ebook img

em nome do pai PDF

24 Pages·2010·0.6 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview em nome do pai

Revista Crítica de Ciências Sociais, 87, Dezembro 2009: 171-194 SuSANA COSTA (S)em nome do pai o artigo tem como objectivo abordar pormenorizadamente os actores institucionais, as perícias e as paternidades no sistema judicial português, ao analisar o modo como são produzidas e avaliadas as provas – incluindo as provas científicas, testemunhais e documentais – nos processos de averiguação oficiosa de paternidade (aoP) e nos processos de acção de investigação de paternidade (aiP). São também abordados os modos de intervenção dos diferentes actores institucionais e a produção de conheci- mento público considerado fiável e robusto neste tipo de processos. tenta-se mostrar de que forma o desajustamento entre o edifício legal e o edifício da ciência no quadro das averiguações oficiosas de Paternidade pode levar à emergência da redefinição do direito e de uma reflexão alargada sobre a forma como a prova é incorporada na decisão judicial. Palavras‑chave: adn; averiguação oficiosa da Paternidade (aoP); paternidade; sistema judicial; sociologia do conhecimento. . introdução Até 966 a investigação da paternidade pertencia à iniciativa privada de cada cidadão. Com as alterações decorrentes do Código Civil de 966 pas‑ sou a ser da iniciativa do Ministério Público (MP) investigar a paternidade de todo o menor em cujo assento de nascimento estivesse omisso o nome do progenitor. Assim, o Estado, por intermédio do MP, passou a ter a seu cargo a função pública de regulação legal da paternidade sempre que nasça uma criança fora do casamento institucional e se verifique um assento de nascimento incompleto.2 Nessas situações, cabe ao funcionário do Registo Civil remeter ao Tribunal competente a certidão de nascimento incompleta, para propositura de uma averiguação oficiosa de paternidade (AOP), sujeita a duas premissas‑chave: primeiro, não podem ter decorrido mais de dois  Este artigo é baseado na tese de doutoramento da autora, intitulada Filhos da (sua) mãe. Actores institucionais, perícias e paternidades no sistema judicial português, apresentada em 2009 na Facul‑ dade de Economia da Universidade de Coimbra e financiada pela FCT (SFRH/BD7938/2004). Agradeço à Ana Raquel Matos o precioso trabalho de correcção. 2 Cf. artigo 864º do Código Civil. 72 | Susana Costa anos sobre o nascimento do menor3 e, segundo, não pode ser intentada a acção tratando‑se de casos que envolvam relações de parentesco no segundo grau da linha colateral entre a mãe e o pretenso pai do menor (Machado, 2002 e 2007; Oliveira, 2003). Iniciava‑se uma época marcada pela investigação compulsiva da pater‑ nidade que teria repercussões até à actualidade. Com a Reforma da Filiação de 977 é introduzida uma medida legislativa que viria a permitir a utilização dos exames científicos como meio de prova na investigação judicial de paternidade4 e viria “(…) inaugurar a abertura à denominada verdade biológica com base em métodos cientificamente provados, estabelecendo o princípio de que os laços de sangue entre o pai e o filho são a principal determinante do reconhecimento judicial” (Machado, 2007: 2). É, finalmente, com a introdução progressiva do elemento científico no auxílio à justiça que, cada vez mais, se reúnem as condições para fazer coincidir a verdade jurídica com a verdade biológica. Graças aos recursos da genética e à maior disponibilidade dos juristas para aceitar as provas científicas, abria‑se caminho para o ADN ser considerado um recurso útil em tribunal, permitindo reduzir o espaço de incerteza associado às decisões sobre a atribuição de paternidades, anunciando‑se uma redução drástica da incerteza associada quer aos casos criminais, quer aos casos de investi‑ gação de paternidade. Desta forma, o ADN constituía‑se como “uma espécie de panaceia para os principais males de que enferma