EACH ONE TEACH ONE CADA UM ENSINA UM ÂNGELA FERREIRA*1 Fui convidada para participar no momento inicial da Conferência Educa‑ ção e Desenvolvimento: Escola e Sociedade na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, partilhando o meu percurso educacional, formal e informal. Tentando assim criar um contexto propício para pensarmos a educação e o desenvolvi‑ mento. Como levei esse convite à letra o que tenho para apresentar são os contor‑ nos marcantes do meu percurso e a forma como esse percurso afetou a minha prática artística e o meu trabalho como professora. Vou portanto mostrar como um acumular de experiências se materializa nas obras que crio e como estas afetam a forma como ensino. Sendo uma pessoa essencialmente visual fá‑ lo ‑ei através de uma série de imagens que me servirão de apoio. Deixo as conclusões sobre a educação e desenvolvimento para os peritos que aqui se encontram reunidos. Algumas notas introdutórias O primeiro dado importante para este contexto é a minha plena consciên‑ cia de que sempre gostei de pensar e de debater ideias, e como tal, proponho que desenvolver o gosto pelo ato de pensar construtivamente é uma das ferramentas mais úteis que a educação formal ou informal pode promover. O problema que enfrentamos como professores é como fazê‑ lo! A outra constatação importante é que o meu gosto por Arte está intima‑ mente ligado ao facto de que a arte contemporânea é uma forma de pensar a contemporaneidade. Na verdade eu acredito pouco na validade da arte como artefacto decorativo ou como forma de entretenimento. Para mim, o fazer arte tem a ver com o pensar a forma como eu vivo. A relação entre a arte e a vida é a forma como eu entendo o mundo. As pesquisas a que a minha prática da arte contemporânea investigativa me leva constituem‑ se como desafios que me indicam o modo como eu abordo o meu mundo e transmito as ideias que tenho sobre ele. * Artista Plástica. Professora da Escola de Belas‑Artes da Universidade de Lisboa. 51 Há ainda um outro factor importante que pesou nesta apresentação – o facto de gostar muito de lecionar resulta do meu gosto em aprender e como tal o dar aulas é uma continuação do processo de ser aluna. É aquilo que se segue ao ser aluno. Como educadora numa instituição formal de ensino superior – Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa – e como artista plástica, o assunto da educação e desenvolvimento interessa ‑me bastante porque consi‑ dero ter um papel muito específico como professora de escultura na univer‑ sidade. Compete ‑me apresentar metodologias de trabalho que confiem aos alunos capacidades reais para operarem no ponto mais avançado do estado da arte. No meu tempo de estudante chamava ‑se a isso a vanguarda. Este termo está desatualizado mas eu penso que continua a ser útil para pensarmos o ponto em que trabalhamos dentro de uma disciplina. É que não vale a pena trabalhar numa universidade senão na vanguarda dessa disciplina. No meu campo por vezes pode ser confuso para os alunos porque a arte tende a ser vista como arte‑ facto decorativo e os alunos têm dificuldade em entender que estão a estudá ‑la, não como produto de entretenimento, mas como disciplina académica na sua vanguarda prática e teórica. E por fim, como é óbvio, é também a minha função ensiná ‑los a serem criativos, a dar respostas a questões maiores pela unicidade de pensamento. Este é um dado muito importante tanto como artista plástica como como professora. Acredito que, se alguém vê interesse na minha arte é porque a minha forma de abordar problemas, que é minha só, gera alguma curiosidade. Ao verem as minhas esculturas as pessoas defrontam‑ se com a minha forma de pensar. Cada um de nós tem uma forma única de pensar. O artista tem que saber como procurar a sua unicidade, ou criatividade. Encontrar o pensamento criativo pela via da unici‑ dade. Este não é um processo fácil de ensinar. Esta unicidade vai aplicar‑ se a uma interpretação inesperada da informação que não se encontra nem nos programas, nem nos conteúdos curriculares, nem nos manuais. Já não restam dúvidas de que o mero ato de transmitir informação não resulta numa educação completa e com sucesso. A sua interpretação inteligente e única é vital na minha área de ensino. Claro que nas artes plásticas o processo de extrair este potencial é facilitado pela natureza individual, tutorial e laboratorial da disciplina. Avancemos então para o meu percurso pessoal que é repleto de situações em que os dados informais iluminaram as decisões que fui fazendo para adaptar uma educação convencional de muita qualidade a uma perspetiva de vida e de trabalho artístico que fizesse sentido para mim. 52 Começo pela palavra ‘bilingue’ como fator que moldou o meu