Entrevista com Aaron V. Cicourel* Edição Final de Sergio Miceli Tradução e transcrição de Dmitri Cerboncini Poderíamos começar com um relato de sua experiência familiar, pois é impor- *Esta entrevista foi rea- lizada a 26 de outubro tante para conhecer suas opções posteriores. de 2006 em Caxambu, Minas Gerais, duran- Sobre a minha própria família? te o Encontro Anual da Anpocs, no Hotel Gló- Sim. ria, onde Cicourel fez uma conferência como convidado de honra. Minha mulher, meus filhos? Participaram da entre- vista os pós-graduandos Primeiro seus pais, em que momento chegaram aos Estados Unidos... Você pode Arthur Oliveira Bueno, pular os pais, se não quiser falar deles... Dmitri Cerboncini Fer- nandes e Célia da Gra- ça Arribas, e os profes- Não, ouça, os dois estão mortos, não há problema. sores Fernando Pinhei- ro, Heloisa Pontes e E, depois, sobre a sua experiência de trabalho intelectual, sublinhando, por Sergio Miceli. exemplo, a diferença com Garfinkel, a diferença com Goffman. O interacionismo simbólico não incluiu a linguagem como item de seu programa de pesquisa, apesar de certo esforço por parte de Norman Denzin de aplicar tal metodologia no estudo das atividades da vida cotidiana. Tampouco os etnometodólogos incluíram o estudo sistemático do discurso Entrevista com Aaron V. Cicourel , pp. 131-168 em sua agenda de investigação. É claro, houve exceções. Por exemplo, di- versos autores ingleses, como David Silverman e Wesley Sharrock, e tam- bém o norte-americano Douglas Maynard. Salvo engano, Harold Garfin- kel nunca utilizou a análise de conversação tal como foi desenvolvida por Harvey Sacks. Já no final de sua carreira, Erving Goffman realizou algumas análises de materiais discursivos com trechos gravados de programas de rádio, mas nunca estudou o discurso como tal em sua pesquisa, a partir de fitas que ele mesmo tenha gravado. Harvey Sacks, por sua vez, não buscou contextualizar etnograficamente seu estudo de conversação, nem incluiu informações a respeito das relações sociais mantidas entre os interlocutores. Além disso, nenhum desses pesquisadores empregou estratégias de amos- tragem sistemática no âmbito de ambientes socialmente articulados. Por exemplo, algo similar ao uso de estratégias de amostragem como as desen- volvidas pelos ecologistas do comportamento que estudavam animais não- humanos no interior da biologia. Sim, é isso que queremos saber. Ao mesmo tempo, existem nuanças. Mas você quer que eu comece com minha família? Sim, pois é uma experiência muito singular nos Estados Unidos. Meu pai nasceu em Esmirna, na Turquia. Os pais dele eram de classe média. O que faziam? Meu avô era alfaiate. Meu pai estudou em uma escola francesa e não quis prestar o exército turco, porque naquele tempo, se você fosse judeu, católico ou protestante, não te mandavam lutar, te mandavam limpar as ruas. Então ele não quis ir. Mas se você fosse militar profissional, aí sim, tinha verba oficial e tudo o mais. Assim, ele se escondeu por bastante tempo, não termi- nou a escola. Ele estudava em uma escola especial, mantida por uma entida- de chamada Alliance Universelle Israelí – que havia aparecido em Paris em 1864, fundada por um grupo de empresários e intelectuais, encorajados pelo governo francês. Tal grupo criou essa entidade e recrutou professores treinados na França que, em seguida, foram enviados tanto ao antigo impé- 132 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1 Por Sergio Miceli et al. rio turco como a países como Tunísia, Argélia e Marrocos; o grupo turco inicial, com ajuda de professores franceses, organizou as escolas que ensina- vam a língua e a cultura francesas. Os professores turcos de origem sefardita ajudaram a espalhar essas escolas por todo o império turco e, mais tarde, fundaram outras similares em todo o norte da África. Inclusive em Rodes, de onde vem minha mãe... A família dela