o sistema judicial português na actualidade” (Silva e Machado, 2008: 57). Através do recurso à ciência estar‑se‑ia, por fim, numa fase em que a “prova fraca” ditada pelas provas tradicionais – prova documental, prova testemunhal e critérios‑chave associados à avaliação da paternidade: pater ist est quem nuptiae demonstrat)5, prova de exclusividade das relações sexuais, período legal de concepção – poderia dar lugar a uma prova que permitiria, mais do que uma presunção forte, a certeza (Oliveira, 2003). A introdução do ADN no sistema judicial não apenas permite circuns‑ crever a dúvida, mas também tornar o sistema menos moroso e com res‑ postas alegadamente menos dependentes da difícil ponderação de elemen‑ tos heterogéneos e de fiabilidade variável, de testemunhos pouco credíveis ou decisões tomadas com base nas parecenças entre o Pretenso Pai (PP) e o menor ou baseadas no comportamento da mãe (Machado, 2002). 3 Depois desse prazo a lei também permite a instauração da investigação da paternidade durante a maioridade do filho ou nos dois anos após a sua emancipação. 4 Decreto‑lei nº 496/77, de 25 de Novembro, transposto para o artigo 80º do Código Civil. 5 O pai é o marido da mãe (máxima latina ainda hoje com forte peso na ponderação da prova). (S)em nome do pai | 73 Parecia ter‑se chegado a uma época em que, finalmente, poderia ser demonstrada de maneira robusta a paternidade biológica e, assim, adequar as decisões judiciais sobre a atribuição da paternidade à alegada verdade biológica revelada pelos procedimentos científicos. 2. As fronteiras e as articulações entre o social e o natural à luz do conceito de co‑produção Atendendo ao facto de hoje a AOP estar amplamente dependente do cri‑ tério biológico e, consequentemente, da utilização do perfil de ADN para aferir sobre a existência desse vínculo, importa analisar que tipo de uso é feito dessa tecnologia ao serviço da justiça e que tipo de relação é mantida entre a ciência e o direito de forma a tornar admissível a prova científica no contexto judicial. No caso aqui em análise tenta‑se perceber se existe co‑produção de conhecimento entre a ciência e o direito, se existem barreiras ou delimitação de fronteiras entre esses conhecimentos (Galison e Stump, 996; Shapin e Schaffer, 985; Costa et al., 2002; Costa, 2003) e de que forma é que a utilização do ADN permite ou não a colaboração entre estas duas áreas de saber(es). O estudo enquadra‑se na perspectiva do idioma co‑producionista, enten‑ dido como “(…) uma forma de interpretar e prestar contas para fenóme‑ nos complexos de forma a evitar as supressões e as omissões estratégicas da maioria das outras perspectivas das ciências sociais” (Jasanoff, 2004: 3). Esta perspectiva, ao procurar escrever e reescrever a fronteira entre o social e o natural, enquadra a aplicação da ciência no mundo social, ao mostrar, por um lado, a autonomia dos vários campos do saber e, por outro, as articula‑ ções dos diversos saberes. Deste modo, pretende‑se dar conta da emergência das complementaridades e articulações entre os diversos modos de conhecer e de saber (Callon, apud Grint e Woolgar, 997). Nesse sentido, tornou‑se necessário perceber de que forma os cidadãos participam nesses processos e de que maneira a politização da ciência afecta os cidadãos e o significado de cidadania (Jasanoff, 2005). Uma abordagem baseada no conceito de epis‑ temologia cívica, entendido como um modo de produção e validação do conhecimento público, permitiu explorar o processo que está associado ao tema central deste estudo. A epistemologia cívica é entendida por Jasanoff como estando associada “(…) às práticas institucionalizadas pelas quais os membros de uma dada sociedade testam e desenvolvem as pretensões do conhecimento com base para fazer escolhas colectivas” (ibidem: 255). Em Portugal, a questão que este trabalho levanta é a de que chegámos a um momento em que estamos a construir uma nova