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divindades africanas e santos católicos PDF

29 Pages·2017·0.25 MB·Portuguese
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SINCRETISMO RELIGIOSO COMO ESTRATÉGIA DE SOBREVIVÊNCIA TRANSNACIONAL E TRANSLACIONAL: DIVINDADES AFRICANAS E SANTOS CATÓLICOS EM TRADUÇÃO RELIGIOUS SYNCRETISM AS A STRATEGY FOR TRANSNATIONAL AND TRANSLATIONAL SURVIVAL: AFRICAN DEITIES AND CATHOLIC SAINTS IN TRANSLATION Tito Lívio Cruz Romão* RESUMO A chegada dos colonizadores portugueses na terra antes habitada por diversas etnias ameríndias, a qual mais tarde se chamaria Brasil, representou a eclosão de severos atos de violência contra diversos grupos populacionais, notadamente os muitos povos indígenas habitantes naturais desta terra e as dezenas de etnias africanas sequestradas para o Brasil como mão-de-obra escrava e destituídas de seus direitos fundamentais. Embora estivessem misturados em grupos étnicos variados, os africanos, apesar dos sofrimentos e das sevícias de que eram vítimas, buscaram – de forma consciente ou inconsciente – soluções práticas para resolverem problemas cotidianos, como o exercício de seus rituais religiosos. Ao longo do tempo, foram familiarizados com o contexto católico e assim puderam inferir transferências, adaptações e recriações culturais e religiosas. Essa forma de traduzir dois mundos religiosos distintos ajudou-os a manter vivas suas tradições religiosas ancestrais, ainda que mescladas com o sistema hagiológico católico. Neste trabalho, nosso foco estará voltado para as noções de religiões afro-brasileiras propostas por Verger (1997) e Bastide (2001), e de religiões afro-cubanas por Aróstegui (1990). Como destaque para uma das formas de representação do sincretismo religioso afro-americano, partimos das letras de duas canções com conteúdo expressivo no tocante ao objetivo deste artigo: a canção brasileira Guerreira e a cubana Babalú. Por entendermos que os africanos realizaram um processo translatório em que o sincretismo atua como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional, recorremos a algumas noções propostas por Bhabha (1994). Para exemplificarmos o sentido prático do sincretismo religioso tanto como processo quanto ato comunicativo e tradutório que se utiliza de diferentes fatores extratextuais e intratextuais, recorremos parcialmente ao arcabouço teórico de Nord (2016). Por fim, trazemos exemplos de traduções de romances de Jorge Amado em alemão, para mostrarmos a complexidade da tradução de termos religiosos afro-brasileiros. Palavras-chave: sincretismo religioso; estratégia de sobrevivência; tradução. * Universidade Federal do Ceará, Fortaleza (CE), Brasil. [email protected] http://dx.doi.org/10.1590/010318138651758358681 Romão ABSTRACT The arrival of the Portuguese settlers on the land formerly inhabited by several Amerindian ethnic groups, later to be called Brazil, represented the outbreak of severe acts of violence against various population groups, notably the many indigenous peoples of this country and the dozens of African ethnic groups kidnapped to Brazil as slaves and deprived of their fundamental rights. Although they were mixed in various ethnic groups, and despite the sufferings and the intolerable levels of hardship of which they were victims, Africans sought – consciously or unconsciously – practical solutions to solve daily problems, such as how to practice their religious rituals. In course of time, they were familiar with the Catholic context and were thus able to infer cultural and religious transfers, adaptations, and recreations. This way of translating two distinct religious traditions helped them to keep alive their ancestral religious practices, although these had to be mixed with the Catholic hagiological system. In this work, our focus will be on the notions of Afro-Brazilian religions proposed by Verger (1997) and Bastide (2001), and concepts of Afro-Cuban religions by Aróstegui (1990). As a highlight of one of the forms of representation of the