vem de lá e de Milas. Entre Milas e Rodes havia um intercâmbio constante. E eu tinha parentes em Israel, na Palestina, no Egito, no Líbano, não sei, mas com certeza na Tunísia, na Ar- gélia e no Marrocos. Mas nessas cidades em que sua família estava, essas comunidades eram peque- nas, não? Nem sempre. Por exemplo, em Istambul tinha bastante gente; em Es- mirna, menos. No Marrocos havia uns 400 mil judeus, em Fez, Casablanca, Marrakesh. Mas os poucos sefarditas viviam na costa desde a expulsão da Espanha, no tempo da Inquisição. E os outros judeus viviam no interior, assimilados aos árabes. Portanto, já havia judeus, mas eles não eram da Espa- nha, nem falavam castelhano, e a Alliance chegou até eles também. As famí- lias sefarditas não se casavam com outros judeus, porque o contrato matri- monial (kitubá) era diferente. Os de filiação árabe se divorciavam como os árabes, mas eles firmavam também um kitubá em hebreu. Esse kitubá dos sefarditas exigia tomar conta da mulher e dos filhos. Não se podia deixá-los de lado, sem ajuda. Os sefarditas tinham em Tetuan, por exemplo, uma es- cola para treinar rabinos, em estilo sefardita. Há diferentes estilos. Por exem- plo: na Turquia, minha família, e todos de lá, se expressavam em hebraico e em castelhano antigo. Já no Marrocos, não. Na Tunísia, também não. E tinha uma sinagoga? Sim, mas as sinagogas, como em todas as partes, eram formadas princi- palmente por familiares, por laços de parentesco. Em Esmirna, tinha uma sinagoga dos Cicourel, pois ali viviam muitos Cicourel. Lá existe um subúr- bio que se chama Kasabah, e todos os Cicourel vêm de Kasabah e de Esmir- na. E há muitos outros. Tenho parentes em todo o mundo. Dizem que não são parentes, mas há cinco Cicourel que vivem em Salvador, na Bahia. Eu os conheço, e cozinham como minha mãe. Um deles tem a aparência um boca- do parecida, quase como se fosse meu filho, é curioso. Estive na Austrália, junho 2007 133 Entrevista com Aaron V. Cicourel , pp. 131-168 ensinando por um mês, em Sidney, e encontrei um Cicourel. Havia uma prima em Bruxelas, vários primos em Paris, o que serve para mostrar que a família do meu pai era educada, e eles tinham se inscrito no consulado fran- cês. Tenho os papéis. Os parentes de minha mãe vinham de Rodes e de Milas, mas havia muito intercâmbio em Rodes, entre turcos, gregos, italia- nos, por isso minha mãe saiu com passaporte italiano. Meu pai saiu com documentos franceses. Ele foi para Nova Orleans. Seu irmão mais velho trabalhava com despachantes e alfândegas e tinha conexões com os barcos e embarcou meu pai para Atenas, até Pireus. Meu pai e toda a família Cicourel nasceram em um bairro de gregos. Esse mesmo tio meu criou-se com um Onassis. Ele teve sorte com dinheiro, meu tio não. Como falava grego, meu pai foi para Atenas e não teve problemas. Depois o barco foi para Marselha e lá ele conseguiu embarcar para Barcelona por poucos dias. Ali havia uma comunidade de sefarditas, com os quais ficou em contato por pouco tempo. Levaram-no a Nova Orleans, onde não conhecia ninguém. É preciso levar em conta que meu pai, um sujeito muito rebelde, falava francês perfeita- mente, porque passou pela Alliance e por um colégio francês. Deixaram-no entrar em Nova Orleans porque lá havia muitas pessoas que falavam francês e, como tinha documentos franceses, não houve nenhum problema, ele en- trou. Ali, um dia, ele escutou alguém falando castelhano antigo, ladino. Não tem nada a ver, mas se você for a Montgomery, no Alabama, no coração do sul, há ali uma delicatessen, e alguém disse: “Aí você vai encontrar um ‘dos nossos’”. Foi até lá. Eles eram primos da minha mãe e disseram: “Olhe, tem mais de ‘nós’ em Atlanta”. Nessa cidade havia três tipos de judeus: os sefardi- tas, os da Alemanha e os da Rússia ou Polônia. E não se entendiam. Em Atlanta, por meio desses primos da minha mãe, ele conheceu o irmão