rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) ENTRE CHRISTÓTOKOS E THEÓTOKOS: A CONSTRUÇÃO DA FIGURA DE MARIA EM NESTÓRIO DE CONSTANTINOPLA E CIRILO DE ALEXANDRIA (SÉC. IV-V) Contato Ludimila Caliman Campos* Rua Robusta, 30 29199-063 – Aracruz – ES Universidade Federal do Espírito Santo [email protected] Vitória – Espírito Santo – Brasil Resumo O presente artigo tem como objetivo analisar a polêmica teológica que emergiu com o advento da piedade a Maria, cujo cerne do debate se resumiu à adoção, ou não, do título de Theotókos, e provocou sérios conflitos político-culturais na ekklesia, culminando com o Concílio de Éfeso (431), no qual os bispos Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria foram os protagonistas. Entretanto, nesse caso faremos especificamente um exame dos textos eclesiásticos de Nestório e a defesa de Cristótokos, além das concepções de Cirilo e a contraproposta de Theotó- kos para apreender a doutrina mariana vigente com o objetivo de interpretar os escritos levando em consideração as escolas teológicas às quais estavam filiados. Palavras-chave Cristianismo - Cirilo de Alexandria - Nestório de Constantinopla. * Mestre e doutora em História Social das Relações Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora associada do Laboratório de Estudos sobre o Império Romano, na Universi- dade Federal do Espírito Santo e professora titular da Faculdade de Ensino Superior de Linhares. 361 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) BETWEEN CHRISTOTOKOS AND THEÓTOKOS: THE CONSTRUCTION OF THE FIGURE OF MARY IN NESTORIUS OF CONSTANTINOPLE E CIRILO OF ALEXANDRIA (IV-V. CENTURIES) Contact Ludimila Caliman Campos* Rua Robusta, 30 29199-063 – Aracruz – ES Universidade Federal do Espírito Santo [email protected] Vitória – Espírito Santo – Brasil Abstract This article aims to analyze the theological controversy that emerged with the advent of devotion to Mary, whose heart of the debate came down to the adop- tion, or not, to the title of Theotokos, and caused serious political and cultural conflicts in the ekklesia, culminating in the Council of Ephesus (431) in which the bishops Nestorius of Constantinople and Cyril of Alexandria were the protago- nists. However, in this case, we specifically do an examination of ecclesiastical texts of Nestorius and the defense of Christotokos, beyond the conceptions of Cyril and the counter-proposal of Theotokos, in order to learn the current Marian doc- trine interpreting the written considering the theological schools to which they were affiliates. Keywords Christianity - Cyril of Alexandria - Nestorius of Constantinople. 362 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) Filho de um casal persa, Nestório nasceu em 381, na cidade de Germaní- cia, na Ásia Menor. Durante a juventude, mudou-se para Antioquia, onde morou em um mosteiro, exercendo as funções de monge e de sacerdote sob a supervisão de Teodoro de Mopsuéstia.1 Nesse tempo, Nestório ganhou grande reputação por sua eloquência e sua oratória impecáveis, fatores que podem ter influenciado o imperador Teodósio II (408-450) a escolhê-lo para ocupar a cadeira episcopal. Em abril de 428, após a morte de Sisino, Nestório foi con- sagrado bispo de Constantinopla, a segunda maior sé da ekklesia nicena. Entre as primeiras medidas tomadas pelo novo bispo estava o combate ao avanço daqueles considerados por ele heréticos. Com apenas um mês de consagra- ção, Nestório já tinha destruído uma capela ariana e convencido o imperador a emitir um decreto contra os cismáticos. Algum tempo depois, o bispo de Constantinopla ordenou a destruição do reduto quartodecimano da Ásia Me- nor, além de perseguir com avidez os novacianos e os pelagianos.2 Sobre esse assunto, Nestório escreveu duas cartas ao então bispo de Roma,3 Celestino.4 1 ALTANER, Berthold & STUIBER, Alfred. Patrologia: vida, obras e doutrinas dos padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1966, p. 338. 