epistemologia cívica 74 | Susana Costa entre a ciência e o direito, em que a perícia científica assume um papel cen‑ tral, ainda que a credibilidade das provas tradicionais não seja ultrapassada. Será interessante, então, analisar como é que se está a reconstruir uma nova epistemologia cívica, no sentido de criar um novo regime de credibi‑ lidade, que traz novas exigências aos cidadãos: celeridade, mais certeza, mais rigor. Impõe‑se ainda perceber “(…) como é que (…) o surgimento da ciência como um espaço de política visível afectou o papel e o significado da própria cidadania”(ibidem: 247). À luz dos conceitos de co‑produção e de epistemologia cívica tenta‑se perceber de que forma é que a entrada em cena da biologia no mundo do direito se opera. Procura‑se compreender de que forma é que as diferentes áreas do saber aqui envolvidas, e os diferentes actores que delas derivam, assumem e desenvolvem os seus papéis numa nova configuração de conhe‑ cimentos e de práticas, a partir de uma realidade concreta: o uso do ADN na AOP. Importa também entender como se faz essa articulação entre as dife‑ rentes “ecologias do saber” e as diferentes “ecologias e práticas” (Santos, 2002 e 2004) e como é que a co‑produção é aqui realizada, não só entre as diferentes disciplinas, mas também entre os diferentes actores intervenien‑ tes. Pretende‑se finalmente questionar de que forma é que a produção da prova científica é avaliada tendo em conta o duplo processo a que está sub‑ metida: por um lado, a prova científica tem que reger‑se pelos critérios da “boa prática laboratorial”, sendo validada por critérios puramente cientí‑ ficos; mas por outro lado, a prova científica está também sujeita ao escru‑ tínio judicial e, nesse campo, terá de igual forma que cumprir os critérios jurídicos para poder ser admissível em tribunal. 3. (S)em Nome do Pai – uma breve análise quantitativa dos processos de AOP num tribunal do Norte de Portugal Este trabalho derivou de quatro hipóteses centrais. A primeira hipótese foi a de que a actuação do Ministério Público pode indiciar o incumprimento da sua obrigação legal de cuidar dos interesses do menor, especialmente do seu direito a conhecer os seus pais biológicos; a segunda foi a de que a morosidade da justiça leva a que muitos casos prescrevam sem que seja identificado o pai biológico do menor; a terceira foi a de que o comporta‑ mento moral e sexual da mãe continua a condicionar o desfecho dos pro‑ cessos de AOP; e a quarta foi a de que o ADN é usado discricionariamente em função dos casos e das suas características. O estudo reporta‑se à análise de dados fornecidos por um Tribunal de Família e Menores localizado no Norte de Portugal, que designei “Tribunal (S)em nome do pai | 75 do Senhor da Pedra”,6 onde permaneci ao longo do ano de 2008, tendo analisado processos entrados entre Fevereiro de 2007 e Outubro de 2008.8 Os processos de AOP analisados representam ¼ dos processos desta natureza no distrito judicial, sendo que a nível nacional o Tribunal do Senhor da Pedra representa 6% dos processos de AOP nacionais. Foram analisados 23 processos de AOP e 9 processos de acção de investigação de paternidade (AIP), com base numa grelha previamente elaborada. Adoptou‑se o método de caso alargado (Burawoy et al., 99 e 2000), que se baseia na análise aprofundada de um conjunto de casos que concentram de forma densa e exemplar características que permitem elu‑ cidar sobre aspectos cruciais da problemática. O trabalho de terreno foi sendo complementado com entrevistas a cientistas e técnicos de laboratório, mães que passaram por processos de AOP,9 magistrados judiciais, magis‑ trados do MP e técnicos de serviço social. Embora não sendo extrapoláveis para o conjunto da sociedade portu‑ guesa, as conclusões do estudo permitem uma aproximação precisa e pormenorizada, ainda que localizada, ao funcionamento do sistema no que diz respeito às AOPs. Não cabe no âmbito