18 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCIPLINAR HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2002. 2. Populismo e emancipações: a KLIMKE, Federico. História de la Filosofia. Barcelona: Ed. Labor, 1947. política radical hoje, uma aproximação LACLAU, Ernesto; MOUFFE, Chantal. Hegemony and socialist strategy. Toward a radical democratic politics. London: Verso, 1985. (com variações) ao pensamento de ___. Hegemonia e estratégia socialista: por uma política democrática Ernesto Laclau1 radical. São Paulo: Intermeias, 2015. MENDONÇA, Daniel de; RODRIGUES, Léo P. Do estruturalismo Paula Biglieri ao pós-estruturalismo: entre fundamentar e desfundamentar. ln: MEN DONÇA, Daniel de; RODRIGUES, Léo P. (Orgs.). Pós-estruturalismo ~\C>.,~ e teoria do discurso: em torno de Ernesto Laclau. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014. pp. 27-45. 2.1 INTRODUÇÃO \~ , . ..... , / ,,\Qr\) -,\ ~"'3- ___ (Orgs.). Pós-estruturalismo e teoria do discurso: em torno de Ernesto , \ M\. 1W Laclau. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014. Há dois elementos que podem ser destacados coxbo distintivos da MERQUIOR, Guilherme. Michel Foucault ou o niilismo de cátedra. Rio de proposta política de Ernesto Laclau. Um deles é sua ideia de política radical como o "fim da emancipação" (1996, p. 38), o qual abre a possibilidade para Janeiro: Nova Fronteira, 1985. emancipações no plural. O outro é sua noção de populismo. O primeiro NIETZSCHE, Friedrich. Sobre a verdade e mentira no sentido extra vem, tal como sabemos, do coração da tradição pós-marxista que ele moral. ln: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. pp. 43-52. mesmo iniciou junto com Chantal Mouffe com a publicação do texto - já __. Além do bem e do mal São Paulo: Escala, 1992. clássico - de 1985 Hegemonía y estrategia socialista. Haâa una radicalización de la democracia. Ou seja, a ideia de emancipações é o resultado da desconstrução da teoria marxista e da elaboração da teoria da hegemonia e do antagonismo. O segundo é proveniente de sua experiência política pessoal, isto é, de seus primeiros anos como militante na Argentina. E, claro, além disso é o resultado de uma construção teórica de grande fôlego que foi tomando elementos diversos, sobretudo da desconstrução e da psicanálise lacaniana, que se expressa funda~entalmente nq texto de ~05, . \. La razón populista. t1.1'\\}~ ~~~\e- ·. IM~~~ +. \>~~ Contudo, esta questão parecia, à primeir&v iJt}, encerrar um escândalo,~~~" pois muito frequentemente a palavra populismo é rapidamente associada ao autoritarismo, à demagogia e ao fascismo. Assim, a pergunta teórica que der~va é:/.omo é possível asso~i~ esses do~s ele~entos_ (e~a~c~p/ ções e populismo) no mesmo marco teonco sem cair em mcons1stenciasf 1. Tradução de Bruno Mello Souza. Revisão técnica de Daniel de Mendonça. 20 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCIPLINAR DANIEL DE MENDONÇAjLÉO PEIXOTO RODRIGUESjBIANCA LINHARES (ORGS.) 21 ~~~ ~~~~~~ Para Laclau, combinar esses elementos não só não encerra qualquer Onde tudo começou. Em meados ôa écada de 1950, Laclau ingressou escândalo (podem enlaçar-se em uma proposta teórica sem cair em na Faculdade de Filosofia e Letras (FFyL) da Universidade de Buenos inconsistências), mas, indo além, podemos sustentar que redobra a aposta, Aires (UBA). Lá, em 1954, começou a cursar a Licenciatura em Filosofia, e dizer que tais elementos não podem ser pensados um sem o outro. Mais embora três anos mais tarde tenha se direcionado para a História, cuja ainda, podemos afumar que o populismo é a forma de uma possível política licenciatura finalizou em 1964. radical hoje. Na FFyL, dedicou-se a duas atividades: a acadêmica e a militância Com o objetivo de desenvolver tais argumentos ao longo do texto, política, que se apresentaram como dois lados de uma mesma moeda. A será apresentada, em primeiro lugar, uma breve referência biográfica academia fomentava seu posicionamento político e a participação política de Laclau em relação a sua militância política, para passar, em segundo impulsionava a argumentação acadêmica. Para um militante de esquerda, lugar, aos argumentos gerais que levaram Laclau e Mouffe a radicalizar as inquieto pelos movimentos populares argentinos, não eram facilmente propostas de Antonio Gramsci e Louis Althusser - que desembocaram na aceitáveis as explicações lineares através da categoria nodal marxista de modo ruptura pós-marxista - e, em terceiro lugar, à elaboração teórica de Laclau de produção. Por isso, já desde o início, transitou por um caminho que o levou sobre populismo em relação à noção de emancipações. Em relação a este paulatinamente a focar seu olhar acadêmico no que, em termos marxistas, último ponto serão formuladas algumas variações a respeito da categoria poderíamos denominar como superestrutura, e sua' complexa interconexão "demanda".2 com a estrutura. Não é estranho, portanto, ue os autores que mais impactaram o estudante de licenciatura tenham sid Gramsci thusser. Em termos gerais, podemos dizer que a interpretação do peronismo 2.2 por parte da esquerda se dividia, por um lado, entre aqueles que o POPULISMO E EMANCIPAÇÕES pensavam como um desvio, uma anomalia, e o produto do engano ~'b, Pouco antes de completar 10 anos de idade, em 19 de setembro de demagógico de um líder autoritário, enquanto, por outro lado, estavam 1945, houve uma ampla marcha antiperonista, ou seja, absolutamente aqueles que o consideravam uma via efetiva de democratização social ,:,~\~ gorila, a Marcha da Constituição e da Liberdade. Eu a estava assistindo na Argentina, uma genuína expressão dos setores mais vulneráveis, em '1~\lA. da varanda da casa de uma tia na avenida Corrientes entre Riobamba suma, uma expressão que correspondia à peculiaridade nacional e popular. ~~ e a avenida Callao. De repente, não sei por quê, me veio