2 A dissidência quartodecimana aconteceu no século II, quando algumas ekklesiae da Ásia Menor começaram a não compartilhar do mesmo calendário litúrgico com as demais congregações do Império. Os chamados quartodecimanos celebravam a Páscoa no décimo-quarto dia da lua do mês de Nisã, seguindo a tradição judaica, não importando o dia da semana em que o jejum findava. Já os ortodoxos celebravam-na no domingo logo após o décimo-quarto dia da lua. Vale frisar que a ênfase das festas também acabava sendo distinta: os ortodoxos se concentravam na ressurreição de Jesus; já os quartodecimanos, no evento da Paixão. Sobre esse assunto, ver CAMPOS, L. C. “Um bispo, um Deus, uma ekklesia”: A formação do episcopado monárquico no Alto Império Romano. Dissertação de mestrado em História Social das Relações Políticas, Pro- grama de Pós-Graduação em História, Centro de Ciências Humanas e Naturais, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2011, p. 168-169. 3 O novacianismo foi um movimento fundado por Novaciano, filósofo estoico e presbítero da ekklesia de Roma, no século III. Ele defendia uma cristologia subordinacionista segundo a qual o Logos seria uma manifestação passageira do Pai, não sendo, portanto, as mesmas pessoas. Para ele, o Logos teria vindo à Terra realizar os desígnios do Pai, mas, de pronto, devolveria toda a autoridade a Deus. Já o pelagianismo foi fundado por Pelágio, monge nascido na pro- víncia romana da Britânia em meados do século IV. Ele era otimista em relação à moralidade do ser humano e afirmava que o homem poderia viver uma vida sem pecar, uma vez que o pecado original nunca teria existido. Ao defender abertamente tal posição, Pelágio e seus discípulos acabaram criando diversas polêmicas entre os clérigos nicenos, com destaque para Agostinho de Hipona. Sobre esse assunto, ver FRANGIOTTI, Roque. História das heresias (séculos I –VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 77-78; 113-115. 4 GELJON, Albert. C. & ROUKEMA, Riemer. Violence in ancient Christianity: Victims and per- petrators. Supplements to Vigiliar Christianae. Leiden: BRILL, 2014, p. 116-117; GREGORY, T. E. Vox Populi: violence and popular involvement in the religious controversies of the fifth century A.D. Columbus: The Ohio State University Press, 1979, p. 100. 363 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) Ao final de 428, com menos de um ano de episcopado, Nestório pregou seu primeiro sermão contra a utilização do termo Theotókos, detalhando sua doutrina sobre a encarnação. O primeiro a se posicionar contrário a Nestório foi Eusébio, um leigo que, mais tarde, tornou-se bispo da cidade de Dori- leia, na Ásia Menor. Em seguida, Filipe de Sidetes escreveu alguns trabalhos combatendo a doutrina que Nestório pregava. No mesmo período, Proclo, que também estava ressentido por não ter sido escolhido como titular da sé de Constantinopla, proferiu sermões em que acusou abertamente Nestório de herético.5 O embate entre os bispos resultou em grande comoção entre os cristãos constantinopolitanos, momento em que um dos principais e dos mais vorazes adversários de Nestório se levantou: Cirilo de Alexandria. Sobre a tenaz participação de Cirilo na controvérsia, precisamos salien- tar que, muito embora o envolvimento do bispo esteja diretamente relacio- nado ao fato de a polêmica permear uma questão cristológica concernente à unidade da pessoa de Cristo e ao papel de Maria, tão cara ao bispo, a frágil relação diplomática entre as sés de Constantinopla e de Alexandria também contribuiu para acirrar a disputa entre os episcopados. Alexandria tinha, tradicionalmente, autoridade sobre todo o Egito e a Líbia, obtida por meio de uma reivindicação ratificada pelo Concílio de Niceia. Com a chancela conci- liar, o bispo de Alexandria