African- American religious syncretism, we start by analyzing the lyrics of two songs with expressive content regarding the aims of this article: the Brazilian song Guerreira and the Cuban song Babalú. Since we understand that Africans have carried out a translation process in which syncretism acts as a transnational and translational survival strategy, in this article we have recourse to some notions proposed by Bhabha (1994). Aiming to exemplify the practical meaning of religious syncretism as both a communicative act and a translation process that uses different extratextual and intratextual factors, we apply in this work part of Nord’s theoretical framework (NORD, 2016). Finally, we bring examples of translations of Jorge Amado’s novels in German translations, to show the complexity of translating Afro-Brazilian terms into a foreign language. Keywords: religious syncretism; survival strategy; translation. INTRODUÇÃO Desde o achamento1 de Pindorama2 pelos portugueses, território outrora povoado por um grande número de etnias autóctones, esta terra, que passaria a ser 1. Na própria Carta de Pêro Vaz de Caminha, o escrivão-mor da frota de Pedro Álvares Cabral faz uso diferenciado dos termos achamento e descobrimento (ou seus derivados), como vemos em dois trechos distintos da Carta: a) “Posto que o capitão-mor desta vossa frota e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova [....]” (CAMINHA, 2000, p. 155); e b) “E pergunto a todos se nos parecia ser bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para melhor a mandar descobrir e saber dela mais do que nós agora podíamos saber, por irmos de nossa viagem” (CAMINHA, 2000, p. 165). 2. Não há vestígios históricos de que tenha havido um Estado chamado Pindorama. Cf. a explicação de CASTANHA (2007, p. 6): “Pindorama. Palavra de origem tupi que significa terra das palmeiras. Palmeiras como inajá, pupunha, buriti, tucum, tucumã, pindoba, tucumaí. Em Pindorama, todos os dias eram dos índios, e também dos papagaios, dos tamanduás, dos gaviões. E do urubu-rei, da jaguatirica, da ariranha, do jacaré-de-papo-amarelo, do peixe-boi, do lobo-guará, do macaco- prego, do mutum.” Em alguns dicionários de tupi-português (cf. TIBIRIÇÁ, 1984; TIBIRIÇÁ, 1985; CUNHA, 1999), essa palavra não surge como entrada, embora normalmente se faça menção ao étimo pindó (palmeira) e a termos relacionados, tais como pindoba, pindobuã, pidobuçu, pindopeba etc. 354 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 Sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional denominada Ilha3 ou Terra de Vera Cruz4, Terra de Santa Cruz5, Terra dos Papagaios6 e finalmente Brasil, foi sempre palco de inúmeros processos de transculturações e, consequentemente, de procedimentos tradutórios. Tais eventos não aconteceram de maneira pacífica, já que, dada a peculiar situação de indivíduos dominadores e povos dominados, era impossível contar com a anuência de todos os envolvidos. De maneira inversa, esses processos foram quase sempre marcados por extrema violência e destruição, a começar pela escravização das populações autóctones antes residentes na extensa superfície achada pela frota portuguesa comandada por Cabral. Com a paulatina ocupação do litoral brasileiro principalmente pelos colonizadores portugueses, para além de tentativas de ocupação francesa e holandesa, acarretaram- se imensos prejuízos para os inúmeros grupos étnicos, que se destacavam por sua diversidade linguística, religiosa e cultural, e que foram progressivamente reduzidos ou, em muitos casos, até mesmo dizimados. Com o tempo, os atos de violência perpetrados pelos invasores de Pindorama também passaram a ter como alvo diversas etnias africanas que foram sequestradas de seus respectivos territórios de origem, para serem então comercializadas e exploradas no Brasil Colônia de forma inumana. Os indígenas não resistiam à escravidão e tampouco às muitas doenças infecciosas que acabavam por acometê- los gravemente, levando-os à morte. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), estima-se que no ano de 1500 dois milhões de índios habitavam o litoral, e um milhão, o interior do atual território brasileiro, perfazendo um total de três milhões. Em 1650, eram apenas 700 mil, em 1825, 300 mil. Nas três últimas décadas, tem-se notado um certo crescimento nos números referentes à população indígena: 3. Numa carta enviada por Giovanni Matteo Cretico ao doge veneziano Agostinho Barbarigo em 27 de junho de 1501, há uma “insistente referência aos papagaios, por serem de proporções surpreendentes, tendo três dessas araras sido desenhadas no chamado “mapa de Cantino”, o que levou os italianos a denominarem inicialmente o Brasil como a terra dos papagaios” (GARCIA, 2000, p. 39). 4. Escreveu Caminha (2000, p. 156): “E neste dia, às horas de véspera, houvemos vista de terra, isto é, primeiramente dum grande monte mui alto e redondo e doutras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã, com grandes arvoredos, ao qual monte o capitão pôs nome – o Monte Pascoal – e à Terra de Vera Cruz.” 5. Na Crônica de Damião de Góis ao rei D. Manuel, impressa em 1566, consta o seguinte: “Antes que Pedro Álvares partisse deste lugar mandou pôr em terra uma cruz de pedra, como por padrão, com que tomava posse de toda aquela província para a coroa dos reinos de Portugal, à qual pôs o nome de Santa Cruz, posto que se agora (erradamente) chame do Brasil, por causa do pau vermelho que dela vem, a que chamam brasil” (GARCIA, 2000, P. 79). Obs.: O pau-brasil era conhecido pelos índios como ibirapiranga, palavra tupi que significa pau vermelho. 6. Caminha (2000, p. 181) termina sua carta a D. Manuel com estas palavras: “Deste Porto seguro da vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.” Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 355 Romão A partir de 1991, o IBGE incluiu os indígenas no censo demográfico nacional. O contingente de brasileiros que se considerava indígena cresceu 150% na década de 90. O ritmo de crescimento foi quase seis vezes maior que o da população em geral. O percentual de indígenas em relação à população total brasileira saltou de 0,2% em 1991 para 0,4% em 2000, totalizando 734 mil pessoas. Houve um aumento anual de 10,8% da população, a maior taxa de crescimento dentre todas as categorias, quando a média total de crescimento foi de 1,6%. (FUNAI, 20187) Os números acima mostram que a falta de registros durante alguns séculos leva-nos a operar com informações inexatas, com base apenas, além de alguns documentos, em relatos de historiadores, antropólogos, naturalistas, exploradores etc. Quanto aos números de africanos trazidos – ou traficados – para o Brasil, a situação é similar. Segundo Boris Fausto (1996, p. 61), “estima-se que entre 1550 e 1855 entraram pelos portos brasileiros 4 milhões de escravos”. Tratava-se de africanos trazidos à força – e em condições sub-humanas – para o Brasil, onde, aportando mormente no Rio de Janeiro e em Salvador, eram vendidos em praça pública, para realizarem toda sorte de árduos serviços domésticos8, trabalhos na lavoura predatória de monoculturas (inicialmente cana-de-açúcar), extração de madeira, tarefas de pastoreio etc. Simultaneamente eram destituídos de todo e qualquer direito humano e civil, ficando à mercê de seus proprietários. Mas inexiste consenso entre historiadores e demais pesquisadores sobre o total de africanos que chegaram vivos ao Brasil nos chamados navios negreiros9, também conhecidos como tumbeiros10, como mostram os dados abaixo: Até hoje não foi possível estabelecer, com relativa segurança e pequena margem de erro, o número de escravos importados durante o período em que durou o tráfico, extinto realmente depois de 1850. Os levantamentos feitos usam várias fontes e métodos para essa avaliação, mas a todos escapa o grande número de negros contrabandeados durante esse período. Dessa forma, todos os cálculos estão aquém do verdadeiro número de africanos importados. Na avaliação de Afonso d’E. Taunay, chegou a 3.600.000 o número de africanos entrados, enquanto Roberto Simonsen estima uma quantidade de 3.300.000. Todos esses cálculos são, porém, contestáveis, pois, como já dissemos, não computam os africanos contrabandeados. Por isso mesmo, como afirma [Robert] Conrad, “outros historiadores, contudo, calcularam um total mais elevado, e suas posições devem ser levadas em consideração. O respeitado historiador econômico brasileiro Caio Prado Jr., por exemplo, escreveu que mesmo antes da maciça importação do século XIX pelo menos cinco ou seis milhões de escravos haviam 7. http://www.funai.gov.br/index.php/indios-no-brasil/quem-sao; última consulta em 14/02/2018. 