da minha mãe. Minha mãe chegou de navio a Nova York. Seus irmãos – dois irmãos que chegaram em 1908 e 1910 – foram para Atlanta e mandaram a passagem para a minha mãe e o dinheiro. Ela não veio pela Ellis Island, que era o caminho dos que não tinham documentos, porque ela tinha todos os documentos, e um primo dela, que vivia no Bronx, a esperava. Ela chegou no Bronx e ficou um ano em Nova York, trabalhando como costureira por seis meses, e depois foi para Atlanta. Na Turquia, ela sofreu um acidente. Uma vez estava andando em um cavalo, em um burro, caiu e perdeu um olho. E naquele tempo não havia o que fazer. Para ir atrás de um médico, era uma dificuldade. Taparam o olho assim [gesticula colocando a mão no olho] e se foram. E vejam, isso é importante para mim, porque significa um “pro- duto com defeito”: uma mulher sem um olho na Turquia não se casa com 134 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1 Por Sergio Miceli et al. ninguém. Então ela não quis nenhum homem. Assim, os irmãos, finalmen- te, depois da Primeira Guerra Mundial, tiveram que esperar muitos anos para fazer algo. Ela foi para Atlanta e meu tio disse a meu pai: “Aqui está! uma irmã minha, tem que conhecê-la”. Eles se casaram em pouco tempo, e então começou a milonga, como dizem os argentinos. Foi um pouco difícil porque meu pai se tornou um bocado americano bem rápido. Ele falava muitos idiomas e os aprendia com facilidade. Minha mãe nunca aprendeu direito nem o inglês. Tornou-se cidadã americana, mas não era desenvolta com a língua. Meu pai andava de moto, jogava beisebol, tudo isso ajuda a explicar o “choque” entre eles. Existe um livro do Lloyd Warner, o antropó- logo, sobre os imigrantes de Massachusetts – irlandeses, italianos, gregos –, no qual ele falava de imigrantes P1 e P2. Aí está o problema dos meus pais. Um era P1 e o outro era P2. Minha mãe era muito tradicional, bastante religiosa. Já meu pai teve de aprender o Velho Testamento com muito empe- nho, porque seu tio em Esmirna era rabino. Pelo que sei, meu pai não era pessoalmente um verdadeiro crente na religião, embora buscasse ajudar nos serviços religiosos, tanto em Atlanta como em Los Angeles, para satisfazer minha mãe. E a parte mais especial da Bíblia é aquela que acompanha os ritos religiosos durante a celebração judaica da Páscoa. Os sefarditas turcos usavam um livro de orações escrito em hebraico, mas lido em ladino. Enten- didos no Marrocos me disseram que isso não ocorria lá. Havia a versão em castelhano, que eles utilizavam? Sim. Mas a letra era hebraica. E eu percebi que os sefarditas realmente não sabiam bem o turco. Até que Atatürk obrigou todos a tirar passaporte, quer dizer, todos “viravam” turcos e tinham que ir ao colégio. Eis por que todos os meus primos falam turco muito bem, e escrevem também. Mas minha mãe não sabia escrever turco. Falava um turco antigo. Meu pai sabia mais. Quando estive no Marrocos, percebi uma coisa em comum entre to- dos os sefarditas: estavam isolados em um gueto. Tenho umas fotos inte- ressantes do Marrocos, e, claro, da Turquia, tiradas em Esmirna e também em Istambul. Eles fechavam as portas à noite, e mesmo de dia, e se encarre- gavam de tudo, desde o nascimento até morte. Uma vez ao ano limpavam tudo e a cada sexta-feira eles iam às casas dos pobres e lhes davam de comer. Tinham sua própria organização, é por isso que os turcos e os árabes deixa- vam-nos mais o menos tranqüilos. Isso é algo que não querem reconhecer em Israel, que os judeus conviviam bem com os árabes e com os muçulma- junho 2007 135 Entrevista com Aaron V. Cicourel , pp. 131-168 nos, enquanto na Alemanha, na Polônia, no Ocidente, matavam muitos e faziam um montão de coisas. Esse é um fato que me enraivece muito, e por isso sou tão contrário à política de Israel, mas não posso falar disso com todos os parentes, apenas com uns poucos. Meus pais se casaram