acabou exercendo domínio e controle de maneira muito mais contundentes sobre suas paróquias do que os demais patriarcas o faziam em suas jurisdições. Talvez isso tenha se dado também porque as bases materiais do poder do patriarca de Alexandria encontravam-se, es- pecialmente, na economia do Egito, com destaque para o papel estratégico no fornecimento de alimentos para o norte da África e para diversas outras regiões do Império. Constantinopla, uma das cidades que dependiam do for- necimento de produtos advindos de Alexandria, depois de ter se convertido em residência imperial e, ainda, ter sediado o Concílio de Constantinopla em 381 – ponto de viragem no Estado eclesiástico da cidade – tornou-se, depois de Roma, a principal sé do cristianismo. A posição de Constantinopla nas encruzilhadas políticas e geográficas permitiu ao patriarca converter a sé em uma “casa dos sínodos” – uma espécie de tribunal permanente ad hoc, que poderia lidar com debates eclesiásticos e teológicos variados. A posição então ocupada motivou Nestório a não se sujeitar aos ditames episcopais de Alexandria e, muito menos, às opiniões pessoais de Cirilo. Como detinha po- 5 JURGENS, William. The faith of the early fathers: pre-Nicene and Nicene eras, v. 1. Minnesota: College- ville, 1970, p. 202. 364 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) der geopolítico e econômico de destaque, o bispo de Alexandria fez questão de desafiar a crescente soberania de Constantinopla – em especial, quando esta foi liderada por Nestório, integrante da escola de Antioquia – e travar, de tal modo, uma batalha que, aparentemente, seria apenas cristológica, mas que geraria repercussões políticas, jurídicas e econômicas.6 Em um contexto de acirramento político, Cirilo enviou duas cartas a Nestório, advertindo-o das possíveis consequências de suas opiniões e da incidência em heresia. Nas cartas, Cirilo convoca-o a se retratar, o que não foi feito. Em meio a constantes ataques, Nestório conseguiu sustentar seu episcopado por três anos, até o Concílio de Éfeso, em 431. Logo após o encerramento do Concílio, Nestório foi deposto do cargo episcopal e enviado a um mosteiro de Antioquia, onde permaneceu em reclusão por poucos anos. Em 436, Teodósio II o desterrou para a cidade de Tebas, Egito, onde Nestório permaneceu até falecer, em 451.7 Nestório foi um profícuo escritor de língua grega. No entanto, a maior parte dos seus escritos, que chegaram até nós de maneira lacunar, se encon- tra em tradução siríaca. A primeira coleção de manuscritos de Nestório foi editada em meados do século XVII pelo escolástico Garnier. De acordo com F. Loofs (1914), primeiro pesquisador a examinar minu- ciosamente todo o corpus nestoriano, a reuni-lo e a editá-lo, em 1905, resta- ram 15 cartas e 30 sermões das obras de Nestório.8 6 HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p. 213; PRICE, Richard & GADDIS, Michael. The Acts of the Council of Chalcedon, v. 1. Liverpool: Liverpool University Press, 2005, p. 12-14. 7 VIDMAR, John. The Catholic Church through the ages: a history. New Jersey: Paulist Press, 2005, p. 60. 8 Entre as principais obras de Nestório, destacam-se: três cartas dogmáticas (duas enviadas ao bispo Celestino e uma ao bispo Cirilo), duas apologias (denominadas Tragoedia) e a obra Bazaar de Heráclides, repleta de interpolações, ver ALTANER, Berthold & STUIBER, Alfred. Patro- logia: vida, obras e doutrinas dos padres da Igreja. São Paulo: Paulinas, 1966, p. 338. Os sermões de Nestório foram preservados em documentos oficiais de alguns de seus oponentes, como no caso de Mário Mercator, que traduziu para o latim diversas homilias do bispo de Constanti- nopla, criando uma obra denominada Opera, ver BETHUNE-BAKER, James Franklin. Nestorius and his teachings: a fresh examination of the evidence. Eugene: Wipfand Stock, 1998, p. 24-25. Muitas homilias