8. Tais serviços, que eram desempenhados principalmente por mulheres, abrangiam tarefas de limpeza, culinária e cuidados reservados às crianças de seus senhores, inclusive atuação como amas de leite. 9. Embora o adjetivo negreiro signifique que transporta, que trafica escravos (HOUAISS, 2001), evitaremos esse termo, por entendermos que seu uso é uma forma sutil – e perversa – de se transferir toda a carga conceitual para os negros, e não para os portugueses que os traficavam. 10. O Dicionário Houaiss (2001) apresenta a seguinte definição de “tumbeiro”: “navio negreiro, ger. de pequeno porte (200 toneladas, ou menos), que fazia o tráfico de escravos para o Brasil. [As condições eram tão precárias que grande parte da carga (30 % a 40 %) morria durante a viagem.]. 356 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 Sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional entrado no Brasil”. Renato Mendonça minimiza esse tráfico, estimando-o em um total de 6.830.000, e Afonso Bandeira de Mello calculou o número de africanos entrados em 2.716.159 somente num período de 93 anos. Pedro Calmon estende este número para oito milhões, aproximando-se, assim, de Rocha Pombo, que o calcula em dez milhões. (MOURA, 2004, p. 290s.) O comércio de escravos africanos sempre esteve estreitamente ligado a práticas de corrupção e suborno, que já começavam no continente africano durante as negociações e o embarque compulsório de cidadãos de diversas origens e classes sociais da África Subsaariana. Tais práticas estendiam-se ao desembarque dos tumbeiros em portos brasileiros, ao comércio nas praças de nossas cidades e ao cotidiano de humilhações, sevícias e crueldades a que foram submetidos milhões de pessoas, cujos trágicos destinos superariam toda e qualquer criação literária de desesperança kafkiana ou absurdidade existencial camusiana. Sobre alguns dos muitos atos de corrupção praticados no âmbito do comércio escravagista, observem-se estes dados referentes ao status quo no século XIX, que também são esclarecedores como pano de fundo para a evolução da corrupção e de práticas racistas na sociedade brasileira após a abolição da escravatura: Os interessados no negócio [comércio de escravos] tinham logrado organizar uma extensa rede de precauções que salvaguardassem o exercício franco de suas atividades. Desenvolvendo um sistema apurado de sinais e avisos costeiros para indicar qualquer perigo à aproximação dos navios negreiros, subvencionando jornais, subornando funcionários, estimulando, por todos os modos, a perseguição política ou policial aos adversários, julgaram assegurada para sempre a própria impunidade, assim como a invulnerabilidade de suas transações. (HOLANDA, 1995, p. 75) Atualmente, mais do que nunca, nós brasileiros, emergidos de um complexo cadinho cultural caracterizado por invasões, degredos, imposições, conversão religiosa compulsória, escravização, suborno, corrupção, autoritarismo etc., parecemos distanciar-nos mais e mais daquelas qualidades relatadas por Holanda (1995, p. 146) ao abordar o mito brasileiro do suposto “homem cordial”: “a lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter do brasileiro (...)”