em Atlanta e tiveram três filhos, mas um morreu, e iria se chamar Aaron, como eu. O meu avô se chamava Aaron Victor Cicourel, eu me chamo Aaron Victor Cicourel, meu pai se chama Victor Aaron Cicourel. Meu nome deveria ser Jacques, porque havia muitos nomes franceses. Minha irmã e eu nascemos em Atlanta, ela é dois anos mais velha. E quando veio a grande depressão, meu pai perdeu o emprego. Que língua eles falavam em casa? Inglês? Nunca. Castelhano. E quando não queriam que nós entendêssemos, falavam turco. Minha mãe tinha passado pela Alliance também, falava fran- cês, não como meu pai, mas falava. Falavam turco ou francês. Então meus pais foram viver com meu tio, comigo e com a minha irmã, e meu pai às vezes perdia dinheiro sem razão. A família da minha mãe não queria que ela fosse com ele, mas como ela era muito tradicional, não podia deixar o ma- rido. Ele foi para Los Angeles. Lá ele tinha uma prima que o ajudou. Nós fomos dois anos depois. O que ele fez nesses dois anos? Primeiro, ele foi leiteiro. Quando eu cheguei, ele tinha uma caminhone- te velha cheia de caixas vazias com garrafas de vidro e nos encontrou na estação. Naquele tempo, ainda não havia uma boa estação em Los Angeles, que ainda estava sendo construída em 1936. Nós chegamos em 1934. Eu tinha cinco anos, quase seis. Eu e minha irmã fomos atrás, com as malas e as garrafas, ele nos levou a um apartamento no mesmo edifício em que morava sua prima. Não quero contar muito sobre ele, mas meu pai fazia coisas que não deveria fazer. Sempre tinha problemas, nunca tinha dinheiro, e comecei a vender jornal aos seis anos; trabalhei até terminar o doutorado, porque não havia outro jeito. Meus pais ganhavam pouco e eu tratava de trazer algo. Era difícil. Éramos talvez a família mais pobre entre os sefarditas. Ele fazia em- préstimos com outras famílias e não pagava. E, quando eu queria sair com uma menina, o pai dela dizia não. Porque eu era um Cicourel, e meu pai era um problema. Eu não entendia isso até que a minha mãe me explicou. Al- 136 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1 Por Sergio Miceli et al. guns eram primos dela, de Milas e de Rodes. Na comunidade em que vivía- mos, quase todos eram de Rodes. Como meu pai veio de Esmirna, não se dava bem com os outros. Mas minha mãe conhecia todos. Então fui a uma sinagoga, cujo rabino era da Palestina, para aprender tudo da Bíblia... Disse que trabalhava durante todo o tempo... Todo o tempo, vendendo jornal desde os seis anos, e depois dos treze anos trabalhei em um mercado, enorme, de pelo menos três andares, no centro de Los Angeles, chamado Grand Central Market. E havia coisas muito baratas, lá tinha uns sefarditas e consegui um trabalho pelo qual me pagavam vinte e cinco centavos por hora, quase nada! Eu trabalhava depois do colégio, tinha que tomar um bonde para chegar. Trabalhava no sábado e às vezes no domingo, e durante o verão também. Você freqüentava um colégio público? Público. Nunca estudei em escola privada. Até em Cornell, que é priva- da, me deram uma ajuda. Um dia um homem perguntou: “Vocês querem se inscrever no sindicato?”. Eu pensei: “Sindicato, o que é isso?”. Lembro que ele tinha um sobrenome italiano, e respondi: “Não, eu sou sefardita”, e ele disse: “Cicourel, venha”, e me deu o endereço. Havia um pequeno escri- tório. Fiz a inscrição. Fui enviado a um lugar no qual iriam me pagar 65 centavos por hora. Uma fortuna. Era um novo supermercado chamado Vons. Ainda existe em San Diego. É uma rede, mas agora pertence à Safeway, outro grupo o comprou, mas mantiveram o nome. Em Berkeley e em Stan- ford se chama Safeway, mas em Los Angeles e em San Diego é Vons. Traba- lhei duro, mas era muito próximo à minha casa, então podia trabalhar to- dos os dias. Quase no fim da Segunda Guerra Mundial me dei conta de que era possível trabalhar nos Correios e ganhar mais. Pagavam mais