que chegaram até nós sob os nomes de outros autores são atribuídas a Nestório, a saber: três sermões de Atanásio, um de Hipólito, três de Anfilóquio de Antioquia, trinta e oito de Basílio de Selêucia e sete de João Crisóstomo, ver PRIESTLEY, Joseph & RUTT, John Towill. The theological and miscellaneous works, v. 7. Londres: J. Lindsay, 1831, p. 165. Em virtude da grande carência de fontes sobre o autor, adotamos a tradução latina de Mário Mercator, tendo em vista as importantes partes dos escritos do autor nela preservados que auxiliam na compreensão do pensamento do bispo de Constantinopla. 365 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) Antes de iniciar a análise documental, parece-nos pertinente fazer uma digressão sobre a escola de pensamento cristã de Antioquia – berço inte- lectual do bispo. O centro de estudos teve sua origem com o trabalho de Doroteu e Luciano de Samósata, por volta do ano de 290, quando este último resolveu publicar uma edição crítica da Septuaginta a partir da compilação de uma série de manuscritos gregos, supostamente9 traduções dos escri- tos massoréticos.10 A escola de Antioquia se consolidou por meio do apoio de seguidores provenientes de diversas partes do Império, configurando-se em polo de produção intelectual e doutrinal. Entre os pupilos mais ilustres da escola, destacam-se: Eusébio de Cesareia, Maris de Calcedônia, Leôncio de Antioquia, Eudóxio, Teognides de Niceia, Teodoro de Mopsuéstia, João Crisóstomo e o próprio Nestório. Do século III ao V, Antioquia era o único centro intelectual do cristianismo que poderia rivalizar com a escola de pensamento de Alexandria. Após o Concílio de Éfeso, o centro de estudos antioquenos entrou em declínio e foi transferido para Edessa e, posterior- mente, para Nisibe, ambas localizadas na Mesopotâmia.11 Sobre a formação do centro de estudos, é válido salientar que a cidade de Antioquia abrigava a maior comunidade judaica da Síria e se destacava como um dos centros de estudos rabínicos mais renomados.12 Lá, a religião judaica se dividia entre diferentes sinagogas e centros culturais. Assim como em Alexandria, ali havia um oficial (archon) que liderava o conselho dos anciãos (gerousiarchos), e este, por sua vez, chefiava os demais judeus.13 A influência da sinagoga, inclinada ao literalismo, foi sentida na interpretação das Escrituras por parte dos clérigos cristãos desde o início do século II. O mais provável é que o judaísmo tenha sido determinante para a formação exegética dos líderes da escola, condicionando, decisivamente, sua formulação doutrinária. 9 METZGER, Bruce. Antioch-on-the-Orontes. The Biblical Archaeologist. The american schoolsof oriental research, v. 11, n. 4, 1948, p. 71. 10 Os escritos massoréticos são 24 textos hebraicos divididos em três seções, a saber: a Torá (ou “Pentateuco”); o Nevi’im (ou “Profetas”); e o Ketuvim (ou “Escritos”). 11 FRANGIOTTI, Roque. História das heresias (séculos I-VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 124. 12 ZETTERHOLM, Magnus. The formation of Christianity in Antioch: a social-scientific approach to the sepa- ration between Judaism and Christianity. Nova York: Routledge, 2005, p. 58. 13 BROWN, Peter. The saint as exemplar in late Antiquity. Representations. University of California Press, n. 2, 1983, p. 31-32. 