. Embora, como mostramos acima, não se saiba o real número de africanos trazidos à força ao Brasil, pode-se facilmente supor que sua diversidade étnica, cultural, linguística, social, religiosa etc. assumia grandes proporções. Assim, pessoas pertencentes a dois grupos étnicos distintos não necessariamente conseguiam se entender num primeiro contato. Em geral, os colonizadores não estavam interessados em separá-los por etnia; por vezes juntavam pessoas pertencentes a diferentes ramos culturais e linguísticos, pois a falta de comunicação provavelmente Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 357 Romão diminuiria a tentação por distrações e conversas socializadoras. Esse tipo de coação representava um sofrimento a mais para aqueles que já haviam sido desarraigados de sua terra natal e, sem sequer suporem o que estaria por vir, viam-se presos – caso não sucumbissem às péssimas condições impostas durante a longa travessia transatlântica e ao consequente banzo – nas garras de donatários, senhores de engenho, fazendeiros, feitores, capitães do mato etc. Por outro lado, também podia interessar aos senhores portugueses manter os negros divididos em seus grupos, quando aos domingos os negros se reuniam em “batuques” por nações de origem. Pierre Verger nos lembra que “em 1758, o Conde dos Passos, sétimo vice-rei do Brasil, mostrava-se partidário de distrações dessa natureza (...)”. Mas isso não devia ser entendido como filantropia: “Assim, divididos, eles não se arriscariam a um levante em conjunto, como iriam fazer cinquenta anos11 mais tarde contra os seus senhores” (1997, p. 25). Os portugueses deram início ao comércio de escravos africanos poucas décadas antes do achamento do Brasil. Nesse processo, esteve à frente o soberano D. João II, que tinha como projeto maior “contornar a ponta da África e chegar à Índia” (BUENO, 1998, p. 79). Sobre sua incursão no comércio de escravos africanos, estes dados são reveladores: No mesmo ano [1481] em que assumiu o trono, D. João II mandou construir, sob a direção de Diogo de Azambuja, a Fortaleza de São Jorge da Mina, a oeste da localidade atual de Cape Coast, próximo a Accra, em Gana. Azambuja chegou a esse ponto estratégico, para onde convergiria toda a rede de comércio entre a África árabe e a África negra, em dezembro de 1481 e obteve a concordância (e a conversão) do rei local, Caramansa. Embora fosse saudada por cronistas da época como a “primeira pedra da Igreja Oriental” que D. João II pretendia fundar, o chamado Castelo de Elmina se tornaria o primeiro grande entreposto de escravos da era moderna e o pólo a partir do qual os reinos de Benin e Daomé seriam dizimados. Os primeiros escravos trazidos para o Brasil, em 1533, vieram de Elmina. (BUENO, 1998, p. 80) Sobre a diversidade étnica dos africanos escravizados no Brasil, o antropólogo e etnólogo Arthur Ramos esboçou uma classificação das diferentes civilizações e suas subdivisões em diversas etnias. Estas informações, que apresentaremos a seguir a partir de um texto de Roger Bastide (1960, p. 62) nos permitem [tentar] compreender a complexidade étnica, linguística, cultural e, por conseguinte, religiosa, a que se viram condenados alguns milhões de africanos 11. Verger refere-se a esta insurreição: “Levante escravo conjunto, em Salvador e em Nazaré das Farinhas (Recôncavo): dezembro/1808 – janeiro/1809; levante seguido de aquilombamento, perseguido policial e militarmente pelo Conde da Ponte. Note-se que neste levante tomaram parte escravos urbanos (fugitivos de Salvador) e escravos de engenho. O que chama a atenção é o fato de que, apesar do grande número de participantes, desta vez não houve traição ou vazamento de informações” (RAMOS, 2017, p. 4s.). 