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elementos para a caracterização tridimensional da dogmática jurídica: o modelo dreier-alexy PDF

19 Pages·2006·0.06 MB·Portuguese
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ELEMENTOS PARA A CARACTERIZAÇÃO TRIDIMENSIONAL DA DOGMÁTICA JURÍDICA: O MODELO DREIER-ALEXY Guilherme Soares * Sumário: Introdução; 1. A duplicação do saber jurídico na obra de Hans Kelsen; 2. O discurso dogmático e o deslocamento funcional da teoria jurídica; 3. A dogmática jurídica tradicional; 4. Uma dogmática jurídi- ca tridimensional (Dreier-Alexy); 4.1. Dimensão analítica; 4.2. Dimen- são empírica; 4.3. Dimensão normativa; Considerações finais; Referên- cias bibliográficas. Introdução A dogmática jurídica sempre foi objeto das mais diferentes considera- ções teóricas, desde pontos de vista que a qualificam como ciência lógico- matemática, passando por perspectivas que a identificam com uma técnica moderna de solução de conflitos sociais, até os discursos críticos, que afir- mam seu fundamento ideológico e opressor. Longe de querer opinar a fa- vor de uma dessas correntes, esse trabalho parte da premissa de que existe um conhecimento jurídico-dogmático autônomo, desenvolvido por uma comunidade específica dentro do corpo social, os juristas. E, além disso, que este conhecimento tem uma função social a cumprir no contexto do Estado Democrático de Direito. O objetivo que se coloca é apresentar um modelo dogmático realista na medida em que parte daquilo que identifica como atividade do jurista prático, ao mesmo tempo conhecedor das raízes históricas da dogmática jurídica e sintonizado com propostas teórico-jurídicas substancialistas, que não enxergam o Direito como estrutura formal, mas como instrumento a serviço de um conjunto de valores historicamente consolidados da civiliza- * Mestrando no CPGD/UFSC, área Direito, Estado e Sociedade; sub-área Direito do Estado. Bol- sista da CAPES. ção ocidental que podem ser representados pela tríade dignidade da pes- soa humana, liberdade e igualdade. Essa proposta, necessariamente polifacética, é apresentada pelos pro- fessores alemães Ralf Dreier e Robert Alexy, através de um modelo dogmático tridimensional. Este texto pretende descrever os pontos essenci- ais da sua construção, levando em conta as raízes teóricas que os influenci- aram, sobretudo a obra de Hans Kelsen, e contextualizando sua obra no ambiente teórico da segunda metade do séc. XX, permeado pela virada prag- mático-funcionalista da teoria jurídica.1 1. A duplicação do saber jurídico na obra de Hans Kelsen A obra de Hans Kelsen situa-se no ápice do processo de autono- mização do saber jurídico. Fenômeno típico da modernidade, ele ocorre paralelamente à autonomização do Direito em relação às outras ordens sociais (moral, bons costumes, regras de convivência familiar etc.). O que se vê é um processo de diferenciação do Direito como ordem normativa coercitiva da conduta humana em relação a outras ordens normativas, o que só é possível com o primado do monismo jurídico estatal e das leis escritas. É, inicialmente, o advento do constitucionalismo com a promul- gação da Constituição americana e das demais que a seguiram e, sobretu- do, o processo de codificação na Europa continental, cujo marco é o Códi- go de Napoleão, de 1804, que permitem o surgimento do que hoje conhe- cemos como Direito positivo: o discurso (normalmente reduzido à forma escrita) normativo coercitivo oriundo de uma autoridade que detém o monopólio da força em determinado território. Sem o direito positivo não haveria a consolidação de um saber jurídi- co, saber pertencente a um grupo específico de pessoas no interior do grupo 1 No Brasil, esta virada, em nível metadogmático, é sustentada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, com sua proposta de definir a dogmática jurídica como «tecnologia» (FERRAZ JR.:1977;45), por Eros Grau, ao conceituar a Dogmática como «prudência» (GRAU:1998;77) e Vera Regina Pereira de Andrade, embora esta não abdique de seu caráter científico (ANDRADE: 1996;112). Já a des- crição do modelo Dreier-Alexy pode ser encontrada nas obras de Willis Santiago Guerra Filho citadas a seguir. 