percurso. Sou bilingue desde os 6 anos. Mas não são os ganhos óbvios que permitem mais comunicabilidade que me interessam mencionar. O que eu ganhei em ser bilin‑ gue foi o entendimento implícito de que qualquer pessoa que fala outra língua vem doutra cultura e tem entendimentos diferentes àqueles que nós temos. O ser bilingue permite ‑nos automaticamente entender que o conhecimento, a apren‑ dizagem ou o saber são dados e atos culturais, que estes estão sempre imbuídos de cultura e que muitas vezes os dados evidentes numa cultura são contraditos por outras culturas. Ser bilingue permite‑ nos negociar as informações de várias formas em simultâneo. Este dado facilitou o transitar entre escolas na África do Sul, Moçambique e Portugal sem problemas de maior, mas sobretudo ofereceu‑ ‑me abertura a relações interculturais que vieram a ser marcantes. Nasci e cresci em Moçambique, num Moçambique colonial e convencio‑ nal, numa família de classe média/alta com os mecanismos sociais muito típicos do tempo em que se apagavam realidades políticas e se tentavam esquecer os problemas sociais do contexto em que se vivia. Desde que me lembro de ser gente havia guerra e jipes militares cheios de tropas nas ruas todos os dias, mas em minha casa não se falava de guerra e mesmo a palavra ‘terrorista’ (usada pelos colonos conservadores para referir os guerrilheiros da Frelimo na luta de libertação) era um tabu que raramente se ouvia. Por vezes essa palavra apare‑ cia no jornal e eu lia ‑a. Em criança questionava ‑me silenciosamente sobre isto. A mensagem oficial referia uma guerra lá longe no Norte... pouca coisa e muito longe! No entanto em Moçambique havia certos grupos de intelectuais que eram pessoas menos convencionais e com quem a minha família privava, apesar de não partilharem ideais sociais e políticos, mas com quem eu obviamente também tinha algum contacto. Eu vivi em Moçambique até aos 15 anos – era bastante jovem mas suficientemente lúcida para suspeitar que existia uma forma não convencional de gerir o status quo em que vivia. Era uma jovem politi‑ camente naïve e inocente mas via que existia uma forma menos convencional de decifrar o mundo que me rodeava e percebi que esse grupo de pessoas me suscitavam uma certa curiosidade. Curiosidade sobre a forma como entendiam e geriam o seu meio. Aqui estão dois exemplos de pessoas que tiveram influência na minha formação ao transmitirem os seus saberes, e que podem ilustrar alguns dos meus interesses: 53 Aerogare de Quelimane, ca. 1972 da autoria do Arquiteto Octávio Rego Costa. Arquivo Projecto “EWV_Exchanging worlds visions: modern architecture in Africa “Lusófona” (1943‑1974), Ana Tostões, 2010. Nesta imagem vemos o aeroporto de Quelimane (c. 1972) desenhado pelo Arq. Octávio Rego Costa (1932 ‑1995), com quem partilhei muitas conversas em criança. O edifício simboliza um certo modernismo estético e concetual que era praticado por um grupo progressista de arquitetos no terreno. A visão de vida destes arquitetos exprimia ‑se através de uma abordagem diferente e moderna de espaço. Neste caso um espaço público – uma aerogare que funcionava desde logo como um símbolo da modernização. Projetos como este foram financiados pelo governo colonial e serviam de propaganda do regime, mas o seu desenho não deixava de os tornar símbolos de uma visão mais desempoeirada da vida e dos contextos sociais. Esta é uma imagem mais leve do Estado Novo colonial. Este espírito estava presente nos contactos que o arquiteto tinha connosco, então crianças, e ao qual eu volto muitas vezes na minha prática como artista plástica. Na verdade os arquitetos tiveram uma grande influência na minha vida pela forma visionária como pensavam, desenhavam e se apresentavam na sociedade e na cidade. E esta influência também se caracterizou pela maneira subliminar como estes pensares se transmitiam. A imagem que se segue foi feita no atelier do arquiteto Pancho (Amâncio) Guedes (1925‑ 2015) em Moçambique. Ao tempo esta seria uma invulgar imagem de convivência multirracial e transformou‑ se num famoso retrato do arquiteto no seu atelier. 