366 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) Longxi Zhang (1998), com base nas pesquisas de Meeks e Wilken (1978),14 vai além ao notar que a influência judaica no pensamento antioqueno ajuda a compreender a ideia de que as escolas de pensamento de Alexandria e de Antioquia não se colocavam em oposição doutrinária, como se houvesse dicotomia entre helenismo e hebraísmo. Um exame mais atento do contexto histórico de tal rivalidade, bem como da doutrina apregoada por ambas, revela que a interação entre as escolas não se estabeleceu com base em uma oposição tão rígida. Não obstante a inegável rivalidade entre os centros de estudo do cristianismo, a antítese radical foi mais uma construção do que uma realidade, pois ambas as escolas partiam de um background judaico. Apesar disso, as nuances entre elas eram inegáveis: em Alexandria havia um judaísmo helenístico filônico e em Antioquia, por sua vez, um judaísmo rabínico ortodoxo.15 Com isso, a diferença entre elas era mais evidente na prática exegética do que na soteriologia e na cristologia adotadas. O centro de estudos tornou-se popular por seu método exegético que evitava superinterpretações em detrimento do método de leitura e de co- mentário “literal” ou “histórico”. Os adeptos da escola de Antioquia prezavam pelo estudo das línguas originais, como o grego e o hebraico, e tinham como base uma leitura tipológica de sentido literal, para manter-se o mais fiel pos- sível aos textos da Escrituras.16 No que concerne à exegese em si, apesar de não excluir o recurso inter- pretativo da alegoria e o caráter metafórico de algumas passagens bíblicas, o centro de estudos de Antioquia recorria, predominantemente, à filologia, à lógica e à história para estabelecer uma explicação textual das Escrituras,17 14 MEEKS, Wayne & WILKEN, Robert Louis. Jews and Christians in Antioch in the first four centuries of the common era (sources for biblical study). Missoula: Scholars Press, 1978; ZHANG, Longxi. Mighty opposites: from dichotomies to differences in the comparative study of China. California: Stanford University Press, 1998, p. 91. 15 Parte da rivalidade entre as escolas começou com a propaganda difamatória empreendida pelos antioquenos contra o centro de estudos de Alexandria. Eles afirmavam que os alexandrinos não respeitavam a literalidade das Escrituras. Sócrates e Sozomeno, que compuseram duas histórias eclesiásticas no século V, eram abertamente contrários à interpretação alexandrina, chegando a se autointitularem antialexandrinos. Alguns exegetas antioquenos citavam as alegorias construídas pelos alexandrinos de forma depreciativa, como o caso de Diodoro de Tarso, no prefácio de sua obra Comentários dos Salmos. Não temos provas, contudo, de que os adeptos da escola de Alexandria faziam o mesmo com seus oponentes. 16 BROWN, Raymond Edward. The sensus plenior of Sacred Scripture. Baltimore: St. Mary’s University, 1955, p. 44. 17 NAIDU, Ashish. Transformed in Christ: Christology and the christian life in John Chrysostom. Eugene: Pickwick Publications, 2012, p. 49. 367 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) tendo em vista que os alicerces epistemológicos apregoados eram a dialética e a retórica de Aristóteles.18 O método interpretativo antioqueno consistia em duas operações: em primeiro lugar, fazer uma análise linguística para entender as variações na forma textual, observando o estilo, a dicção, a etimologia e as figuras de lin- guagem presentes no texto; em segundo lugar, procurar por informações de fundo, em um esforço para compreender o contexto do documento.19 Os integrantes da escola de pensamento de Antioquia não se opunham a uma leitura “espiritualizada” das Escrituras, desde que esta não contradis- sesse a historicidade da passagem. Os antioquenos recusavam-se a decifrar qualquer texto sagrado, uma vez que o valor da mensagem estava naquilo que fosse dito abertamente. Não era legítimo que a lógica da própria his- tória contada fosse negligenciada em favor da interpretação alegórica.20 Ou seja: o recurso alegórico se restringia àquilo que já havia sido reiterado pelo próprio documento, o que os mestres de Antioquia chamavam de aplicação da theoria. Assim, por exemplo, as passagens ditas messiânicas encontradas no Antigo Testamento só eram consideradas legítimas quando referenciadas pelo Novo Testamento.21 A cristologia formulada pela escola antioquena passava pelo crivo da