à Dos primeiros, surgiu a esquerda antiperonista; dos segundos, a esquerda . ,,._\ cabeça e gritei: "Viva Yrigoyen". Esse grito, "viva Yrigoyen", nacional. Laclau se deslocou muito rapidamente da primeira postura ,~ ~•, creio que me transformou em um populista à segunda. A transição concomitante cons1stm em um deslocamento (Ernesto Laclau, comunicação pessoal, 7/ 6/2009).3 de estudar a tradição marxista - digamos, "pura e dura" - a colocar-se o problema que os movimentos populares suscitavam a esta tradição ao não 2. Demanda é uma categoria central à compreensão da lógica populista desenvolvida pelo poderem ser claramente encaixados na categoria de classe social. Essas autor em La razón populista (Laclau, 2005). Nota do revisor. precoces inquietudes do Laclau estudante e militante, de alguma maneira 3. A Marcha da Co11stit11ição e da Liberdade foi uma grande concentração que convocou desde conservadores até comunistas sob as demandas de defesa das instituições da democracia representativa e da oposição às políticas levadas adiante até então pelo coronel Perón, da utilizado popularmente para designar os detratores do peronismo. Na atualidade, adquiriu Secretaria de Trabalho e Previdência. Poucas semanas mais tarde, em 17 de outubro de um sentido mais amplo, referindo-se ao desprezo pelo popular, inclusive com certa carga 1945, ocorreu uma inusitada mobilização popular que reuniu os setores menos privilegiados, racista, tanto de direita como de esquerda. Sua origem se associa a uma espécie de bordão desde a periferia até o centro da cidade de Buenos Aires, demandando a liberdade de empregado em 1955 num programa humorístico de rádio que parodiava o filme Mogambo, Perón - que havia sido destituído de seu cargo e preso. Perón foi libertado e, no início em evidência naquele momento. "Devem ser os gorilas, devem ser' era a expressão utilizada de 1946, elegeu-se presidente da nação. Desde então, o 17 de outubro é lembrado pelos pelo protagonista do quadro cada vez que os personagens se viam surpreendidos por algum peronistas como o dia da lealdade. Por sua vez, a respeito da expressão gorila, cabe dizer ruído estranho, e essa era a frase que circulava em torno dos acontecimentos que levaram à que a mesma tem uma longa tradição no léxico político argentino. Gorila é o termo que foi derrubada do presidente Perón. 22 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCJPLINAR DANIEL DE MENDONÇAjLÉO PEIXOTO RODRIGUESjBIANCA LINHARES (ORGS.) 23 já presentes nos acalorados debates que travava no periódico Lucha Obrera, palavras, postulava-se um privilégio do princípio de pertencimento de anos mais tarde desembocariam na extraordinária leitura e radicalização de classe: as classes sociais podiam possuir uma série de traços diversos que Gramsci e Althusser que realizaria junto com Mouffe,já como acadêmico formavam sua realidade social, mas todas essas características remetiam a na Inglaterra.4 um traço fundamental que definia sua~~ m função da localização Para além de Gramsd e Althusser: pós-marxismo. Laclau e Mouffe nas relações de produção que determinava suas tarefas de classe. recolheram o marxismo no ponto onde Gramsci e Althusser o haviam Entretanto, esse esquema de correspondência entre classe social deixado, para radicalizar seus argumentos e deslocar-se a outro terreno e tarefas atribuídas foi posto sob suspeita pelas características que - o discursivo - dando início ao pós-marxismo. De Gramsci tomaram o apresentavam as lutas políticas na Alemanha e na Rússia. Recordemos questionamento de suas bases fundamentais. É bem sabido que o ponto de as discussões entre Marx e Lasalle, ou os debates entre os bolcheviques partida do marxismo encontra-se nos pressupostos de que, por um lado, e os mencheviques.5 Em todo caso, dava-se a situação de que era a outra todo sujeito político é um sujeito de classes (o qual, para poder determinar classe social (o proletariado) que se deviam encarregar as tarefas que rJ~ sua identidade, em primeiro lugar é necessário estabelecer a que classe correspondiam à burguesia (a revolução democrático-burguesa). Contudo, J social pertence) e, por outro lado, que a história é um processo de nenhuma das posições do debate político punha em questão a natureza ~ -l progressivo desenvolvimento das forças produtivas às quais correspondem socialista da tarefa da classe operária, tampouco a natureza burguesa da ,~\X,) L determinadas relações de produção. Localizada aqui a infraestrutura da tarefa democrática. história, as posições nas relações de produção eram consideradas como Nesse ponto, as perguntas que se fazia Gramsci e que foram aquilo que definia as características internas dos agentes sociais, vale dizer, retomadas por Laclau e Mouffe eram: até que ponto a classe trabalhadora os lugares ocupados dentro do sistema de relações de produção eram o modificava sua própria natureza pelo fato de estar levando adiante uma que Marx denominou tlasses ~ Em todo caso, desde o marxismo tarefa democrático-burguesa? E até que ponto as tarefas democrático clássico, para compreender algo da sociedade - desde a arte até qualquer burguesas mudavam de natureza pelo fato de serem levadas adiante comportamento social - a primeira coisa que se deveria determinar era o pelos trabalhadores em vez da burguesia? Ou seja, até que ponto há um pertencimento de classe dessa forma de expressão. 