma nova posição, uma mudança, uma flutuação. A fronteira é uma linha de barragem, enquanto o limiar uma linha de passagens múltiplas. A fronteira é um lugar burocrático, enquanto o limiar é um espaço em que fervilha a imaginação (Barrento, 2012, p. 47). Posicionarmos no limiar permite a entrada e a saída, entre o dentro e o fora, contrabandeando ideias daqui e dali de modo a – numa metáfora biológica – “enriquecer o material genético” deste corpo de saberes. Estamos certos de que, a isso que chamam o campo dos estudos organizacionais, podemos acrescentar uma reflexão importante sobre como as lutas subalternas, fragmentadas e que fogem à oposição clássica Capital X Trabalho estão ausentes do debate mais destacado, mesmo na crítica. Assim, lançando luz aos pontos mais recônditos do espaço social e, portanto, fazendo coro às reflexões de Boaventura de Souza Santos (ausência/emergência) bem como às de Paulo Freire (denúncia/anúncio) perguntamos: O que sabemos sobre Bradley Manning? Ou sobre Aaron Swartz? Quem foi Mohamed Bouazizi? Possivelmente muitos de nós não conheçamos estes nomes. Nada saibamos sobre o soldado americano que divulgou informações e vídeos sobre ataques a civis em 9 4 8 Bagdá e ficou em confinamento solitário por mais de dois anos sem julgamento. E, a n i o que sabemos sobre o jovem aficionado por tecnologia que salvou artigos g á P científicos de uma importante base de dados paga para distribuí-los SERES DO SUBTERRÂNEO: OS INVISÍVEIS DO MUNDO MODERNO gratuitamente? Esse jovem foi processado criminalmente e, não suportando a pressão, suicidou-se. É de se pensar, por fim, que nos seja desconhecido, também, o suicídio por imolação do vendedor de frutas da Tunísia que protestava contra a apreensão de suas mercadorias. O que estes personagens têm em comum, além do fato de que suas histórias de vida, e de morte em alguns casos, serem desconhecidas do grande público? Todos eles ousaram insurgir-se contra os modelos de dominação vigentes. Todos eles são desconhecidos, inexistentes, ausentes para o grande público. São ausentes porque produzidos como tal (Santos, 2002). São ausentes porque suas posturas confrontadoras e contestadoras são descridibilizadas e inviabilizadas pela hegemonia da razão indolente. Nem a mídia hegemônica e nem o Estado os reconhece. Há um véu que inebria a todos e impede que se vejam os elementos que colocam em risco as estruturas estabelecidas. O que propomos nas páginas a seguir é tratar das ausências produzidas (Santos, 2002), bem como dos anúncios de novas sociabilidades (Freire, 2011). Portanto, buscamos, com esse ensaio, refletir sobre a posição ocupada pelos Estudos 0 5 8 Organizacionais na (re)produção das ausências, bem como sua participação nos a n i atos de anúncio. A razão indolente produz como ausentes outras formas de g á P organização que não aquelas produtivas, burocráticas e pautadas pelo econômico. FELIPE AMARAL BORGES E KETLLE DUARTE PAES Há, portanto, que se resgatar os saberes ocultados pela hegemonia, como bem observa Scherer-Warren (2012), para quem o intelectual tem a obrigação de fazer uma análise crítica sobre o lugar de sua fala. Isso porque, para a autora, há uma memória oficial hegemônica e uma memória coletiva dos oprimidos, ou seja, há uma memória intelectual hegemônica e uma memória de saberes historicamente subalternos. O campo dos estudos organizacionais, tradicionalmente, o desenvolvimento teórico vem sendo traçado no contexto das correntes de pensamento ligadas ao positivismo e ao estruturo-funcionalismo, restringindo o pensar sobre as organizações a uma delimitação específica, qual seja as organizações pautadas pela busca da eficiência e da ordem (Parker, 2002; Paula, 2002; Bohm, 2006; Misoczky, 2010). Essa organização produtiva, burocrática e com objetivos financeiros promove a difusão massiva do discurso gerencialista por diversas esferas da vida humana associada, engendrando o que Chanlat (2000) denominou de sociedade managerial. Neste tipo de sociedade, as empresas possuem um papel central na 1 5 8 produção de discursos e princípios gerenciais, tais como eficiência, produtividade, a n i desempenho, planejamento, etc. que invadem as mais variadas realidades sociais g á P para além das organizações atuantes no mercado (Chanlat, 2000). SERES DO SUBTERRÂNEO: OS INVISÍVEIS DO MUNDO MODERNO De acordo com Bohm (2006), a noção hegemônica de organização está associada a regras formais, procedimentos técnicos, profissionalismo, burocracia e sujeitos racionais que podem ser alocados, medidos e controlados. Vista desta maneira, a organização se restringe à administração e à manutenção de um mundo hierárquico, padronizado e harmônico, sustentado pela ideologia da neutralidade da técnica, da ordem e do progresso. Bohm (2006) afirma, ainda, que o modelo tradicional de organização se caracteriza por uma noção de organização que possui estreita conexão com o gerencialismo e o capitalismo. Esta maneira racional e formal de significar a organização tem sido a ideologia predominante da teoria organizacional. (Bohm, 2006; Clegg, 1998; Parker, 2002). No entanto, nenhuma