Escritos de Direito Notarial e Direito Registal Escritos de Direito Notarial e Direito Registal 2015 Mónica Jardim Doutorada em Ciências Jurídico-Civilísticas Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Regente da disciplina de Direito das Coisas (segunda turma), de Direitos Reais II e de Direito dos Registos e de Notariado ESCRITOS DE DIREITO NOTARIAL E DIREITO REGISTAL autora Mónica Jardim editor EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. Rua Fernandes Tomás, nºs 76-80 3000-167 Coimbra Tel.: 239 851 904 · Fax: 239 851 901 www.almedina.net · [email protected] design de capa FBA. pré-impressão EDIÇÕES ALMEDINA, S.A. impressão e acabamento Maio, 2015 depósito legal Apesar do cuidado e rigor colocados na elaboração da presente obra, devem os diplomas legais dela constantes ser sempre objecto de confirmação com as publicações oficiais. Toda a reprodução desta obra, por fotocópia ou outro qualquer processo, sem prévia autorização escrita do Editor, é ilícita e passível de procedimento judicial contra o infractor. ____________________________________________________ biblioteca nacional de portugal – catalogação na publicação JARDIM, Mónica, 1970- Escritos de direito notarial e direito registal. – (Monografia) ISBN 978-972-40-6022-4 CDU 347 PREFÁCIO O livro que agora é publicado compõe-se por uma colectânea de textos que foram redigidos, entre o ano de 2002 e o de 2014, sobre temas candentes de Direito Notarial e Direito Registal e que, na sua maioria, foram apre- sentados em congressos ou conferências nacionais e internacionais. Todos os referidos textos e respectivas apresentações foram feitos no intuito de fazer a “ponte” entre o Direito das Coisas e o Direito Nota- rial e Registal. Isto porque, tendo nós um especial gosto pelo Direito das Coisas, desde muito cedo nos apercebemos de que não poderíamos, efecti- vamente, compreendê-lo se não nos empenhássemos em conhecer, pelo menos, os aspectos essenciais, mais polémicos e actuais do Direito Nota- rial e do Direito Registal (maxime o Registo Predial). Ocorre que, no ano lectivo de 2007/2008, assumimos a regência da, então, nova disciplina optativa de Direito dos Registos e do Notariado, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, e, desde essa data, nunca fizemos um manual para os alunos, além do mais, porque estive- mos a redigir a nossa dissertação de doutoramento até Fevereiro de 2012. Defendida a Tese, há cerca de dois anos, já nada justificava que os alunos de Registos e de Notariado continuassem sem um Livro que os ajudasse na compreensão e problematização das matérias leccionadas, bem como no respectivo estudo, mesmo que não fosse o manual esperado. Tal justifica a escolha dos textos que integram o presente livro – são aqueles que abordam muitos dos temas leccionados na disciplina de Direito dos Registos e do Notariado. Mas, como há data em que foram escritos não houve o intuito de os tornar parte da bibliografia obrigatória da disciplina, alguns deles repetem assuntos já anteriormente analisados. No entanto, 5 ESCRITOS DE DIREITO NOTARIAL E DIREITO REGISTAL a sua publicação, sem alterações de fundo, foi consciente: não quisemos correr o risco de perder a lógica da exposição com a eliminação de trechos de um escrito concebido como um todo coerente. Esperamos, com a presente obra poder auxiliar todos quantos lidem com o Direito das Coisas, o Direito Notarial e o Registo Predial – em Portugal, em Angola, em Cabo Verde, no Brasil, etc. –, mas, em virtude do exposto, é aos alunos da disciplina de Registos e do Notariado que a mesma é dedicada. Uma palavra especial é devida à Faculdade de Direito de Coimbra que depositou em nós grande expectactiva, ao atribuir-nos a Regência de Direi- tos de Registos e de Notariado, quatro anos e meio antes da entrega da nossa Tese de Doutoramento – incutindo-nos, assim, enorme confiança e ânimo e, correlativamente, uma enorme responsabilidade. Por fim, um agradecimento final, agora e sempre, para o Senhor Prof. Doutor Henrique Mesquita, o nosso Mestre, que foi quem, mais do que ninguém, nos incentivou a estudar e a escrever sobre estes temas. 