5. Por exemplo, na Alemanha a "anomalia" radicava em que o processo de unificação nacional Um terceiro pressuposto consistia em que a cada classe social seria havia sido produto da tarefa realizada por um grupo substituto da burguesia, os junkers atribuída uma série de tarefas históricas. Assim, nos países onde ainda da Prússia (os grandes donos de terras que sob o regime semiautoritário de Bismarck prevaleciam o absolutismo e o feudalismo, a tarefa fundamental consistia começaram a desenvolver a indústria). Seguindo o modelo típico de correspondência de em levar adiante a revolução democrático-burguesa, e esta era justamente a tarefas,deveria ter sido a burguesia renana a impulsionadora do desenvolvimento capitalista. Neste aspecto, radicava a disputa entre Marx e Lasalle: o primeiro defendia a aliança do tarefa histórica atribuída à burguesia como classe social ascendente frente proletariado com a burguesia liberal da Alemanha do oeste, enquanto o segundo defendia ao antigo regime. A tarefa da classe operária resultava então em acompanhar a aliança com os junkers prussianos. Enquanto isso, no regime absolutista da Rússia, a o desenvolvimento do progresso da história e apoiar a burguesia em sua "anomalia" era que sua entrada no mundo capitalista se baseava no Estado, no aparelho militar e em certos investimentos estrangeiros (especialmente de origem francesa), além de luta contra o absolutismo e os vícios feudais, até que surgisse o capitalismo ocorrer com certo atraso em relação às outras nações da Europa. O resultado aparelhado e posteriormente se abrisse o tempo da luta pelo socialismo. Em outras era uma burguesia fraca - incapaz de levar adiante a tarefa democrática que supostamente lhe correspondia - e uma incipiente e bastante estendida classe trabalhadora. Frente a essa situação desviada, a fórmula bolchevique era que a tarefa democrática burguesa deveria ser 4. Lucha Obrera era o periódico semanal do Partido Socialista de la Izquierda Nacional (PSIN) levada adiante pela classe trabalhadora em aliança com o campesina to pobre. Em 1917, com no qual Laclau militou durante cinco anos. Nele publicou artigos em nome próprio, outros as Teses de Abril, Lenin aproxima suas posições às de Trotsky e sustenta que a realização das de maneira anônima e vários mais sob o pseudônimo de Sebastián Ferrer. Laclau se viu tarefas democrático-burguesas deveria se enlaçar com as tarefas socialistas. Enquanto isso, obrigado a adotar um pseudônimo, uma vez que, naquele momento, as atividades políticas a fórmula menchevique sustentava que o processo russo deveria ser igual ao do Ocidente, eram incompatíveis com o cânone do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y ou seja, a social-democracia deveria aliar-se com a burguesia e aceitar sua liderança na luta Técnicas (CONICET), do qual era bolsista. democrática contra o absolutismo, na medida em que essa era a tarefa histórica designada. 24 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCJPLINAR DANIEL DE MENDONÇA,LÉO PEIXOTO RODRIGUESIBIANCA LINHARES (ORGS.) 25 contaminação mútua entre a classe social e a tarefa que se supõe que deve medida que o social não tem essência - ou seja, à medida que 'a sociedade' levar a cabo? Desse modo, mudaria a classe trabalhadora sua identidade é impossível" (Laclau e Mouffe, 1985, p.156). ~~ como resultado de levar adiante tarefas democráticas? As tarefas Em segundo lugar, ao propor compreender a ordem social como um Ji.i!;,'-'t. democráticas seriam transformadas pelo fato de serem levadas adiante pela espaço discursivo, colocaram ~ no coração de seu trabalho, já que ~~ classe trabalhadora no lugar da burguesia? Ou melhor colocado em termos sua concepção de estruturação do social corresponde a um modelo retórico. ~\\ desconstrutivos: o suplemento da identidade da classe trabalhadora eram Daí a afirmação de que: "Sinonímia, metonímia e metáfora não são I\...~ \~~ as tarefas democráticas, mas se as tarefas democráticas são aquilo que fixa o formas de pensamento que aportam um sentido segundo uma literalidade ~íl-tipo de intervenção que a classe trabalhadora terá, nesse caso, o suplemento primária, através das quais as relações sociais se constituiriam, mas sim que ~~ não se torna tão importante quanto o núcleo de classe? Está claro que esse são parte do próprio terreno primário de constituição do social" (Laclau era o limite dos bolcheviques: aceitavam que a classe trabalhadora deveria e Mouffe, 1985, p. 150). Assim, partiram da premissa de que o campo ~t,~ ~ ~~ liderar as tarefas democráticas, mas a natureza democrático-burguesa dos discursivo se sobrepõe ao campo das relações sociais e que essas são tais ~ ~ itos trabalhos nunca fora questionada. Portanto, havia uma distinção porque têm e produzem sentido. ·~ clara entre tarefa e classe social, recordemos a título de exemplo o lema de Em terceiro lugar, ao aceitar a0rn ossibilidade da sociedade ":ambém Lenin: "golpear juntos e marchar separados". admitiram a impossibilidade de que toda ordem possa se constituir como Gramsci6 desestabilizou a distinção taxativa entre classe social e uma totalidade coerentemente unificada. Ou seja, a hegemonia pressupõe tarefas e colocou no centro da cena o conceito d hegemonia minando uma representação constitutivamente distorcida ou opaca, já que sempre ~~ com ele as bases fundamentais do marxismo. Basicamente, seu argumento haverá um antagonismo persistindo, que fecha a possibilidade de que tal sustentava que os agentes sociais não eram classes sociais no sentido representação seja total e transparente consigo mesma. clássico do marxismo, mas sim vontades coletivas. E essas eram, por sua E, em quarto lugar, se estamos no terreno primário da dispersão vez, o resultado de um processo por meio do qual um determinado agente discursiva, o que temos desde o início é o puro jogo das diferenças, isto social conseguia articular uma série de elementos diversos que não tinham é, a contingência mais radical. Ou seja, as condições de existência de uma necessariamente um pertencimento de classe definitivo. Tal processo de ordem sempre são contingentes, porque o que existe não é produto de uma agregação de diferentes elementos por parte de distintos agentes sociais era objetividade fundante naturalmente dada, mas sim, pelo contrário, possui o que denominava hegemonia. Em todo caso;Para Grpnsci não existiam