deste artigo evidenciar exaustivamente os dados quantitativos apurados. Consequentemente, referir‑se‑ão de forma sucinta alguns desses dados que permitem ligar com a análise qualitativa elaborada e que nos remetem para as principais conclusões deste estudo. Os 23 processos de AOP objecto de estudo foram divididos em qua‑ tro categorias simplificadas, que permitem perceber não apenas como ter‑ minaram estes casos, mas parte das razões que levam a que o pai biológico seja identificado, ou, pelo contrário, a sua identidade permaneça incógnita Assim, foi considerada como primeira categoria a “perfilhação voluntá‑ ria” (PV), que diz respeito, unicamente, aos processos em que o pai, por sua livre iniciativa, decide perfilhar o menor. Outros processos há, porém, que, embora também terminem em perfilhação voluntária (tendo em conta a nomenclatura utilizada pelos tribunais), são casos em que só após a inter‑ venção judicial e pericial o pai biológico se dispõe a perfilhar o menor. Estes processos foram designados por “perfilhação condicionada pelo ADN” (PcondADN). Uma terceira categoria diz respeito aos processos 6 Todos os nomes, incluindo o do tribunal, são fictícios. 7 Data de inauguração deste tribunal. 8 Últimos processos concluídos à data da recolha da amostra. 9 No âmbito deste estudo era intenção da autora ter entrevistado, igualmente, pretensos pais. Não obstante, tal não foi possível dada a sua manifesta indisponibilidade para conversar ou prestar declarações. 76 | Susana Costa que terminaram como “inviáveis”, ou seja, aqueles casos em que, com ou sem recurso à tecnologia, não se chegou à verdade biológica e, por conse‑ guinte, por diversos motivos, o menor não viu estabelecido por lei o seu verdadeiro pai biológico. Por último, a categoria “outros” diz respeito a casos que, embora escassos, não se enquadram em nenhuma das restantes categorias; são processos que, por lapso ou erro do tribunal competente, terminaram antes de iniciar. As PV ocupam um lugar de destaque nos processos de AOP. No tribunal estudado, em termos práticos, 8% dos processos terminam em PV, sendo que, em 50% deles se trata, na realidade, de PV e em 3% de casos estamos a falar de perfilhações efectuadas após a realização do teste de ADN. No entanto, em 8% dos casos estudados nem mesmo após a intervenção compul‑ siva do Estado se consegue atribuir a paternidade biológica destes menores. Desta primeira análise pode concluir‑se que a esmagadora maioria dos processos tem o fim esperado, ou seja, a identificação do pai biológico do menor. Mas também permite concluir que: (a) em 50% dos processos alcança‑se o objectivo porque o PP se disponibiliza a colaborar; (b) em 3% dos casos, não fosse a intervenção da ciência e o uso cada vez mais genera‑ lizado do teste de ADN, provavelmente a identidade destes PPs permane‑ ceria incógnita. Isto sugere a existência de perfilhações que decorrem de uma declaração da ciência (PcondADN), isto é, há perfilhação porque a ciência o determi‑ nou e se aceitou a verdade ditada pela ciência; e há perfilhações baseadas numa declaração de vontade (PV), não sendo aqui possível aferir pela existência de um vínculo biológico. Esta distinção revelou‑se da máxima relevância para a análise, já que viria a permitir demonstrar como os tribunais concluem pela existência do vínculo biológico e de que forma a ciência está a contribuir para essa descoberta. No total de processos de AOP também foi possível concluir que apenas em 35% se recorreu ao teste de ADN e que, na grande maioria (65%), o ADN não foi chamado a dar o seu contributo. Porém, se atentarmos nos casos que terminaram por inviabilidade, verificamos que apenas em 8% o MP soli‑ citou a realização do teste de ADN, não o tendo feito nos restantes 82%. Obviamente, algumas destas inviabilidades estão associadas a situações em que a mãe não quer ou não sabe identificar o PP do menor e, como tal, torna‑se manifestamente inviável