exegética lógica com ênfase na palavra escrita.22 Ademais, havia uma ten- dência de concentrar-se nos aspectos factuais e históricos da vida humana de Cristo, o que incentivou muitos escritores de Antioquia a tratar do Jesus histórico. No que diz respeito à cristologia propriamente dita, a defesa pau- tava-se na distinção entre Deus (Logos) e Jesus (homem), pois se imaginava uma separação entre a realidade humana e a realidade divina de Cristo, na condição de dois atores distintos. Essa clivagem, de igual modo, era marcada por atributos e condições distintas, mas que, por vezes, eram imperceptíveis. Teodoro de Mopsuéstia defendia a ideia de que Deus (Logos) e Jesus (homem) 18 Aristóteles defendia a ideia de que a realidade somente é alcançada por meio da supremacia da razão. Para fazer a exegese de um texto, o homem precisava sistematizar e analisar todo o material existente com base em um método. 19 PORTER, Stanley. Dictionary of biblical criticism and interpretation. Londres e Nova York: Routledge, 2007, p. 14-15. 20 RICHARDSON, Cyril. Early christian fathers. Classics Ethereal Library, 1953. Disponível em: <http:// www.ccel.org/ccel/richardson/fathers> Acesso em: 11 jan. 2011, p. 14. 21 BROWN, Raymond Edward. The sensus plenior of Sacred Scripture. Baltimore: St. Mary’s University, 1955, p. 45. 22 KIHN, Heinrich. Exegesis and Empire in the Early Byzantine Mediterranean: Junillus Africanus. Tubingen: Mohr Siebeck, 2003, p. 96. 368 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) eram compostos por realidades plenas que integravam naturezas distintas (divina e humana respectivamente).23 Em um de seus escritos, o bispo afirma: [Jesus] nasceu de Maria e foi crucificado nos dias de Pôncio Pilatos (...). Ele nasceu da virgem Maria como um homem, de acordo com a lei da natureza humana, criado de uma mulher (...) Ele entrou no mundo por uma mulher segundo a lei dos filhos dos homens: “Ele estava sob a lei, para remir os que estavam sob a lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos” (...). [o apóstolo disse] que ele foi feito a partir de uma mulher para nos mostrar que foi formado da própria natureza humana, nascendo de acordo com a lei da natureza (...) Ele veio a Terra como uma semente de Abraão e por meio de quem Ele realizou tudo (...). Ele foi quem primeiro ressuscitou dentre os mortos, sendo transferido para uma vida imortal e imutável, tornando-se o cabeça e o renovador de toda a criação.24 No excerto anterior, Teodoro trata de enfatizar a natureza humana de Jesus com base em sua constituição biológica, em sua condição de filho de Maria e de descendente de Adão. Ele admite que Jesus foi crucificado – morto – e que ressuscitou com o intuito de garantir à humanidade a possibilidade de salvação. Nestório, por sua vez, defendia a tese de que, se Deus era imutável, se- ria impossível haver uma união substancial hipostática de duas naturezas perfeitas: a divina e a humana. Ele alegava que, em vez de haver uma inte- gração hipostática absoluta, a união entre o filho de Deus e o filho do ho- mem era explicada pelos seguintes conceitos: “união de habitação” (o Logos veio à Terra e habitou no corpo de Jesus); “união de afeição” (a relação entre Deus e Jesus seria como a de dois amigos); “união de operação” (o Logos teria se servido da humanidade de Jesus para cumprir seu propósito); e “união de graça” (a união só seria possível por meio da graça).25 Logo, Jesus Cristo, portador dessas duas naturezas, teria também duas filiações específicas e separadas, por ter nascido de Maria (filiação humana) e ter sido gerado por Deus (filiação divina), conforme o trecho a seguir: Mais uma vez, eu digo claramente: a ignorância é um perigo para a doutrina da fé. E eu vejo que muitos participantes de nossas assembleias são modestos e cultivam uma piedade ardente, mas são ignorantes e escorregam no ensino da fé. Eu digo isso não como uma repreensão para o povo, mas, de fato, os professores não têm tempo 23 HARDY, Edward. Christology of the Later Fathers. Philadelphia: The Westminster Press, 1954, p. 32. 