um caráter radicalmente histórico. ~ tarefas designadas para uma determinada classe social! Dessa forma, a "objetividade" que existe é, em todo caso, efeito de um h.t:i~/ Nesse ponto, é precisamente onde Laclau e Mouffe tomaram o ato de poder, no sentido de que é produto da sobredeterminação de certos \~~,,.. marxismo de Gramsci para radicalizar a sua proposta. Em primeiro lugar, elementos discursivos que imprimem uma atenção - sempre precária - ao \\ deslocaram a hegemonia da tipologia marxista clássica (base material jogo das diferenças. Tal fixação precária é o que Laclau e Mouffe virão superestrutura) para o plano do discurso. Mais precisamente, para a a denominar hegemonia. Disso se depreende que, por definição, toda dispersão discursiva, porque é nela justamente onde a hegemonia relaciona ordem é sempre, enquanto tal, hegemônica. E hegemônico para os autores (articula) diversos elementos para criar uma ordem onde não há; com significará umá ordem suturada:)ou seja, não plena. Toda universalidade, isso, temos que toda ordem (d igamos, para nossos fins, a social) é sempre, nesta perspectiva, sempre é hegemônica e, assim, sempre será frustrada. por definição, hegemônica. Disseram então que: "o social é articulação à 6. A obra de Gramsci começou a ser conhecida a partir de 1947 (Gramsci havia morrido A noção de sutura é tomada de Miller, e é usada para designar a produção do sujeito em 1937) quando surgem à luz suas cartas escritas na prisão, dirigidas basicamente à sobre a base da cadeia de seu discurso; ou seja, da não correspondência entre o sujeito e o sua cunhada, Tatiana Schucht, nas quais comunica suas e.xperiências, suas leituras e sua simbólico, que impede o fechamento deste último como presença plena. Ver Jacques-Alain proposta de trabalho. Em 1947, aparece Cartas de la cárcel e, em 1949, Cuademos de la cárcel. Miller (I 966). 26 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCIPLINAR DANIEL DE MENDONÇA,LÉO PEIXOTO RODRIGUES,BIANCA LINHARES (ORGS.) 27 Entretanto, nesse ponto encontramos que também se apresenta simbólica e, portanto, carece de um princípio fundador, reinseriu, sem manifesta a influência de@tuss§ Porque é graças a ela, em relação com perceber, uma renovada forma de essencialismo ao afirmar a existência a noção de hegemonia, que aclau e Mouffe introduziram o conceito de de uma sobredeterminação em última instância por parte da economia. rCTõf,redeterminaçã~ Este cuidado - sempre precário - do deslizamento Esta última afirmação resultou inaceitável para Laclau e Mouffe, já que significante tem lugar à medida que um significante tenha sido estaríamos voltando, de alguma maneira, ao par binário essência-acidente, sobredeterminado. Esse significante, ou elemento particular que assume mas desta vez sob um formato marxista: base material-superestrutura, na a representação de uma totalidade que é completamente incomensurável qual as relações de produção (q ue se localizam na base material) têm a a respeito de si mesma (daí a constitutiva distorção da representação), última palavra. Mais ainda, toda a complexidade que implicava a ideia da é o ~ cante vazio--;!) Esta é sua função: hegemonizar, assumir tal sobredeterminação ficou apagada por uma canetada: representação, porque ficou sobredeterminado ao ter condensado a maior quantidade de cadeias associativas de elementos. Daí que, para Laclau, [ ...] se a economia é um objeto que pode determinar em última instância a relação sinóptica (a parte que representa o todo) seja algo inerente à todo tipo de sociedade, isto significa que, ao menos no que se refere a essa própria função hegemônica. A hegemonia é uma operação retórica na instância, nos confrontamos com uma determinação simples e não com qual um elemento s.obredeterminado vem a metaforizar uma série de uma sobredeterminação. E se a sociedade tem uma última instância que elementos, interrompendo o deslizamento metonímico que pressupõe a determina suas leis de movimento, segue-se que as relações entre as instâncias lógica da diferença. 9 sobredeterminadas e a última instância que opera segundo uma determinação Mas se Laclau e Mouffe tomam o conceito de sobredeterminação simples e unidirecional devem ser concebidas em termos desta última (Laclau pela via de Althusser, também o fazem para justificar por que se deve e Mouffe, 1985, p. 136). ir para além da proposta desse autor, porque Althusser, ao defender a ideia de sobredeterminação em última instância por parte da economia, Recordemos iiue Althusser havia tomado este conceito emprestado reintroduziu acidentalmente o determinismo simplista de um plano sobre de (S1_gmund Freud) para reler Marx e questionar a interpretação outro que tentava justamente deixar para trás. Na verdade, se Althusser simplista que a vulgata marxista fazia da relação entre a base material e havia sustentado que não há nada no social que não esteja sobredeterminado a superestrutura e, por consequência, a correspondência entre uma classe como forma de expressar que a ordem social se corresponde com a ordem social e determinadas tarefas. Ou seja, para Althusser, a contradição geral (entre forças produtivas e relações de produção) que se encontra na base 8. Na terminologia de Jacques Lacan, trata-se do point de capiton, ou ponto nodal. material, não bastava para explicar o processo histórico. Em todo caso, 9. Uma articulação hegemônica pressupõe o funcionamento de duas lógicas que se opõem para que a contradição geral se ativasse e convertesse naquilo que permite e que operam em seu terreno: a lógica da equivalência e a lógica da diferença (Freud denominou essas lógicas como condensação e deslocamento, Lacan como metáfora e habilitar a ruptura revolucionária, era necessário que esta estivesse metonímia, da linguística paradigma - substituição - e sintagma - combinação -, e da sobredeterminada por uma série de contradições que