ao MP determinar a realização do teste. No entanto, da análise dos processos de AOP pode concluir‑se estar‑se na presença de um número considerável de inviabilidades em que o teste de ADN não foi realizado por outras razões, o que pode indiciar a existência de situações que mais à frente serão descritas como casos excepcionais da lei. (S)em nome do pai | 77 Outra das conclusões que a análise quantitativa dos dados nos permite retirar é que o comportamento da mãe/mulher continua, ainda, a ser alvo de dúvidas, quer por parte dos PPs envolvidos no processo, quer por parte do próprio sistema judicial. No entanto, não foi possível demonstrar que a mãe omite a verdade. Ela identifica o PP, conta a gravidez ao PP (não o fazendo apenas em 8% das situações) e raramente entra em contradição. O PP, por seu turno, tende mais a fugir à justiça nas situações de perfilhação condicionada pelo ADN do que nas perfilhações voluntárias ou nas invia‑ bilidades. O PP duvida, num número significativo de casos, do testemunho prestado pela mãe,0 muitas vezes sua companheira por longos anos, aca‑ bando por perfilhar o menor apenas quando confrontado com a prova científica. Um aspecto a realçar é o facto de o PP duvidar da mãe, mas não duvidar do ADN.2 As mulheres estrangeiras apresentam maior dificuldade em provar a paternidade do pai e os pais estrangeiros são mais difíceis de localizar e, portanto, de assumir a paternidade. O facto de haver muitas mães solteiras, mas que podem viver marital‑ mente com o companheiro ou namorado, leva à instauração de um número muito elevado de processos de AOP que acabam em perfilhação voluntária, aparentemente desnecessária. A existência de muitas mães ou PPs que são casados, mas sendo o cônjuge um terceiro elemento, alegadamente não envolvido na geração do menor, leva também a muitos processos de AOP. Esta situação, em parte, foi colmatada com o afastamento da presunção de paternidade presumida,3 mas ainda não resolve todas as situações: resolve a situação do ex‑marido da mãe, mas não resolve a do PP do menor que também pode ser casado. A grande maioria dos casos em que o pai não está identificado no registo de nascimento da criança dá origem a uma AOP. E o que deveria ser apenas um procedimento preliminar à fase judicial acaba, na grande maioria das vezes, por fechar o caso sem que os processos tenham de ser judicializados. Desta forma, outra conclusão a que parece legítimo chegar é a de que se assiste a uma desjudicialização deste tipo de processos, com uma clara 0 Em 20% dos casos o PP alega o mau comportamento da mãe ou relacionamento com outro(s) homem(ns).  Apenas 7% dos menores nascem de relações esporádicas e em 23% dos processos as relações são duradouras, indo desde os dois aos dez anos de envolvimento entre os progenitores. 33% das mães mantêm uma relação amorosa com o PP e em 24% dos casos têm uma relação marital. 2 Após realização do teste de ADN, apenas 3% dos PPs mantêm as dúvidas quanto à paterni‑ dade. 3 O Decreto‑Lei nº 63/95, de 3 de Julho, retirou das competências do tribunal e remeteu para o conservador o afastamento a presunção da paternidade. Mas é em 200 que à própria mãe ou ao marido é possibilitada a realização da declaração de afastamento da paternidade presumida do marido da mãe. 78 | Susana Costa tendência à sua resolução na fase preliminar. No entanto, se na fase preli‑ minar a prova científica parece ter um peso significativo na obtenção do despacho de viabilidade ou de inviabilidade, em fase judicial a prova cien‑ tífica perde valor em detrimento da prova documental ou testemunhal, que adquire uma importância decisiva. Tal não significa, porém, que menos crianças vejam o seu pai identificado pelo facto de não se dispor de prova científica. Na verdade, e embora o ADN tenha aqui presença pouco signi‑ ficativa, a justiça consegue, em 67% dos processos de AIP, a perfilhação por decisão judicial, levando a que, através das