70 social, os juristas. Com isso o saber dos juristas passou a se diferenciar do saber dos filósofos, historiadores, sociólogos etc. Kelsen levou essa propos- ta às últimas conseqüências. Sua preocupação, ao escrever a Teoria Pura do Direito, não era apenas descrever os elementos essenciais da experiência jurídica, mas elaborar um saber científico sobre o Direito, uma verdadeira ciência do Direito, no mesmo estágio das ciências naturais de seu tempo. Seu objetivo era a formulação de uma teoria jurídica pura, isenta de qual- quer ideologia política, consciente da especificidade de seu objeto e possui- dora dos atributos de exatidão e objetividade. Por isso, fogem das suas pre- ocupações questionamentos a respeito do ser do Direito, da essência do fenômeno jurídico. Ele busca apenas definir o Direito na sua face que possi- bilite a construção de um sistema de conhecimento autônomo em relação aos demais e que possa ser qualificado como científico, segundo as exigên- cias do pensamento epistemológico hegemônico na sua época. O Direito é, para Kelsen, um conjunto de normas positivadas, um con- junto de enunciados de dever-ser. O papel da ciência jurídica, que pretende conhecer de maneira neutra esse conjunto de normas, é descrevê-las segun- do a estrutura do discurso normativo: dado um fato A como hipótese, deve ser um fato B (sanção) como conseqüência. Logo, se a linguagem do Direito opera com normas, a metalinguagem, que é a ciência jurídica, lida com proposições jurídicas, enunciados que descrevem normas. Se, com relação às normas, impõe-se perguntar sobre sua validade — conformidade com a norma fundamental do sistema — com relação às proposições impugna-se a sua veracidade, na medida que elas fazem parte de um discurso descriti- vo e não prescritivo, como ocorre com as normas. À ciência do Direito cabe, então, descrever a estrutura do ordena- mento jurídico, cuja unidade mínima é a norma. Entretanto, o próprio Kelsen reconhece que esta proposta desconsidera o trabalho do jurista prático, daquele que atua cotidianamente aplicando normas a conflitos concretos da vida de relação, manipulando e produzindo um saber aqui denominado jurisprudência, pois como ele mesmo disse, “a aplicação do direito é simultaneamente produção do Direito” (1995;260). Assim, não só um discurso descritivo resulta do labor dos juristas, mas também, um discurso prescritivo. 71 O reflexo necessário dessas assertivas foi a diferenciação entre inter- pretação autêntica e não autêntica feita pelo autor austríaco. A primeira é aquela que cria Direito, refere-se aos atos decisionais dos órgãos do Estado; a segunda abarca todas as demais, inclusive a interpretação do cientista do Direito. A interpretação científica, comprometida com a pureza metodo- lógica, é pura determinação cognoscitiva do significado da norma, o que, diante da relativa indeterminação do sentido do conteúdo das normas ex- pressas em linguagem ordinária e não rigorosa como a das ciências, possi- bilita apenas o estabelecimento de uma moldura dentro na qual se inserem uma série de significações possíveis, sem que se possa apontar qual delas é correta. O juiz, no entanto, deve dar somente uma resposta ao caso concre- to, devendo escolher um sentido dentre aqueles cognoscitivamente estabe- lecidos, ato que só é possível no domínio da vontade do julgador. Portanto, a interpretação autêntica, fixação do sentido da norma com vistas à aplica- ção em um caso concreto, só é jurídica (coberta pela ciência jurídica) até o momento em que define a moldura.2 Daí em diante torna-se um ato políti- co, livre das inclinações arbitrárias do juiz e, conseqüentemente, não passí- vel de controle racional. Como produto final, enquanto o resultado do tra- balho do cientista é a proposição, um enunciado descritivo; de atividade do jurista prático resulta uma norma, enunciado prescritivo. Ao mesmo tempo, não há como olvidar que o raciocínio jurídico não se limita à mera função que Kelsen atribuiu à ciência jurídica. Existe uma série de conhecimentos elaborados pelos juristas, levados em