6 A Segurança Jurídica Preventiva como Corolário da Actividade Notarial1 I. A segurança jurídica como corolário da actividade do notário latino A certeza e a segurança constituem necessidades fundamentais do indi- víduo dentro dos ordenamentos jurídicos, não só quanto à elaboração e formulação das normas que constituem o direito objectivo, mas também quanto às relações concretas e situações subjectivas de que a pessoa é titu- lar, consideradas no duplo aspecto de facto e de direito. Sem segurança não há direito nem bom nem mau. O ordenamento jurídico tem como uma das suas missões específicas combater a incerteza e a insegurança, dever que cumpre de duas formas: a posteriori, através do processo, resolvendo a incerteza actual; e a priori ou preventivamente, evitando a incerteza futura, procurando dar certeza e segurança às situações e às relações concretas intersubjectivas, criando meios e instrumentos aptos a produzir tal certeza e segurança, colocando- -os à disposição dos particulares. A actividade notarial situa-se no segundo destes planos: suposta a cer- teza do direito objectivo, a actividade notarial tende a conseguir preven- tivamente a certeza da sua aplicação às relações e situações jurídicas e aos direitos. Prevenir e evitar conflitos é consequência ou resultado normal da intervenção notarial. 1 Texto que serviu de base à intervenção feita na Conferência “O Notariado em Portugal, na Europa e no Mundo”, em 8 de Abril de 2003, em Lisboa. 7 ESCRITOS DE DIREITO NOTARIAL E DIREITO REGISTAL Antes de fundamentarmos esta afirmação, cumpre fazer uma preci- são, que é esta: O sistema latino de notariado é o único que realmente realiza a pre- venção de litígios, ou seja, é o único que gera uma segurança jurídica pre- ventiva ao lado da segurança correctiva, reparadora ou a posteriori, que decorre da decisão judicial. Tal segurança preventiva não existe nos países anglo-saxónicos, nos quais a função notarial, na limitada medida em que existe, é externa, pos- terior e sobreposta ao documento. Aí o notário é estranho ao conteúdo do documento e a fé pública ou autenticidade não atinge esse conteúdo. Vejamos com mais pormenor: O sistema anglo-saxónico baseia-se numa técnica jurídica específica e numa visão própria das fontes de direito. Tem na base o costume comum a todos os cidadãos (common law). Costume comum que é revelado e apli- cado pela jurisprudência, que ocupa um lugar predominante na criação do direito. As decisões judiciais constituem aí a base de toda a ordem jurí- dica. O precedente fixado pelos tribunais superiores é vinculativo para os juizes inferiores. As leis têm uma função auxiliar, complementar e esclarecedora do sis- tema do direito comum. Da relevância da jurisprudência e do precedente judiciário como fonte de direito, características deste sistema, resulta a importância da equi- dade, a predominância da prova oral sobre a escrita e a não distinção entre direito público e privado. No mundo anglo-saxónico os notários (exceptuados os scriveners notaries, notários de Londres) limitam-se a identificar os subscritores do documento, a reconhecer a sua assinatura, a colocar o respectivo selo e assinatura no documento como garantia da não alteração deste ou, quanto muito, a reco- lher a declaração das partes segundo a qual o conteúdo do documento corresponde à vontade das mesmas. O notário anglo-saxão não assessora os particulares na preparação e celebração dos seus actos e contratos. Não recebe, não interpreta, nem dá forma legal à vontade dos particulares. Tão pouco qualifica essa vontade ou se preocupa que para a formulação da mesma concorram os requisitos que a tornam conforme à lei. Consequentemente, neste sistema, desconhece-se o documento autên- tico, a sua eficácia de fé pública e a figura do notário como autor desta. 8 A SEGURANÇA JURÍDICA PREVENTIVA COMO COROLÁRIO DA ACTIVIDADE NOTARIAL Ao invés, o notário latino é o profissional de direito encarregado de receber, interpretar e dar forma legal à vontade das partes, redigindo os instrumentos adequados a esse fim e conferindo-lhes autenticidade. O notário é um jurista ao serviço das relações jurídico privadas mas ao mesmo tempo é um oficial público que recebe uma delegação da autori- dade pública para redigir documentos autênticos dotados de fé pública. E, como tal, está submetido ao controlo do Estado que é quem confere o título de Notário ou a investidura notarial. Nos países do sistema latino, a lei atribui ao documento notarial um especial grau de eficácia que contrasta com a que atribui ao documento particular. De facto, o