provas ditas tradicionais, o PP perfilhe o menor: perfilhação por decisão judicial (PDJ). Na falta de prova científica que sustente a petição, as provas documental e testemunhal ganham peso. Da amostra estudada, pode considerar‑se que os processos de AOP são, na sua maioria, casos em que ou a mãe é casada com outra pessoa e, por isso, é necessário o afastamento da paternidade presumida para que o ver‑ dadeiro pai biológico possa perfilhar o menor, ou os progenitores não são casados um com o outro, o que obriga à investigação por parte do MP. Estes casos constituem cerca de metade dos processos estudados. Outros casos há em que após algumas diligências perante as dúvidas (fundadas ou infun‑ dadas) do PP é necessário o recurso ao ADN para o esclarecimento da verdade e estes dois tipos de casos podem ser considerados como os que estão tipificados na lei. No entanto, há também casos (sobretudo aqueles em que não se consegue identificar a verdade biológica) que podem ser considerados situações que extravasam a lei e, como tal, merecem uma análise diferenciada. 4. Os casos tipificados na lei Um primeiro exemplo pode ser considerado uma manifestação exemplar dessa situação. Como a lei determina que o pai é o marido da mãe (“pater ist est quem nuptiae demonstrat”), caso a mãe ou o pai sejam casados com uma ter‑ ceira pessoa é necessário atestar que não existe posse de estado4 em rela‑ ção àquele menor. No entanto, nestes casos, não há recurso a prova cien‑ tífica, apenas a palavra da mãe e do PP valem como verdadeiras. Basta o PP anuir com as declarações da mãe, aceitando perfilhar o menor, e nada mais lhe é pedido. Não há, digamos assim, uma “certificação” de paterni‑ dade pela ciência. Embora conste o nome de dois progenitores no registo 4 É um aspecto sociojurídico. É o pai aquele que, aos olhos da sociedade se comporta como tal, isto é, assume os direitos e os deveres perante essa criança. (S)em nome do pai | 79 de nascimento, não é possível provar que estes sejam, realmente, os pais biológicos daquela criança, assentando a definição legal de tal condição numa declaração de vontade. O mesmo já não se passa relativamente a situações mais conflituais, como os casos em que existe perfilhação voluntária, mas só após a execução do teste de ADN, ou seja, depois do apuramento científico dos resultados e daquilo que se designou por perfilhação condicionada pelo ADN. Neste segundo exemplo é elucidativa a forma como o PP tenta “fugir à justiça”, não assumindo as suas responsabilidades. Também se revela aqui o peso da burocracia excessiva que norteia as AOPs e as dificuldades em circular informação de uns actores para outros. Este caso permite verificar que, em determinados contextos, é a persistência do MP que leva a que a paternidade biológica seja determinada, ao contrário de outros casos em que não é visível, por parte do MP, o mesmo zelo. Este último aspecto é demonstrado com outro exemplo. Embora tratando‑se de um caso em que foi feito uso da ciência no auxílio à justiça, não foi possível determinar a identidade do pai biológico, apesar de todas as diligências nesse sentido. Uma característica deste caso torna‑o exemplar: o facto de a mãe não conseguir, de facto, identificar o pai biológico do seu filho leva a que o MP entenda que após duas tentativas mal sucedidas para identificar o verdadeiro pai não haja lugar a diligências adicionais no sen‑ tido do apuramento da sua identidade. Parece, assim, e também por comparação com outros processos analisados neste estudo, que o MP tenta, no máximo, a identificação de dois pretensos pais: se nenhum dos dois se revelar o pai biológico, o processo acaba por ser arquivado com despacho de inviabilidade. Por fim, os casos que terminam por decisão de viabilidade e que seguem para a fase judicializada, embora escassos, revelam que sempre que em fase de AOP o teste de ADN é solicitado, realizado e o seu resultado positivo, o MP