54 Pancho Guedes no seu atelier na Polana, Maputo (então Lourenço Marques) ca. 1950. Cortesia de Pancho Guedes e David Crofoot. Escolho mostrá ‑la aqui porque por um lado a imagem mostra‑ nos um momento modernista, quase utópico, mas por outro, quem viveu em Moçam‑ bique sabe que esta é uma imagem quase irreal. Por exemplo, não duvidamos que o artista Malangatana Valente Ngwenya viveu em casa do Pancho Guedes, e vemo‑ lo aqui na fotografia (o terceiro a contar da direita) mas não esqueçamos o facto de que o convívio multirracial, como é apresentado aqui, era raríssimo no Moçambique antes da independência. É um evento muito pouco comum. Apesar disto o espírito aqui presente poderia ser transmitido a jovens ávidos de diferença como eu. De alguma forma estes eventos marcaram ‑me profundamente, pois identifiquei ‑os como modelos de vida que valia a pena seguir. Ainda sobre Pancho, mais recentemente, em leituras e investigações que tenho feito, tive provas de algumas da suas opiniões mais incisivas sobre a cidade e a sociedade em que vivia. Estes escritos vêm confirmar como o arquiteto se situava perante o Estado Novo. Lembremos que aqueles que se opuseram publi‑ camente ao regime, mesmo na linguagem de planeamento e arquitetura da cidade foram poucos, e na maior parte dos casos deixados de fora das decisões de planeamento das mesmas cidades. Veja‑ se por exemplo dois textos marcan‑ 55 tes em que ele expõe o seu desgosto sobre a arquitetura e as condições de vida na então denominada cidade de Lourenço Marques (hoje Maputo): A Cidade Doente (1963) e Os Caniços de Moçambique (1971). Escrevendo sobre a cidade caniço, periferia da cidade cimento e onde moravam os africanos que na maioria eram pobres e trabalhavam para os colonos que viviam na cidade cimento, Guedes não se poupa em críticas: Without sewers, water or electricity, among ponds and piles of rubbish. Their houses are precarious shacks made of old zinc, tins, boxes and reed. These shacks are infested with mice and rats, cockroaches, fleas and bedbugs. At night it is dangerous to walk by the passageways and labyrinths that give access to it, owned by gangs of rogues and thieves. In the reed belt the children know hunger, evil and misery too soon, and lose their charm and innocence before their time. The inhabitants of the Reed City live far from their workplaces, away from the schools they attend, away from the city that belongs to others and that cannot be theirs because of the distance (Guedes 1963: 6‑7). Mas continuando com a minha história: em 1973, por razões ligadas à vida profissional do meu pai, que havia sido transferido para Londres, eu venho viver para Portugal – tinha 15 anos. Cinco meses após a minha chegada a Lisboa dá ‑se o 25 de Abril. Ingressei no Liceu Rainha Dona Leonor em Lisboa e mesmo antes do 25 de Abril descobri no liceu jovens que eram bastante politizados e aqui houve um momento de horror pessoal. De repente eu apercebo ‑me de quão era inocente. O meu mundo desmorona‑ se em várias frentes simultaneamente. E segue‑ se uma aprendizagem rápida de assuntos políticos. Maioritariamente por via dos acontecimentos mas não só. A política partidária nunca me interes‑ sou muito mas a ideia de política na sua essência interessa‑ me. O 25 de Abril com as suas manifestações e tumultos marcou‑ me. Esta foi a minha primeira experiên‑ cia de democracia e este é o tempo da minha primeira tentativa de entendimento do que se tinha passado na minha vida em Moçambique. E para ilustrar estas negociações pessoais apresento aqui uma imagem a que eu volto muitas vezes e que me lembra a forma como eu tive que mediar a minha relação com Moçam‑ bique através do 25 de Abril. Uma imagem simbólica para mim. O cinema Império na Alameda Afonso Henriques em Lisboa no dia 1.º de Maio de 1974 e uma manifestação política própria deste local. Mas aquilo que retém a minha curiosidade nesta imagem é o anuncio que se vê por cima da paragem de auto‑ carro. “Conhecer Portugal – Visite Moçambique”. Nesta imagem está o passado colonial antigo e o momento revolucionário em curso. Como conviver com ambas as histórias? 56 Foto: Rui Trancoso Alameda Afonso Henriques, Lisboa, 1.º Maio, 1974. Também é interessante ver que no cinema Império já estava a passar O Couraçado Potemkin de Eisenstein e O Ritual de Ingmar Bergman. Ambos filmes arquétipos de pensamento cinematográfico mais à esquerda e muito próprio do tempo. Essa dissonância. Portugal/Moçambique, o 25 de Abril, o que era África e a minha distância desse lugar é absolutamente marcante e consti‑ tuíram uma parte de uma escola informal. Mas não esqueçamos ainda que, por outro lado, na escola formal, já no 6.º ano do liceu, numa disciplina que penso que se chamava Introdução à Política estávamos a estudar A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado de Friedrich Engels. Para uma menina de 15 ou 16 anos foi uma educação formal também a mudar de forma violenta e conturbada. Mas as coisas não acabaram aqui porque um ano depois eu estava na África do Sul e a presenciar mais manifestações políticas: Só que estas eram as do Soweto em Joanesburgo no dia 16 de junho de 1976 – os grandes levantamentos estudantis que (não as primeiras grandes manifesta‑ ções violentas, porque essas aconteceram em Sharpeville nos anos 60) marcam a primeira vez que os meninos da escola se levantam em rebelião contra o governo 57 Foto: http://www.unisahistory.ac.za A revolta estudantil, Soweto, 1976. do apartheid que então os forçava a aprender Afrikaans (a língua do opressor). As manifestações produziram esta imagem muito conhecida e que correu mundo: Foto: Sam Nzima Antoinette Sithole e Mbuyisa Makhubo carregando Hector Pieterson, momentos depois de ter sido baleado pela polícia sul‑africana durante uma manifestação pacífica no Soweto, 16 de junho de 1976. 