tinham lugar no música, harmonia e melodia.) As cadeias de equivalências articulam-se, não porque suas plano da superestrutura. Assim, para Althusser, com Marx o que tínhamos particularidades tenham um objetivo em comum, pois os elementos implicados se definem era a complexidade de uma contradição geral sempre sobredeterminada, negativamente, como diferenças. Seus interesses particulares são bastante diversos, contudo suas reivindicações são equivalentes entre si a respeito de um elemento excluído. Ou seja, embora finalmente fosse sustentar que a economia determinava em última J' a lógica da diferença se interrompe pela lógica da equivalência, enquanto os elementos instância. W,/ são equivalentes entre si a respeito de um excluído. Essa cadeia de equivalências se unifica ~ Em todo caso, para Laclau e Mouffe, toda a complexidade da em um significante ou elemento que as represente, que não é outro mais que uma dessas particularidades que assume a representação da totalidade, à medida que se esvazia de sobredeterminação colocada por Althusser ficava nula ao reduzi-la a uma \\~ seus traços particulares. Essa particularidade que hegemoniza, funciona como significante última instância. Por isso, retomaram a noção de sobredeterminação, mas l'\t vazio, tão mais vazio quanto mais elementos entrem em equivalência na cadeia referente ao por meio de um retorno a Freud, na medida em que, para este autor, a elemento excluído. 28 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCIPLINAR DANIEL DE MENDONÇAILÉO PEIXOTO RODRIGUESjBIANCA UNHARES (ORGS.) 29 possibilidade de um último fundamento fica definitivamente eliminada.10 da construção de um inimigo, já pressupõe um momento de construção Assim, indo além de Gramsci e de Althusser, com Laclau e Mouffe temos discursiva do deslocamento, que permite dominá-la, de alguma maneira, a hegemonia no campo discursivo e a sobredeterminação sem última em um sistema conceituai que está na base de certa experiência ... " (1997, p. instância. 126). Segundo, ele o fez com a introdução do conceito de heterogeneidade Populismo sem pedido de desculpas. A política radical hoje. Uma vez que social (2005). O heterogêneo foi definido como aquilo que não se inscreve, tenhamos aceito a impossibilidade da plenitude do social, imediatamente um tipo de exclusão mais radical que a inerente à exclusão antagônica: também fica de lado a noção da emancipação como una, dada de maneira completa de uma vez e de modo definitivo.11 Já em Hegemonía y estrategia [ ... ]enquanto que o antagonismo ainda pressupõe alguma classe de inscrição socialista, Laclau e Mouffe nos advertiram que tal impossibilidade resulta discursiva, o tipo de exterioridade a que estamos nos referindo agora do caráter irredutível e constitutivo do antagonismo, o qual definiram pressupõe não somente uma exterioridade a algo dentro de um espaço de como "o limite de toda objetividade" e como "a presença do outro que me representação, mas com relação ao espaço de representação como tal. Este tipo impede de ser eu mesmo". Entretanto,Laclau foi arredondando a metáfora de exterioridade é o que denominamos heterogeneidade social (2005, p. 176). pós-fundacional da impossibilidade da sociedade com a introdução de novos elementos em sua obra. Primeiro, com a incorporação da noção de A heterogeneidade habita o campo discursivo,atravessa toda identidade, deslocamento (1990), ou seja, a ideia de uma fenda estrutural que estabelece todo elemento, demanda etc. Atravessa o campo de representação como que toda estrutura desde o início já está deslocada. O deslocamento foi tal, limitando-o.12 apresentado então como o lugar do sujeito, para defini-lo como a "forma Mas em todo caso, a impossibilidade da sociedade nos leva a falar pura do deslocamento da estrutura, de sua inerradicável distância a respeito no plural: emancipações. Sua proposta, assim, foi passar a pensá-las de si mesma"(1990,p. 76). O antagonismo foi então uma forma de trabalhar constitutivamente ligadas ao político. E é aqui que emancipações e com o deslocamento. Nas palavras do próprio Laclau: ''A ideia de construir, populismo começaram a entrelaçar seu vínculo. de viver essa experiência do deslocamento como antagônica, sobre a base As lutas políticas são sempre lutas hegemônicas. Trata-se de articular elementos e estabelecer um certo horizonte simbólico-imaginário. Frente 10. Qyando Freud apresentou o conceito de sobredeterminação, inverteu o par binário vigilia à irredutibilidade da heterogeneidade, articula-se a hegemonia, esse sonho, aquele no qual Descartes havia estabelecido uma primazia da vigília - e, com isso, momento do político que não a cancela, mas que faz uma tentativa de da razão - e descartado o sonho à categoria de mero aspecto residual. Propôs então uma hermenêutica sem um fundamento último a partir de uma topologia de dois níveis: o representação. Nesse sentido, a articulação de uma hegemonia é um ato de conteúdo manifesto (o texto que recorda o sonhador quando desperta, cuja característica poder, mas não no sentido de uma vontade que decide caprichosamente, principal é a de ser breve, pobre e lacônico) e o conteúdo latente (pensamento do sonho mas sim no sentido de que suturar uma ordem (representar aquilo que ou pensamento onírico cuja característica principal é a de ser rico, variado e extenso). O trabalho do sonho consistiu, pois, em transferir os conteúdos latentes aos conteúdos é irrepresentável) presume sempre a exclusão de outras possibilidades manifestos, vale dizer, em transferir elementos de um texto a outro (do texto do sonho também abertas. ao texto consciente). Todavia, o que sucedeu para que de um texto rico, variado e extenso No entanto, Laclau em 2005, no seu texto La razón populista, passemos a outro breve, pobre e lacônico? Sucedeu,justamente, o trabalho do sonho - que é o inconsciente - que traduz um texto a