hegemonia consegue dar conta de toda a realidade social Misoczky, Flores e Silva (2008) afirmam que organizar não é sinônimo de organizar de modo burocrático ou de prática gerencial, sendo uma produção social de modos de cooperação contingente e em movimento. Os autores observam que uma das tarefas políticas mais importantes dos estudos críticos no campo disciplinar dos Estudos Organizacionais é a investigação dos processos de organização da resistência e das lutas sociais que tendem a ser ignoradas pelo 2 5 8 discurso organizacional hegemônico. a n i g á P FELIPE AMARAL BORGES E KETLLE DUARTE PAES Na visão de Bohm (2006), a resistência à hegemonia da gestão pode ser encontrada em diversos espaços: pelo trabalhador no seu local de trabalho, pelas organizações sindicais, pelos movimentos sociais e pelas organizações da sociedade civil. Bohm (2006) e Parker (2002) acreditam que os movimentos sociais são importantes espaços de resistência à globalização, ao capitalismo e à forma organizacional dominante. Misoczky (2010) defende que para se levar a cabo este desafio é preciso questionar a noção hegemônica de organização, associada à ideia de empresa e, para tanto, há de se deslocar as categorias de análise tradicionais nos estudos organizacionais como hierarquia, delegação, representação e individualismo. A autora sugere também que lancemos luz a algumas categorias e valores que vêm se tornando recorrentes na análise das organizações e apresentam-se com potencial contra-hegemônico, tais como a horizontalidade, a participação direta nas decisões, a construção coletiva da organização e de suas práticas, valores orientados para a vida, tolerância e solidariedade na relação com a alteridade. (Misoczky, 2010). 3 5 8 Assim, a importância desse ensaio insere-se na perspectiva de uma contribuição a n i teórica para as pesquisas que buscam desnaturalizar os fundamentos g á P epistemológicos da área da administração (Teixeira, Saraiva & Carrieri, 2015; SERES DO SUBTERRÂNEO: OS INVISÍVEIS DO MUNDO MODERNO Souza, Souza & Silva, 2013; Souza, 2012; 2017; Paes & Dellagnelo, 2015; Paula, 2008; 2012; Misoczky & Flores, 2009,) que veem no management a única e melhor forma de organizar (Parker, 2002) fundada nos pressupostos de eficiência e do cálculo utilitário de consequência. Assim, esse estudo pretende contribuir para a área de Estudos Organizacionais como mais uma opção não ortodoxa de análise para os fenômenos organizacionais, lançando um novo olhar para realidades ininteligíveis pela razão dominante, produzidas ativamente como não existentes, mas que se constituem em práticas sociais dotadas de uma racionalidade própria, com temporalidade própria e existentes em um espaço social mais amplo. Este texto é, portanto, um exercício de reflexão filosófica que, ao mesmo tempo em que identifica, circunda e delimita o objeto, afasta-se dele, deixa-o enevoar-se, seguindo na direção do sujeito. Este espaço de imprecisão no qual se dá um movimento de aproximação e afastamento acompanha desconstrução de centros e origens inabaláveis proposta por Jacques Derrida, permitindo que se configure, em seu lugar, a contaminação pelas margens. Uma contaminação que origina movimentos impuros, permite a penetração 4 5 8 marginal fragilizando noções tradicionais e estáveis da modernidade e se a n i distanciando da metafísica da presença. É com Derrida, em seu Margens da g á P Filosofia, que seguimos para pensar que a filosofia não basta sem a literatura. FELIPE AMARAL BORGES E KETLLE DUARTE PAES Para o autor há necessidade de lermos o texto filosófico contemplando a sua veia literária, superar os limites entre filosofia e literatura, pensar um gênero outro: Uma tarefa então é prescrita: estudar o texto filosófico na sua estrutura formal, na sua organização retórica, na sua especificidade e diversidades de seus tipos textuais, nos seus modelos de exposição e produção – para além daquilo que outrora se chamava os gêneros - no espaço também das suas encenações e numa sintaxe que não seja apenas a articulação dos seus significados, das suas referências ao ser ou à verdade, mas a ordenação de seus processos e de tudo o que aí se investiu. Em suma, considerar também a filosofia como ‘um gênero literário particular’, extraindo da reserva de uma língua, arranjando, forçando ou desviando um conjunto de recursos trópicos mais antigos do que a filosofia (Derrida, 1991, p. 334-335). Pensar os movimentos dos quais falamos sob a ótica de Paulo Freire e Boaventura de Sousa Santos, entrecruzar esta temática com a inserção da forma ensaística de redação nos Estudos Organizacionais, é fazer uma literatura menor. Trata-se da operação que Kafka executou com o alemão. A negação da escrita aos judeus de Praga faz da sua literatura algo de impossível. (Deleuze & Guattari, 2014) Como 5 5 8 ensaio, este trabalho “não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva. a n i Ele se revolta sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a g á P qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia” (Adorno, 2003, p. 25) É
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