conta pelo juiz na decisão do caso concreto, que não se submetem aos critérios de cientificidade que nortearam o autor. Isto porque o jurista atuante dentro de um sistema jurídico qualquer, seja ele civilista, penalista, administrativista ou de qualquer outro ramo específico do Direito de um Estado, não traba- lha apenas com a estrutura formal do ordenamento, mas com o seu conteú- do. E, levando a sério o conteúdo das normas jurídicas, é impossível cons- 2 São significativas as palavras de Tércio Sampaio Ferraz Júnior, que deixa às claras o reducionismo da proposta de Kelsen: “A problemática do sentido faz com que a ciência do Direito apareça como ciência cultural, não necessariamente o produto metódico de procedimentos formais, dedutivos e indutivos, mas um conhecimento que constitui uma unidade imanente, de base concreta e real que repousa sobre valorações” (1977; 38). 72 truir-se um saber verdadeiramente científico, ao menos no padrão de ciên- cia do positivismo, como aliás já havia notado Kirchmann.3 Verifica-se, assim, aquilo que Norberto Bobbio chamou de duplicação do saber jurídico na esfera da experiência jurídica.4 Um contraste entre a concepção de ciência e a prática do jurista,5 desenvolvendo-se, de um lado, uma jurisprudência que não é ciência e, de outro, um saber modelado pelo esquema científico verdadeiro e próprio, diante do qual a jurisprudência é uma cópia grosseira. Como conseqüência, traslada-se o ideal científico para fora do saber prático dos juristas, depositando-o na construção de uma ci- ência do Direito distinta da jurisprudência, sem que se possa ignorar a exis- tência de pontos de contato entre ambas. 3 Em conferência pronunciada em 1847, sustentava Kirchmann que a jurisprudência carece de va- lor como ciência teórica, não constituindo uma ciência conforme o autêntico conceito do termo. O motivo reside em seu objeto: o Direito, visto, por ele, numa perspectiva substancial, como o conjunto das instituições jurídicas (matrimônio, Família, propriedade, contratos, herança etc.), cuja mutabilidade impede a formulação de leis gerais e universalmente válidas como pleiteava a ciência de então (1949; 251-286). Sobre a cientificidade do raciocínio jurídico dogmático, segue-se o que diz a Prof. Vera Andrade: “Se inexiste um acordo sobre o real estatuto da Dogmática Jurí- dica e o âmbito de uma Metadogmática caracteriza-se pela convivência contraditória entre atri- buições de estatutos de diferente natureza, é porque ela, parece-nos então demonstrado, não corresponde inteira e essencialmente a não ser por um artificialismo, nem às matrizes científicas disponíveis nem a um estatuto técnico ou tecnológico diferenciado da Ciência. Se a Dogmática Jurídica pode ser tudo, é porque se caracteriza, contrastivamente, pela ausência de uma identida- de epistemológica”(1996; 107). 4 Diz Bobbio: ”che accanto alla giurisprudenza, considerata come non scientifica, si è venuta elaboran- do in ogni età, e con particolare evidenza nell’età moderna, una forma di sapere giuridico, modellato sugli schemi metodologici delle scienze vere e proprie, diverso totalmente dalla giurisprudenza e ritenuto ad essa superiore a causa della sai scientifica dignità, un sapere che sta di fronte alla giuris- prudenza come il modello ideale, a cui la giurisprudenza si contrappone come la brutta copia o la caricatura. Si tratta di ciò che io ho detto sopra la caratteristica ‘duplicazione’ del sapere nella sfera dell’esperienza giuridica: apertosi in un determinato periodo storico un contrasto — che pare irriducible — tra la concezione della scienza e la pratica del giurista, si viene svolgendo, da un lato, una giurisprudenza che non è scienza, dall’altro una scienza che di per se stessa non há più nulla a che fare con la giurisprudenza (e di cui i giuristi generalmente non sanno che farsene)” (1994; 337). 5 Este contraste fica claro na seguinte passagem de Hernández Gil, claramente inspirada em Kelsen: “La dogmática [conceito que no texto corresponderia a Ciência do Direito] es (o pretende ser) una ciencia. La aplicación del derecho (especialmente la judicial) es una técnica consistente en el desarrollo de una actividad cognoscitiva y resolutiva dirigida a la solución de conflictos” (1981; 44). 