e eu traba- lhava no sábado, durante o verão, no Natal, era assim. Eu entregava cartas. Percorrendo meu bairro, o conheci muito bem. E como decidiu ingressar na UCLA [Universidade da Califórnia, Los Angeles]? Era difícil, porque eu não podia conseguir boas notas. Até por volta dos treze anos, eu tirava notas muito boas, e antes, no primário, eu me sobres- saía. Tinha uma professora que me ajudou, que mudou minha vida. Fre- junho 2007 137 Entrevista com Aaron V. Cicourel , pp. 131-168 qüentei outros três primários, porque meu pai não pagava o aluguel e tí- nhamos sempre que mudar. Era terrível. Ele acabou alugando uma casinha pequena de um sefardita que se chamava Soriano, e moramos lá por uns dez anos; o bairro era de classe média, mas a casa não. Havia outros judeus sefarditas lá, havia uma sinagoga perto, aonde podíamos ir caminhando. Eu aprendi tudo, mas hoje já esqueci tudo também. Podia escrever, podia ler, podia rezar em hebraico, ocorreu meu bar mitzvah, tinha que ler, abria o livro e podia ler sem problema. Dei três conferências: uma em inglês, uma em hebraico e uma em castelhano. O rabino era da Palestina e sabia as três línguas. Eu era um bom aluno, até que comecei a trabalhar mais, tinha as tarefas do colégio e não havia tempo para estudar. Fui para o colégio secun- dário, fiz os cursos para entrar na universidade, mas as notas não eram boas, com média quatro ou cinco, mas, ao mesmo tempo, fiz os cursos, jogava basquete e ainda corria. Eu me relacionava com um grupo de amigos, havia uma turma de sefarditas, quase todos eram do bairro. E havia outros grupos na escola, judeus asquenazes e cristãos, e dessa turma alguns foram para a universidade, eu os conheci bem, mas não pude entrar na UCLA porque não tinha as notas necessárias. Freqüentei então o Community College, onde tive que fazer os cursos para a universidade de novo, e os fiz bem, mas sempre trabalhando à noite. Fiz o exame nacional para os Correios e come- cei a trabalhar quarenta horas por semana, não dormia muito e fiquei doen- te várias vezes. Trabalhei em várias funções, dirigi caminhões, fazendo en- trega de produtos de um supermercado em casas particulares. Mas terminei os estudos e consegui entrar na UCLA. Que cursos você fez? Psicologia experimental e muita filosofia também, porque a UCLA ti- nha um curso de filosofia muito bom. Por que escolheu o curso de psicologia? Porque um dos meus professores no Community College era psicólogo e me aconselhou: “Cicourel, se você continuar com a filosofia, não irá con- seguir trabalho”. Então decidi que o melhor era fazer psicologia. O que ocorria era que eu poderia ter continuado, mas as notas não eram boas, tirei um oito uma vez, mas o comum era cinco ou seis. Queriam me levar para o exército, para servir na Coréia; a essa altura, faltava apenas um semestre 138 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1 Por Sergio Miceli et al. para eu terminar o curso. Mas como eu vivia em um bairro humilde, e tinha me alistado lá, falaram: “Você irá à Coréia”. Ninguém na UCLA ti- nha que ir, porque eram de classe média. E por que você teria de ir? Porque decidiram por bairro quem iria para onde. Os estudantes dos bairros de classe média eram dispensados. Você ainda não tinha terminado o curso? Só faltava um semestre! Então apelei: “Olha, eu sou doente”. Tive pro- blemas de estômago por ter trabalhado muito e pensei que algo estivesse registrado. Mandaram-me para o hospital dos veteranos, lá fizeram exames e disseram que talvez eu tivesse mesmo alguma doença, pelo menos me confirmaram que eu tinha algo e que não era trivial. Decidiram esperar um pouco. No entanto, no Natal, não queriam mais esperar. Mas eu pude ter- minar as provas. Ninguém queria me dar trabalho depois de saber que eu estava indo para o exército. Fui removido para um lugar no norte, Monterey. Lá fui treinado na infantaria. Que idade você tinha? Vinte e um, acho. Casei-me onze meses antes de ir para a Alemanha. E de onde vinha sua mulher? Ela era de classe média, de uma família de judeus asquenazes. Até minha esposa não acreditava que eu fosse judeu: “Não sei se posso sair com você”. Antes eu tinha saído com outra garota do Community College, alta e bem bonita. Fui à casa de minha esposa e o pai dela me disse: “Você não é judeu, não tem nome judeu nem nada!”