encontra‑se em condições para concluir pela viabilidade da acção, regra geral, levando à consequente perfilhação por parte do progenitor. No entanto, em casos em que os elementos de prova recolhidos indiciam que determinado indivíduo é o pai do menor, mas este se recusa a realizar os exames, podem estar criadas as condições para remeter a situação para a fase de AIP. Nesta fase, a sentença é baseada nas declarações da mãe e outras provas de carácter testemunhal, sugerindo que, ao contrário do que se passa nos processos de AOP, em AIP a prova científica pode não ser determinante para o apuramento dos factos. Os quatro casos típicos apresentados permitem perceber os procedimen‑ tos comuns a processos que envolvem a identificação dos pais biológicos 80 | Susana Costa de menores. Os procedimentos aqui retratados são, de certa forma, levados às últimas consequências pelos actores judiciais, demonstrando, apesar dos constrangimentos burocráticos,5 uma eficácia elevada. No entanto, há casos em que tal não acontece, tendo merecido tratamento autónomo pelas suas peculiaridades. Consideram‑se esses casos como exemplares do que se designa de excepção à lei, culminando, a maioria das vezes, no insucesso do MP na busca da identidade do pai do menor. 5. As excepções à lei Analisam‑se, de forma breve, algumas dessas peculiaridades, tendo por refe‑ rência 0 estudos de caso. No estudo de caso , o facto de a mãe ter indicado como PP do menor um seu irmão, levou a que o MP considerasse de imediato tratar‑se de uma situação de incesto6 e, como tal, que não deveria aprofundar‑se mais o caso. Invoca‑se, como a lei o determina, o superior interesse da criança, neste caso claramente identificado com a reposição da ordem natural e tradicional da família. Tratando‑se de uma situação que põe em causa a reputação e a inte‑ gridade da instituição familiar, a referência explícita ao interesse do menor é subordinada à necessidade de lidar com a situação de incesto. A identifi‑ cação do pai biológico, neste caso, não significa que seja de facto aplicado o princípio de que o menor tem direito a conhecer o seu pai e o Estado tem o dever de fazer cumprir esse direito. Assim, embora sendo assumidas como verdadeiras as declarações prestadas pela mãe de que o seu filho seria fruto de uma relação incestuosa com um seu irmão, a lei não permite a perfilha‑ ção de parentes em linha colateral. A inviabilidade da acção era clara e, por‑ tanto, qualquer diligência suplementar tornava‑se supérflua. O estudo de caso 2, embora referindo‑se a uma situação de viabilidade, tem contornos particularmente interessantes, pondo em confronto as nor‑ mas da ciência e as normas do direito. É especialmente relevante o modo como o caso torna visível a ponderação variável da prova científica. Embora o PP faça prova científica da sua condição de esterilidade, o MP manifesta dúvidas acerca dessa prova e pede uma contra‑análise, neste caso uma 5 Em média, nos processos de AOP analisados, são efectuadas 25 diligências por processo. 6 O incesto não é criminalmente punido em muitas sociedades, mas antes, moralmente conde‑ nado. No nosso código penal não existe qualquer referência ao incesto como crime, no entanto, a relação incestuosa pode estar (e muitas vezes está) relacionada com crime de abuso sexual, esse sim, criminalmente punido. No contexto aqui em análise, o incesto em termos jurídicos, apenas se torna relevante pelo facto de em AOP não ser possível prosseguir a investigação de casos que resultem de relações incestuosas mostrando que por detrás desta proibição moral se encontra a ideia de protecção e dignidade da família e dos bons costumes, protecção da intimidade e protecção contra doenças genéticas e hereditárias.

Description:
e documentais – nos processos de averiguação oficiosa de paternidade (aoP) e Palavras‑chave: adn; averiguação oficiosa da Paternidade (aoP);
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.