24 THEODORE OF MOPSUESTIA. Commentary on the Nicene Creed, Symbolum Nicenum, IV. In: MIN- GANA, A. (trad.). Commentary of Theodore of Mopsuestiaon the Nicene Creed. New Jersey: Gorgias Press, 2009. 25 NESTORIUS. 1, 1, 48. The Bazaar of Heracleides. Translated from the Syriac and edited with Intro- duction, Notes and Appendices by G. R. Driver and L. Hodgson. Oxford: Clarendon Press, 1925. 369 rev. hist. (São Paulo), n. 174, p. 361-380, jan.-jun., 2016 Ludimila Caliman Campos http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2016.115381 Entre Christótokos e Theótokos: a construção da figura de Maria em Nestório de Constantinopla e Cirilo de Alexandria (séc. IV-V) para estabelecer um ensino exato da fé. Nosso Senhor Jesus Cristo é uma divindade consubstancial com o Pai, sendo Este criador da bem-aventurada Maria e o criador de tudo. Mas, na sua humanidade, Jesus é o filho de Maria santíssima; no entanto, ele é o nosso Senhor Jesus Cristo, duplamente divino e homem (...) sendo um filho por adesão. Então, ele nasceu nu de Maria, na condição de Filho de Deus. (...) Este Filho de Deus apresenta uma dupla natureza: a de Deus e a do homem.26 Jesus de Nazaré não poderia ser chamado de Deus, partindo-se de tal pressuposto, pois seria apenas um homem em que Deus habitava (Logos), e Maria não poderia ser intitulada mãe de Deus (Theotókos), porém mãe de Jesus, isto é, christotokos ou antropotokos.27 Nestório se recusava a aceitar, portanto, que Deus tivesse sofrido, mor- rido e ressuscitado. Para ele, Jesus – homem – foi o único a ter passado por isso. Ele acrescenta, ainda, que o nascimento de Jesus não tinha um caráter divino, porquanto tivesse vindo ao mundo naturalmente por meio de Maria, uma simples mulher. Assim, no pensamento do bispo, Maria havia dado à luz, simplesmente, a um ser humano chamado Jesus. Na obra Bazaar de Heráclides, ao travar um embate direto contra Cirilo, Nestório assevera:28 E eles [os hereges] desejam honrar o nome da “mãe de Deus”, já que dizem que Deus morreu. Apesar de os Pais da ekklesia terem resistido até a morte se opondo ao uso desse termo, os hereges insistem em dizer “mãe de Deus”, mesmo que em nenhum lugar foi empregado o vocábulo, nem o encontramos em quaisquer dos documentos dos conselhos (...). Quem, simplesmente, tem o título de teólogo, não deve ser chamado de teólogo, uma vez que um teólogo de fato e de nome deve estar pronto para lutar e para fazer o que tem que ser feito; ele não deve ser canal para a prática da blasfêmia, 26 NESTORIUS. Homilies fragments, 262. In: STANDER, H. F. Tradução de Acta Patristica et Byzantina 6, 1995. 27 FRANGIOTTI, Roque. História das heresias (séculos I-VII): conflitos ideológicos dentro do cristianismo. São Paulo: Paulus, 1995, p. 128. 28 Em 1895, um manuscrito do século VI foi encontrado por missionários americanos nas mon- tanhas de Konak, na Turquia. Parcialmente intacto, o trabalho intitulado Bazaar de Heráclides seria a cópia de um texto grego traduzido para o siríaco e atribuído a Nestório. Em 1915, o manuscrito foi destruído durante um massacre turco aos cristãos assírios, restando apenas algumas cópias do documento. O texto original foi escrito por Nestório durante seu exílio, no ano de 451, para negar a suposta heresia pela qual fora condenado no Concílio de Éfeso. Vale frisar que o título “Heráclides” faz referência, propositadamente, a um homem piedoso e de grande reputação, a fim de convencer os leitores da inocência de Nestório e da veracidade de sua doutrina, ver ANASTOS, M. Nestorius Was owthodox. Dumbarton oaks papers, trustees for Harvard University, v. 16, 1962, p. 121. 370
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