. “Mas meu nome é Aaron.” “Muitos po- dem ter esse nome também.” Então eu arrisquei: “Traga uma Bíblia em hebraico”, e comecei a ler... a mãe e o pai ficaram boquiabertos: “Muito bem, mas a sua pronúncia não é muito boa”. “É que eu tenho sotaque de Israel e vocês têm sotaque do leste da Europa, da Letônia”. Eu havia concluí- do a UCLA, onde tive vários professores reputados: Ralph Beals, Ralph Tur- ner, um excelente estatístico, William S. Robinson, aluno de Paul Lazers- junho 2007 139 Entrevista com Aaron V. Cicourel , pp. 131-168 feld. E havia também o Edwin Lemert. Lemert era excelente, estava escre- vendo um livro, Social pathology, e tínhamos apenas um esboço, que não está publicado ainda. Eu tirava boas notas nesse curso. Ele me ajudou: “O que vai fazer?”. “Ora, tenho que ir para o exército.” Ele me chamou para jantar em sua casa, e naquele tempo, como hoje também, nenhum professor fazia esse tipo de convite, ele tinha dinheiro; vivia em Brentwood, Los Ange- les, em um lugar luxuoso. Eu tinha um Dodge velho, 1936, que soltava tanta fumaça que minha noiva tinha que colocar a cara para fora para não desmaiar. Era muito ruim, mas andava. Então fui lá, mas o problema era encontrar a casa; lá estava também outro professor, de antropologia, muito importante, e jantamos. Para nós era difícil porque eu não tinha na verdade nem roupas para vestir! Minha mulher tinha, eu não. Depois fiquei dois anos no exército e comecei a me candidatar a postos em psicologia, mas era sempre reprovado! Notas ruins. Fiz o mesmo em sociologia e antropologia, sem sucesso! Enquanto isso, estudava mais matemática, lia ainda o livro de Talcot Parsons, de 1937, e Robert K. Merton. Como tinha licenciatura em psicologia, me mandaram para um grande hospital em Indiana, onde eu trabalhava no setor neuropsiquiátrico, com jovens procedentes da Coréia que estavam com problemas mentais. Tinha que trabalhar com suas famí- lias, dar choques elétricos e aplicar outros tipos de terapia. Era encarregado de 48 pacientes, 24 totalmente esquizofrênicos e outros 24 que estavam melhores, por causa da terapia. Então aprendi bastante. Corria sempre o risco de ser mandado à Coréia: a cada mês saía uma lista, mas havia alguns oficiais que me ajudavam. Por fim me dei conta de que eles iriam mesmo me mandar. Havia alguns amigos, mas pouco a pouco foram saindo. Meus ami- gos e minha esposa trabalhavam perto e lhes disse o que temia. O que vamos fazer? Um deles me sugeriu: “Olha, tem uma lista de seis pessoas que vão para a Alemanha; vou te pôr aí, apesar de não poder ser oficialmente.” Fui a Los Angeles me despedir de toda família, de minha esposa e dos amigos. Ao chegar a Fort Dix, Nova Jersey, já sabia que ia ter problemas. Cheguei dez minutos antes da meia-noite. Havia um sargento lá, meio adormecido, lhe dei os papéis e reagiu: “Cabo Cicourel, não devia estar aqui!”. “Não? E por quê?” Mas eu já sabia por quê. “Não pertence ao exército regular, de carreira, e não tem tempo suficiente para ir à Alemanha; deve ter pelo menos um ano.” Eu só tinha oito ou nove meses. Insisti: “Minha esposa, minha família, já me despedi de todos e aqui estou, não é minha culpa”. “Tenho que fazer todas as mudanças... que diabo! Ok! Assina isso e me dê os papéis!” Naquela noite me deram uma cama, não muito boa, mas não importa. No dia se- 140 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 19, n. 1
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