outro por meio dos mecanismos de condensação apresentará o populismo como uma forma da política hegemônica. E será e deslocamento. Nas palavras de Freud: "O fato que está na base dessa explicação pode ser esta sua forma dileta da política por duas razões. Em primeiro lugar, porque expresso também de outra maneira dizendo: cada um dos elementos do conteúdo do sonho o populismo é uma dimensão inerradicável da política. E, em segundo (ou seja, do texto que recordamos) aparece como sobredeterminado, como sendo o sub rogado de múltiplos pensamentos oníricos" (Freud, 1900/1998, p. 291). lugar, porque é a forma da política radical hoje. 11. Em um artigo intitulado "Más aliá de la emancipación", publicado em espanhol pela primeira vez em uma compilação de 1996, Laclau esmiúça esta ideia de emancipação para mostrar as incompatibilidades que existem entre as dimensões básicas que tradicionalmente 12. Para um tratamento detalhado das noções de antagonismo, deslocamento e heterogeneidade, implicou. ver Biglieri e Perelló (2011). 30 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDJSCIPLINAR DANIEL DE MENDONÇAILÉo PEIXOTO RODRIGUESIBIANCA LINHAREs (oRGs.) 31 01ranto ao primeiro aspecto,gostaria de mencionar minha discordância O povo é, além disso, expressão da imposibilidade de plenitude com alguns autores que repreendem Laclau por ter confundido ou tornado da sociedade. Se a sociedade pudesse fechar-se como uma ordem intercambiáveis o conceito de política com o de populismo, já que, para coerentemente unificada, cancelar-se-ia toda possibilidade de antagonismo Laclau, a hegemonia seria tanto o terreno da política como do populismo. e, por consequência, também de povo. Nesse sentido, quero aqui fazer A bem da verdade, Laclau, em um primeiro artigo intitulado "Populism: menção explícita de que esta afirmação contradiz o argumento crítico ao what's in a name?" (2005), afuma que política, hegemonia e populismo populismo que sustenta Slavoj Ziiek, a saber: "Da mesma maneira que, são sinônimos. Mas em seu texto La razón populista - no qual desenvolve como gosta de enfatizar Laclau, a Sociedade não existe, tampouco existe todo o argumento acerca do populismo - deixa completamente de lado tal o povo, e o problema com o populismo é esse, dentro de seu horizonte, afirmação. Mantê-la implicaria uma opção pela lógica da equivalência e o o povo justamente sim existe - a existência do povo está garantida por cancelamento da lógica da diferença, com o que estaria sendo inconsistente sua exceção constitutiva, pela externalização de um Inimigo como intruso/ com a própria teoria da hegemonia. Contudo, política e populismo implicam obstáulo positivo" (2009, p. 281).14 Em todo caso, se o povo sim existe uma sinédoque. Mas em nenhum caso existe uma sobreposição semântica é porque a sociedade não existe. O povo mostra a impossibilidade da entre ambos os termos, porque o populismo tem sua especificidade, isto sociedade, ou seja, essa parte - a plebs - que se arroga a representação fica claro desde o momento em que podemos afirmar que toda articulação do todo - o populus - pode justamente surgir, porque a ordem não se populista é hegemônica, mas nem toda hegemonia é populista. fecha nunca como uma totalidade completa que consegue atribuir sem Então, que tipo de articulação hegemônica é a especificamente fissuras lugares e hierarquias e determinar o que importa e o que não populista? Aquela que implica a articulação de um povo por meio da importa, o que é visível e o que não é, o que existe e o que não existe. O entrada em equivalência de uma série de demandas de diversas índoles, a povo é já um tipo de inscrição/expressão do antagonismo na medida em investidura libidinal de um líder por parte desse povo e a dicotomização que dá conta dele. Enquanto isso, por outra parte, podemos dizer que o do espaço social que estabelece uma fronteira antagônica entre dois lugares inimigo externo funciona como princípio de sutura parcial, ou seja, como de enunciação: um "nós", o povo, e um "eles", os inimigos do povo. Isto é o "exterior constitutivo" (Staten, 1984) do povo. Se o povo envolve uma fronteira radical - porque sua própria presença é efeito do antagonismo, o populismo. 01ranto ao segundo aspecto, o populismo é a forma dileta da política que é constitutivo do social - o inimigo é um determinado fora que não o para Laclau, porque é a figura do povo a única que pode desencadear é no sentido estrito do termo. Mouffe diz a respeito: modificações no status quo. Ou seja, é o povo - a plebs que reclama ser o único populus legítimo - quem pode empurrar um processo de Staten usa o termo "exterior constitutivo" para referir-se a uma série de temas emancipações, vale dizer, de articulações contra-hegemônicas, isto é, uma desenvolvidos por Jacques Derrida com suas noções de suplemento, rastro e política radical.13 Portanto, à afirmação de Jorge Alemán (2015) de que "só differance. O termo "exterior constitutivo" é usado para ressaltar a ideia de pode existir a emancipação se se passa pela aposta hegemônica" se agregaria que a criação de uma identidade implica o estabelecimento de uma diferença, um caráter populista. Assim, evidentemente também por essa perspectiva que é construída sobre a base de uma hierarquia: por exemplo, entre forma e nos desprendemos de toda concepção que considera a possibilidade de matéria, branco e negro, homem e mulher. Uma vez que tenhamos aceito que alcançar emancipações isentas de relações de poder ou de representação. toda identidade é relacional e que a afirmação de uma diferença - ou seja, a percepção de algum "outro" que constitui um exterior - é uma precondição para a existência de qualquer identidade, é que podemos entender como as 13. Nesse sentido, o povo pressupõe uma parcialidade (a plebs, como os menos privilegiados - relações sociais estão atravessadas por antagonismos (2002, p. 7). os de baixo) que tenta funcionar como a totalidade da comunidade (o populus, o povo como nome da comunidade). Tal parcialidade se identifica com uma totalidade e produz uma radical exclusão dentro do espaço comunitário. 