58 A morte do jovem aluno da escola Hector Pieterson. A imagem mostra ‑nos um colega a carregar o corpo inerte de Hector e sua irmã também aluna de escola e ainda vestida com o uniforme da escola, a correr ao lado com uma expressão de horror na cara. O jovem Hector Pieterson tinha acabado de ser baleado em plena rua pela polícia do apartheid. A imagem desta criança de 13 anos tornou‑ ‑se icónica da luta contra o apartheid e como é óbvio falava emocionalmente a outros jovens como eu. Nesta altura eu já tinha suficiente entendimento político para tirar conclusões pessoais sobre o assunto. Consequentemente a gerência de uma nova vida na África do Sul foi bastante mais complicada do que tinha sido a minha chegada a Portugal. Muitas lições aprendi eu aqui também. Lá acabei o liceu na África do Sul e ia ingressar na universidade mas tinha bastantes dúvidas sobre a área a seguir. Era uma aluna bastante razoável e portanto tinha bastante escolha – poderia ter ido para Letras ou para ciên‑ cias mas, um pouco por exclusão de partes e por influência de um pai que se preocupava muito com a futura empregabilidade dos filhos, vou para Economia. Faço o primeiro ano com resultados muito satisfatórios mas sentia uma grande infelicidade e decido mudar. Tenho de assumir estas mudanças sozinha, vou por erro e tentativa, com algumas influências de amigos decido candidatar‑ me a duas áreas criativas. À Michaelis School of Fine Arts e à Escola de Arte Dramática. Ambas na Universidade de Cape Town. Talvez valha a pena mencionar aqui que a Michaelis School of Fine Art da UCT era uma escola muito boa, baseada no sistema de ensino artístico anglo‑ saxónico, estruturada de forma semelhante às escolas de arte em Inglaterra. Lembro ainda que o ensino na África do Sul durante o tempo do apartheid era de grande qualidade para brancos. Confesso que me senti privilegiada por ter tido acesso a esse ensino. Como obtive resposta positiva primeiro da Michaelis School of Fine Arts, esta foi a escolha que fiz. Na verdade não tinha grande noção de qual seria a minha capacidade ou perícia nesta área. Sabia meramente que queria estar no mundo criativo e não no mundo científico. Logo no fim do primeiro ano do curso (foundation year), no momento em que tinha de escolher a minha área de especialização dentro das belas‑artes, há uma professora – Zoe Storrar – que tem uma conversa muito importante comigo. Neste momento de dúvida Zoe Storrar orientou‑ me desta forma: “Choose your course by choosing your teacher.” Este conselho era precisamente o contrário do que o sistema pretendia. Neste sistema o curso estava de tal forma estruturado que o aluno seguia por uma série de opções quase automáticas (melhores notas em certas tarefas apontavam 59 para certos percursos), e os professores iam variando as cadeiras que lecionavam, evitando assim o sistema de grupos que se orientam em torno de ‘mestres’ como por exemplo no sistema de ensino artístico na Alemanha. O que ela, Zoe Storrar, me sugeria era que a aprendizagem é mais concreta e mais construtiva se houver uma empatia forte entre aluno e professor e, como eu já conhecia a escola, ela sugeria que usasse esse conhecimento para escolher por empatia com o professor. Eu assim fiz – escolhi escultura – e acho que não me arrependi. Trabalhei com dois professores muito importantes e muito diferentes: O primeiro era o Kevin Atkinson (1939 ‑2007), muito carismático, muito sociá‑ vel, mas muito difícil de entender pois ensinava sem nunca descer o nível do seu discurso. Lecionava um curso que era visionário para a época porque se situava no início das investigações dos limites das disciplinas artísticas convencionais. Ou seja, permitia que a disciplina de escultura e pintura e outras se esbatessem e que se anunciasse a prática da instalação e de abordagens mais concetuais, onde o conteúdo da obra determinava o suporte da mesma e onde muitas vezes o suporte podia ser documental ou híbrido. Esse curso em que eu ingressei intitulava‑ se ‘Interdisciplinary Studies’. Estávamos em 1980. Foi um processo fascinante. Fotografia a preto e branco. Impressa em papel A4. Patricia and Kevin Atkinson Trust. Kevin Atkinson, I Recognize, 1973‑1977. 60
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