73 2. O discurso dogmático e o deslocamento funcional da teoria jurídica A abordagem formalista kelseniana, assentada na depuração do objeto da ciência do Direito de quaisquer elementos axiológicos ou fáticos, demonstra uma clara preocupação com a estrutura do Direito, cujo resul- tado é a representação piramidal do ordenamento jurídico, organizado escalonadamente segundo relações de fundamentação e derivação, em que cada norma tem seu fundamento de validade na norma hierarquicamen- te superior, sendo que todas elas podem ser reconduzidas à norma hipo- tética fundamental. Essa abordagem estrutural, contudo, sofre um revés a partir da metade do séc. XX. Deste período em diante tenta-se superar a duplicação dos saberes jurídicos não no rumo da cientificidade, embora ela não tenha sido abando- nada,6 mas no intuito de aproximar as especulações da teoria jurídica da- quilo que os juristas efetivamente fazem.7 Isto gerou um deslocamento fun- cional, pois a ação primordial dos juristas, desde os jurisconsultos roma- nos, nunca foi no sentido de descrever e sistematizar de forma neutra e objetiva o Direito, mas sim de buscar respostas para problemas concretos. O discurso da jurisprudência não privilegia o aspecto cognitivo, tem sim uma função social — equivalente à do Direito — dirigida aos problemas concretos, à regulação de comportamentos; enfim, ao controle social. Essa ênfase no aspecto funcional no Direito não é novidade no contexto da teoria jurídica moderna. Já havia sido formulada por Rudolf Von Jhering, ainda no séc. XIX, na segunda fase da sua obra. Com efeito, opondo-se ao método analítico da jurisprudência dos conceitos, majoritária no início do séc. XIX na Alemanha, da qual ele mesmo havia compartilhado, Jhering des- 6 Nesse sentido a proposta de Fernando Herren Aguillar de definir o estatuto epistemológico de uma teoria crítica do Direito, haja vista que, para ele, “o Direito pode ter um estatuto científico sem almejar produzir leis de validade universal e sem incorrer nos sérios problemas do relativismo, do ceticismo e do nihilismo” (1999; 12). 7 As tentativas de reelaboração da jurisprudência (saber prático dos juristas) como ciência exigiram uma sistematização dedutiva rigorosa da disciplina jurídica. O seu alvo foi transformar a jurispru- dência em ciência do Direito através da sistematização dedutiva. Com isso se esconderia o caráter problemático essencial à jurisprudência. Como alternativa, Viehweg propõe que a jurisprudência, como teoria da práxis jurídica, deve ser entendida como um procedimento de discussão de proble- mas (1979; 17-18). 74 viou o foco típico do Direito para os fins que ele deve cumprir na sociedade, constatando que esses fins orientam tanto a elaboração do direito positivo quanto a sua aplicação pelos juristas (LARENZ: 1989; 50-56). A novidade é que a visão funcional da teoria jurídica assenta-se agora em outro estilo de pensamento. Trata-se da tópica, revalorizada por Theodor Viehweg em sua obra clássica Tópica e jurisprudência, cuja primeira edição data de 1953. A tópica é uma técnica de pensar por problemas, desenvolvi- da pela retórica. Opõe-se ao pensamento sistemático dedutivo, como aque- le elaborado por Kelsen, no qual a decisão judicial não passa de uma etapa no processo de concretização do Direito que inicia com a Constituição e termina com o ato coativo que executa uma sentença, sendo cada grau da estrutura decorrência lógica do nível superior. A tópica não nega a existên- cia de um sistema normativo, nega o seu caráter dedutivo. Partindo do problema, sua preocupação é a elaboração de uma solução justa para o caso concreto, obtida pela harmonização dos argumentos contrários apresenta- dos pelas partes envolvidas no conflito. Esses argumentos devem estar conectados a diferentes topoi (lugares-comuns) compartilhados pelas par- tes, cuja inexistência impediria a comunicação intersubjetiva. O catálogo desses topoi forma o sistema (no qual o direito positivo é apenas uma das partes), porém não um sistema