358 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 Sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional ao longo de quatro séculos no território brasileiro. Eis a classificação proposta recém-mencionada: a) as civilizações sudanesas representadas especialmente pelos ioruba (nagô, ijexá, egbá, queto etc.), pelos daomeanos do grupo jêge (euê e fon) e pelo grupo fanti-axanti, chamado de mina na época colonial, bem como por grupos menores de krouman, agni, zema, timini; b) as civilizações islamizadas representadas, sobretudo, pelos peul, mandinga e hauçá, e, em menor número, pelos tapa, bornu, gurunsi; c) as civilizações dos bantos do grupo angola-congolês representadas pelos ambunda de Angola (cassanje, bangala, imbangala e dembo), os congo ou cabinda do estuário do Zaire, os benguela, dos quais Martius cita numerosas tribos escravizadas no Brasil; d) por fim, as civilizações de povos bantos da Contra-Costa, representadas pelos moçambique (macua e angico). (BASTIDE, 1960, p. 62; minha tradução) As informações acima nos levam a supor a verdadeira babel em que se viram confinados os africanos, que, em menor ou maior proporção, conforme a região a que foram destinados no Brasil, precisavam encontrar uma fórmula para a comunicação cotidiana. Analogamente, precisavam ajustar suas visões de mundo, das quais também fazia parte o universo religioso. Perante a religiosidade cristã dos colonizadores, baseada em um catolicismo fincado na Inquisição e num repúdio a quaisquer outras manifestações religiosas, os africanos, em seu afã por sobrevivência, lançaram mão, consciente ou inconscientemente, de um refinado estratagema para driblar a vigilância de seus senhores e poder professar seus cultos originais: o sincretismo religioso, tema central deste trabalho, que vinculamos à ideia de tradução. Esse procedimento não foi simples: os escravos provinham de diversas regiões africanas e seguiam religiões – em geral politeístas – às vezes semelhantes, outras vezes bastante distintas entre si. Nos diversos panteões, podiam-se encontrar paralelos e estabelecer transferências – traduções – de arquétipos e tarefas atribuídos às diferentes divindades nas formas originais preconizadas pelas respectivas religiões. Por outro lado, o panorama religioso na encruzilhada brasileira ficava ainda mais complexo, se pensarmos, por exemplo, na existência Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 359 Romão de etnias islamizadas12, que não mais partiam de teogonias politeístas. Sobre a questão do sincretismo forçosamente produzido no Brasil, também não se pode descartar a possibilidade, como afirma Fohr (1997, p. 44), de que “na turbulência da escravidão várias religiões africanas se tenham misturado ainda na África, antes de serem traficadas para o Brasil – talvez desde logo sob influência cristã – e tenham chegado ao Brasil já como diversos sistemas mistos”13. Seja como for, não parece haver registros suficientes que comprovem essa virtualidade. Ao longo da história brasileira, com o passar dos séculos, os elementos religiosos – não apenas cristãos e africanos – tiveram de passar por intensos processos de assimilação, que, apoiando- nos em Mário de Andrade, podemos chamar de processo antropofágico14. Fohr (1997, p. 44s.) também vê alguns pontos coincidentes entre as religiões trazidas pelos africanos e aquelas de matriz indígena brasileira, “sobretudo nos elementos de cura e rituais de sacrifícios, na magia branca e feitiço, culto aos mortos e às almas”, dentre outros. Segundo Verger (1997, p. 22) a presença das religiões africanas no Novo Mundo é “uma consequência imprevista do tráfico de escravos”15. Além de não ter havido necessariamente uma divisão homogênea das diferentes etnias africanas no momento de sua chegada ao Brasil, no decorrer dos séculos também ocorreu uma “migração” interna de africanos. Isso contribuiu para uma crescente mistura de costumes, línguas, normas de comportamento, experiências sociais e religiosas etc. entre os próprios africanos, mas também entre eles, índios brasileiros e a população portuguesa. Tal fato se depreende deste trecho extraído de um trabalho sobre o retrato molecular do Brasil, que revela a 12. Aqui merece menção especial a insurreição protagonizada por escravos islamizados, a maioria de origem ioruba, notadamente hauçá, que se opunham à conversão ao catolicismo. O episódio ocorreu em 1835 na noite de 25 para 26 de fevereiro e ficou conhecido como Revolta dos Malês. Como as forças do governo eram mais numerosas e melhor equipadas, os revoltosos foram derrotados. Alguns foram mortos, outros condenados a açoites ou a retornar à África (cf. FREITAS, 1985). Isso demonstra a complexidade do panorama de culturas, línguas e religiões inscrita na diversidade de etnias africanas no Brasil. Observe-se que o termo malê provém da palavra ioruba imale, que significa maometano, muçulmano (cf. FONSECA JR., 1993, p. 199) 13. Todas as traduções dos trechos citados da obra de Fohr (1997) são minhas. 