14. A tradução é minha. 32 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCIPLINAR DANIEL DE MENDONÇAILÉo PEIXOTO RODRIGUESJBIANCA LINHARES (ORGS.) 33 Mais ainda, na noção de povo de Laclau, não encontramos nenhum sentido de Ranciere -, ou em outras palavras, uma igualdade como ser: de uns de totalidade, de identidade substancial ou positiva, imanência dada, de plena com os outros. Então, toda articulação populista que tenha um caráter presença ou de prioridade ontológica de qualquer tipo, ou homogeneidade radicalmente emancipatório sempre implica lutas por igualdade. Trata dentro do espaço social, e menos ainda, a possibilidade do povo-uno. se de reivindicar a igualdade, e se esta não sucede, então vem a luta No entanto, aqui se torna chave destacar que nem todo populismo para modificar o status quo, provocar uma mudança do instituído e, por habilita um processo de política radical. Daí que resulta crucial diferenciar consequência, institucional num sentido igualitário. as emancipações do populismo, já que pode haver populismos não Dessa maneira, no populismo a figura do povo é única. Na divisão emancipatórios. Laclau (2005) afuma que uma articulação populista é uma dicotômica do espaço social, há lugar para só um povo - mesmo que este forma, as distintas modalidades que toma estarão em relação com as lutas seja sempre uma universalidade hegemônica - mas as emancipações podem políticas dos contextos onde esse populismo tenha lugar. Vale dizer, seu ser muitas. Ou seja, em uma mesma figura do povo podem articular-se conteúdo e orientação política geral dependerão da correlação de forças de demandas emancipatórias de diferentes tipos. um determinado espaço social. Finalmente, sobre este aspecto, gostaria de sublinhar que, se Vtiriações. Então, a pergunta que surge aqui é: Como distinguir aqueles aceitamos deixar de lado aquela ideia da metafísica da plena presença da populismos que habilitam um processo de política radical daqueles que não emancipação como algo que pode abarcar o social como tal, o que temos Qá que Laclau não estabeleceu um critério neste sentido)? Proponho buscar são emancipações diferenciais. Mas trata-se de emancipações diferenciais a resposta no nível da demanda. Recordemos que Laclau (2005) sugeriu que que se alcançam na articulação de um povo. Vale dizer, as demandas para o estudo de casos da constituição de grupos optemos pelas demandas emancipatórias de diversos tipos supõem parcialidades, digamos, figuras como categoria de unidade de análise. Não se trata, pois, de trabalhar a modestas da emancipação, que articuladas em um povo podem acarretar partir de indivíduos ou grupos já constituídos, mas sim de compreender a libertação de determinadas opressões que mudam substancialmente a esses últimos como efeitos de articulações discursivas. Distinguiu então vida dos sujeitos afetados por estas. Trata-se da desarticulação de relações entre demandas democráticas e demandas populares e recorreu à lógica da de dominação que transtornam o universo simbólico até aí estabelecido. equivalência e à lógica da diferença para explicá-las. Assim, entendeu que A respeito, mencionarei meramente dois exemplos: a aprovação das leis as demandas democráticas são aquelas que, satisfeitas ou não, permanecem de matrimônio igualitário (aprovada em 2010) e de identidade de gênero isoladas do processo equivalencial. Enquanto isso, as demandas populares (aprovada em 2012) no contexto do populismo kirchnerista da Argentina, são aquelas que estabelecem uma articulação equivalencial e passam a constituir uma subjetividade social mais ampla. Estas demandas, as do pressuposto de que todos somos iguais. Neste caso, haveria uma sobreposição semântica populares, são as que, de forma incipiente, começam a constituir um povo. entre política e esquerda, com a qual tampouco se oferece um critério para diferenciar a Se temos então demandas democráticas e populares, considero que política radical da que não é. Por outra parte, cabe destacar que, se na perspectiva de Laclau, a figura do líder no marco do populismo é fundamental, esta se torna problemática em essas, além disso, podem revestir (ou não) um caráter radical, ou seja, um marco teórico que concebe a emancipação em termos de igualdade - ou para dizê emancipatório. Assim, na medida em que a noção de emancipação - por lo com Ranciêre "o pressuposto da igualdade de qualquer um com qualquer um, isto é, definição - supõe a libertação de uma determinada dominação, opressão, definitivamente, a eficácia paradoxal da pura contingência de toda ordem" - (1996, p. submissão ou exploração, implica necessariamente o componente 32). Ranciêre, ao definir a política como a interrupção democrático-igualitária da ordem policial, não pensa a articulação política. Talvez aí radique sua denegação da questão da igualitário. A demanda radical então seria aquela que encerra uma liderança e da condução política. Portanto, o problema de enlaçar a proposta teórica de reivindicação igualitária.15 Uma igualdade "entre os quaisquer" - no dizer Laclau com a de Ranciêre radica em saber se é possível estabelecer um critério que permita pensar a política radical como aquela na qual se conjugam as emancipações de um povo com 15. Não me escapa a respeito a elaboração teórica de Jacques Ranciêre (1996). Todavia, para os a condução de um líder, a igualdade democrática de qualquer um com qualquer um com objetivos deste texto, a mesma apresenta alguns aspectos problemáticos. Ranciêre identifica a articulação de demandas equivalentes, e isto no marco de uma concepção que pretende a política com a esquerda, a partir da subversão da ordem policial por meio da mobilização incluir sem negar as diferenças e as minorias. 