dedutivo, completo e fechado, mas um sis- tema aberto, em que cada novo problema apresentado pode exigir a inclu- são de novos cânones no catálogo (1979; 75-85). O enfoque desloca-se da estrutura do sistema jurídico para sua função, que é a de ministrar elementos para a produção de decisões de conflitos acei- táveis. Como conseqüência, o centro do raciocínio jurídico volta-se à questão da decidibilidade. Constata-se, deste modo, que o discurso específico dos juristas tem natureza criptonormativa, visa programar decisões jurídicas, pois deve prever que, com sua ajuda, uma problemática social determinada seja solucionável sem exceções perturbadoras (FERRAZ JR.: 1977;44). Isso é possível graças à redefinição, proposta por Viehweg, de um termo tradicionalmente equiparado ao saber específico dos juristas, o termo dogmática jurídica. Ele surge em contraposição ao raciocínio zetético, investigativo. Tendo por base um sistema de conhecimento for- mado por perguntas e respostas, o sujeito que opera esse sistema pode dar ênfase a umas ou outras. 75 Caso a ênfase recaia nas perguntas, o âmbito das respostas é sempre incerto. Surge daí um conhecimento momentâneo, conjectural, cujos pró- prios pilares são objetos de questionamentos contínuos. Outra coisa se dá na hipótese do peso recair sobre as respostas, então seu espaço fica limitado e as premissas em que se assenta o conhecimento não podem ser questiona- das por esse mesmo conhecimento; privilegiam-se aí os elementos estabili- dade e segurança. Se a primeira forma de raciocínio é típica do raciocínio zetético que na esfera da experiência jurídica é levado a cabo pela história, filosofia e sociologia jurídicas; a segunda caracteriza o raciocínio dogmático, que se baseia em dogmas, verdades inquestionáveis (VIEHWEG: 2001; 4). É esse modelo de raciocínio que marca a atuação prática dos juristas, pois se assim não o fosse, impossível seria a obtenção de uma solução jurí- dica definitiva para um conflito, que se perpetuaria no tempo, pondo em risco a manutenção da sociedade. Sendo a função do direito o controle soci- al, o raciocínio específico dos juristas não pode ser outro que o dogmático, por isso podermos identificá-lo pelo termo dogmática jurídica.8 Esses contornos são imprescindíveis para a compreensão do atual es- tágio do discurso dogmático, de caráter pluridimensional e integrante. Antes de descrevê-lo, porém, cumpre analisarmos o que tradicionalmente tem sido entendido por dogmática jurídica. 3. A dogmática jurídica tradicional Se o conceito de dogmática jurídica, em seu enfoque funcional, foi res- saltado por Viehweg, a existência de um conhecimento dogmático do Di- reito possui raízes muito mais antigas que procedem da teologia medieval. Como, entretanto, não são as raízes históricas da dogmática jurídica que estão sendo perquiridas nesse trabalho, importa apenas apresentar os ca- racteres principais da dogmática jurídica tradicional, os quais a colocam no meio-termo entre a formulação de um conhecimento científico e a solução de problemas práticos. 8 Nessa perspectiva, Tércio Sampaio Ferraz Júnior afirma que a dogmática jurídica é uma tecnologia e não uma ciência, pois, centrada no problema da decidibilidade, ela dogmatiza seus pontos de partida, limitando seu âmbito de indagação, o que é inadmissível para as ciências que perseguem o ideal do conhecimento objetivo e verdadeiro (1977; 45). 76 Aquilo que pode ser reconhecido como paradigma dogmático clássico se caracteriza como uma modalidade de raciocínio jurídico, marcada por certas atitudes ideológicas ou ideais racionais com respeito ao direito positivo, por determinadas funções que cumpre em relação a ele e por certas técnicas de justificação das soluções que propõe (SANTIAGO NINO: 1987;321). Na visão clarificadora de Vera Regina Pereira de Andrade: (...) na auto-imagem da Dogmática jurídica ela se identifica com a idéia de ciência do Direito que, tendo por objeto o Direito positivo vigente em um dado tempo e espaço e por tarefa metódica (imanente) a “construção” de um “sistema” de conceitos elaborados a partir da interpretação do ma- terial normativo, segundo