documento notarial tem o carácter de documento público e autêntico, goza da eficácia especial como meio de prova e tem força executiva. E isto é assim, porque a lei considera que o documento notarial é obra de um técnico de Direito, que contribui de uma maneira imediata e decisiva, mediante a assessoria ou conselho, para que a vontade das partes, vertida no documento, satisfaça as condições necessárias para a produção dos efeitos previstos na lei e pretendidos pelos particulares. O notário exerce, a par da função estritamente documental, uma fun- ção jurídica que corresponde, além de outras tarefas, à adaptação, adequa- ção ou conformação da vontade dos particulares ao ordenamento jurídico. Porque assim é, no sistema notarial latino, a segurança preventiva é uma consequência manifesta da actividade do notário. A segurança que o notário (latino) proporciona é, antes de tudo, uma segurança documental, derivada da eficácia do instrumento público, dotado de autenticidade, eficácia essa que se expande pelo tráfico jurídico, pelo processo e em variadas outras direcções (eficácia probatória, execu- tiva, registal, legitimadora, etc.). Mas a importância desta segurança formal não pode fazer esquecer que antes dela há uma outra – a segurança substancial – que requer que o acto ou contrato documentado seja válido e eficaz, segundo as prescrições do ordenamento jurídico. O instrumento público só pode ter por conteúdo um negócio válido. A função do notário não consiste em dar fé a tudo o que veja ou oiça, seja válido ou nulo, mas em dar fé conforme à lei. Existe, portanto, um controle da legalidade do negócio, cabendo ao notário detec- tar: incapacidades, erros de direito ou de facto, coacções encobertas, frau- des à lei, e, eventualmente, reservas mentais e simulações, absolutas ou relativas. 9 ESCRITOS DE DIREITO NOTARIAL E DIREITO REGISTAL Assim, através da redacção e autorização de documentos válidos e conformes à lei, pelo seu conteúdo, e eficazes e executórios pela sua forma, os notários facilitam, encurtam ou tornam desnecessária a intervenção dos tribunais. Mas, quem recorre ao notário latino não busca um documento em si e por si, nem busca apenas uma prova pré-constituída, por mais valiosa que ela seja, nem visa evitar um conflito que nem imagina que pode vir a ocor- rer. O que visa é o resultado querido, para cuja perfeição jurídica recorre ao notário. Quem compra um imóvel quer ser proprietário livre de ónus e encargos, com a contribuição predial em dia, sem ocupantes que pertur- bem a sua posse, sem antecedentes registais que o possam ameaçar, numa palavra, interessa-lhe o resultado que se propõe obter, por isso recorre ao notário, pessoa tecnicamente habilitada, imparcial e responsável. Quando as partes celebram o contrato não visam pré-constituir uma prova que as favoreça num próximo litígio a propósito do mesmo, visam apenas a rea- lização dos seus desejos. De nada servirá aos particulares terem um documento comprovativo da celebração de um acto ou contrato e da sua conformidade à lei, se com ele não puderem atingir os fins práticos por eles pretendidos. Por isso, o cabal exercício da função notarial no sistema latino supõe, perante o requerimento dos interessados, desde logo, a indagação sobre o que as partes efectivamente pretendem (o que exige que se escute aten- tamente e se tente obter através de perguntas adequadas, a maior quanti- dade possível de informação). Uma vez determinados, claramente, os propósitos dos requerentes, o notário deve informá-los do enquadramento legal, do alcance dos seus direitos e obrigações, das consequências – não só jurídicas, mas também, muitas vezes, económicas, familiares, patrimoniais e sociais. O notário deve sugerir opções e dar o seu conselho, indicando aquela que considera que melhor se harmoniza com os interesses revelados. Tal como é impor- tante que o notário entenda cabalmente a vontade dos outorgantes (pois há-de respeitar a autonomia e o poder normativo e decisório das partes), também é necessário que o notário fique certo de que as partes compre- enderam o alcance jurídico do negócio que pretendem. A ideia de que toda a gente sabe o que quer, e que só ignora os procedimentos técnicos jurídicos mais adequados para o conseguir, nem sempre é verdadeira, ou mais rigorosamente, é amiúde falsa. A vontade que os outorgantes afirmam 10