34 ERNESTO LACLAU E SEU LEGADO TRANSDISCIPLINAR DANIEL DE MENDONÇAILÉO PEIXOTO RODRIGUEslmANCA LJNHARES (oRGS.) 35 e a reforma constitucional da Bolívia aprovada em 2009, que formalizou 2015), para sustentar que se a forma de fazer frente à impossibilidade as práticas e costumes das comunidades indígenas como mecanismos da sociedade por parte do discurso neoliberal é o recurso metonímico de resolução de conflitos (igualando-as em status com as instituições já (mais precisamente o privilégio da metonímia pela metáfora) no qual no estabelecidas). A política radical hoje trata da inclusão de um elemento mundo tudo se tornou e se torna mercadoria (ultimamente até escutamos diferencial não contemplado até o momento dentro das possibilidades 0 presidente da empresa transnacional Nestlé afumar que: "a água não é estabelecidas, que reacomoda todo o espaço simbólico. um direito, deveria ter um valor de mercado e ser privatizada"), a política Em resumo, toda luta emancipatória de corte populista implica uma radical tem de vir pelo lado da metáfora, criando um povo hegemonizado luta pela igualdade. O populismo pode tornar-se a forma da política no significante vazio igualdade.16 Assim, uma hegemonia populista pode radical hoje, sempre que articule demandas emancipatórias de diferentes organizar aí um espaço discursivo em que a designação de lugares e funções tipos, desatando um movimento anti status quo em busca da reivindicação ofereça uma legibilidade e a possibilidade de uma inscrição simbólica igualitária. diferente da neoliberal. Poder-se-ia colocar a objeção de que existe a possibilidade de propor a luta política em termos do significante liberdade, isto é, disputar os 2.3 significados que o discurso neoliberal lhe atribui. Nesse sentido, seria uma PARA NÃO CONCLUIR: ALGUMAS ÚLTIMAS PALAVRAS luta política já não entendendo a liberdade como propõe o neoliberalismo (a saber, um sujeito como entidade positiva que escolhe livremente o Uma vez que deixamos de lado a ideia de emancipação como totalidade que consumir), mas sim a liberdade no sentido daquilo que surge nos plena e a ideia da classe social como agente predestinado da história, tampouco podemos pensar o povo como uma subjetividade defeituosa, nem 16. Sumic afirma que "ao mesmo tempo que a retórica apresenta-se a si mesma como um o populismo como forma degradada da política que nos obriga a nos resignar fundamento sem fundamentos para os vários possíveis, formas de agregados políticos a alcançar figuras delimitadas e também degradadas de emancipação. Pelo igualmente contingentes, também torna possível distinguir duas formas diferentes de fazer contrário, é o populismo - essa articulação sempre frustrada e instável com este buraco no Outro simbólico, duas formas possíveis de assumir o não fechamento do espaço político da discursividade: a operação de suplementação e complementação. Situadas conformada por diferenças - que nos devolve nossa singularidade, ou seja, na base da negação de todo fundamento no real, a sutura metafórica e o deslocamento nossa radical historicidade como povo. Note-se que ao longo do texto, metonímico representam duas respostas possíveis frente ao buraco no real, duas estratégias para me referir à possibilidade de uma política radical populista, falei de para lidar com a ausência radical de uma fórmula que inscreva a instituição do social no igualdade e não de liberdade. Isto não é um erro ou um esquecimento casual. real. A metáfora consegue fechar o espaço discursivo de uma situação dada ao produzir um dispositivo suplementar sob o disfarce de um significante catacrético, um semblante, Nos tempos atuais, nos quais a liberdade tem sido capturada pelo discurso no preciso lugar da falta do Outro. Ao incorporar a ineliminável ausência de fundamentos, neoliberal e ligada ao mercado, ao consumo ilimitado e incessante e ao gozo o significante catacrético não é outra coisa senão a metonímia do buraco no Outro. Ao solipsista que, além disso, nos propõe - ou talvez melhor dito, nos impõe - suplementar a falta no Outro social com o significante catacrético, a operação da metáfora efetua a sutura do social, mas ao custo de ocultar a falta de fundamentos de tal operação. apagar toda singularidade e história sob o manto de uma suposta naturalidade Poderia então se dizer que a totalização metafórica em si mesma é esvaziada como resultado a-histórica que cabe a todo sujeito e em cada lugar, urna eventual apelação da impossibilidade estrutural da ordem social então imposta para subsumir a totalidade da à "reivindicação da liberdade" não faria mais que reforçar os mecanismos de situação social dada. A metáfora, resumindo, não pode prover uma solução verdadeira ao buraco no Outro [ ...] . Diferentemente da metáfora, na qual se cruza a barreira que resiste dominação. A demanda por liberdade, no contexto neoliberal, não é mais do à sutura, a metonímia evita tal movimento totalizador. Oscilando entre a ausência radical que uma d emand a por um "t er d esenf ir ea do" ou, o que e, o mesmo, por " uma de toda ordem e a instituição de uma ordem por meio da catacrese, a metonímia indica liberdade sem qualquer freio". um lugar para uma possibilidade, mesmo que se trate de um fechamento estruturalmente inalcançável,já que somente pode ser situado no infinito. Preserva-se, e reserva-se um lugar Nesse aspecto, focalizando a ideia de estruturação retórica do social, para a totalização do espaço social, sem ser alguma vez levado a cabo. Em outras palavras, tomo emprestados - certamente de maneira bastante frouxa - certos como é um movimento infinito gerado na falta no Outro, a metonímia, paradoxalmente, dá argumentos apresentados por Jelica Sumic-Riha (2011) e Alemán (2014, lugar a uma crença na possibilidade de um fechamento final" (2011). (A tradução é minha).