procedimentos intelectuais (lógico-formais) de coerência interna, tem por finalidade ser útil à vida, isto é, à aplicação do Direito (ANDRADE: 1996; 18). O surgimento da dogmática jurídica combina com a perda de hegemonia da escola do direito natural e a ascensão do positivismo jurídico, mediada pelo historicismo. Não por acaso, as raízes da dogmática se encontram na obra de Savigny, tendo seu desenvolvimento com Jhering — em sua primei- ra fase — e Windscheid, este último o grande representante da pandectística alemã. Este olhar histórico permite demonstrar que o aspecto central da dogmática no âmbito do positivismo jurídico não é a primeira característica historicamente consolidada deste tipo de raciocínio. Já em Savigny, mas so- bretudo no contexto da jurisprudência dos conceitos, a característica funda- mental do pensamento dogmático foi seu caráter construtivo. Essa constru- ção diz com a elaboração de conceitos abstratos que não se limitam apenas e tão-somente aos conteúdos expressos no direito positivado. Ele parte da aná- lise dos elementos presentes no direito posto para, a partir daí, abstrair seus princípios fundamentais, que possibilitam a solução de questões aparente- mente não abarcadas pelos direito positivado.9 Em outras palavras, a cons- trução combina com a elaboração daqueles conceitos que não se acham ime- diata e intuitivamente na lei, cuja explicitação permite encarar com autentici- dade os casos da vida jurídica que não estão claramente previstos na norma 9 Hernández Gil identifica o caráter construtivo como essencial à dogmática jurídica, afirmando que: “a carta magna da dogmática jurídica, que es la abstracción generalizadora, abre muchas puertas o muchas vías acaso imperceptibles en la enunciación lingüística de las normas”(1981; 43). 77 (LEGAZ Y LACAMBRA: 1953; 74). Tem-se aí a primeira função da dogmática jurídica tradicional, posto que não seja a única. Aliás, pode se dizer que embora o caráter construtivo tenha se afir- mado anteriormente, do ponto de vista histórico, a consolidação de um paradigma dogmático do saber jurídico se deu com a preeminência de uma outra característica, de natureza ideológica, só possível com a afir- mação das ordens jurídicas estatais legisladas, qual seja a “adesão dog- mática ao direito positivo” (SANTIAGO NINO: 1987;322). Isto significa que a aceitação do Direito posto pela autoridade do Estado por parte dos juristas não se deve ao cotejamento de seu conteúdo com o conteúdo de outras normas ou opções axiológicas, mas ao fato de esta norma ter sido posta por uma autoridade que é competente para editá-la, segundo um ordenamento jurídico eficaz. Esta adesão formal se reflete em dois postu- lados fundamentais: o reconhecimento do Direito positivo estatal como única fonte do Direito e a aceitação de que esta ordem jurídica positiva forma um sistema perfeito, fechado e coerente. Esta é a característica que nos permite falar de uma dogmática jurídica tradicional, em oposição à dogmática tópica desenvolvida por Viehweg. Com efeito, existindo um sistema de direito positivo hierarquicamente escalonado, que não admite lacunas nem contrariedade entre suas diver- sas normas, não há que se falar em primazia do problema, método tópico e catálogos abertos de topoi. Só faz sentido trabalhar com o raciocínio lógi- co-dedutivo, que, iniciando no sistema, pretende solucionar problemas através da simples constatação do fato de a conduta concreta conflituosa corresponder à hipótese de alguma norma válida do sistema, o que, se for o caso, impõe a aplicação da sanção prevista no conseqüente da mesma norma, possibilitando, assim, a resolução do caso concreto. Por isso, nada mais resta aos juristas do que se preocuparem com a descrição das nor- mas jurídicas positivadas. Aqui localiza-se a segunda missão da dogmática jurídica tradicional: descrição das normas, ou melhor, partindo do pres- suposto de que essas normas têm um sentido e que estes não são unívocos, em virtude da incerteza e da ambigüidade da linguagem, ou melhor em função interpretativa (HART: 1994; 137). 78

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