14. Partindo do livro do naturalista alemão Koch-Grünberg – De Roraima ao Orinoco –, Mário de Andrade apresenta Macunaíma como o protótipo da miscigenação: nasceu índio e um dia, durante “uma pajelança” (ritual religioso indígena), ouve, do “Rei Nagô” (alusão a um sacerdote ioruba), que era inteligente (ANDRADE, 1998, p. 18). Em outra cena, Macunaíma resolve socorrer-se de “Exu diabo” no Rio de Janeiro (ANDRADE, 1998, p. 74). 15. Verger (1997, p. 22) ressalta que os escravos “foram trazidos para os diferentes países das Américas e das Antilhas, provenientes de regiões da África escalonadas de maneira descontínua, ao longo da costa ocidental, entre Senegâmbia e Angola. Provenientes, também, da costa oriental de Moçambique e da ilha de São Lourenço, nome dado nessa época a Madagascar”. 360 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 Sincretismo religioso como estratégia de sobrevivência transnacional e translacional miscigenação de nosso povo com base no estudo não apenas das linhagens paternas da população, mas também das linhagens maternas: No caso das linhagens africanas, sabe-se que a maioria dos escravos trazidos para o Brasil veio da costa oeste da África, da vasta região entre o rio Senegal (no Norte) e a Angola portuguesa (no Sul). Os escravos chamados de ‘minas’, aprisionados na parte mais ao norte dessa região, constituíam cerca de um terço do total trazido para o Brasil e concentraram-se incialmente na Bahia – muitos tinham a religião ioruba, de onde veio o candomblé baiano. A maioria dos escravos do Rio de Janeiro e Minas Gerais veio de Angola – de tribos que falavam dialetos do tronco bantu. Entretanto, as consideráveis migrações de escravos ocorridas entre os estados, no século 19, homogeneizaram sua distribuição. (PENA et al., 2000, p. 24) O estudo do DNA mitocondrial de brasileiros que serviu de base para o supracitado artigo da Revista Ciência Hoje revela o que vários autores, tais como Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (2000), Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil (1995) e Darcy Ribeiro em O povo brasileiro (1995), já haviam afirmado: a população brasileira tem, biologicamente, uma “natureza triíbrida”, já que se constituiu “a partir dos ameríndios, europeus e africanos”. A pesquisa, que foi feita a partir de amostras de DNA de 200 indivíduos do sexo masculino, não-aparentados entre si, que se autodenominavam brancos, traz conclusões que corroboram cientificamente as afirmações dos estudiosos supramencionados, além de um importante detalhe: A contribuição europeia foi basicamente através de homens e a ameríndia e africana foi principalmente através de mulheres. A presença de 60% de matrilinhagens ameríndias e africanas em brasileiros brancos é inesperadamente alta e, por isso, tem grande relevância social. (PENA et al., 2000, p. 25) Se a miscigenação se deu na constituição do DNA brasileiro, é incontestável que a grande mistura de experiências interculturais e transculturais ajudaram – e ainda ajudam – a formar a diversificada paisagem cultural brasileira. Abordaremos a questão da religiosidade africana e do sincretismo religioso afro-brasileiro como uma forma de tradução. Recorreremos ao texto da canção brasileira Guerreira, de João Nogueira e Paulo César Pinheiro, gravada em disco vinil por Clara Nunes em 1984. Também teceremos comentários sobre a canção cubana Babalú, de Margarita Lecuona, gravada por Miguelito Valdés em 1939 e mais tarde por Celia Cruz. No Brasil, ficou conhecida na versão intitulada Babalu, gravada em espanhol por Ângela Maria em 1955; posteriormente haveria também uma gravação de Ângela Maria com Ney Matogrosso (CD intitulado Ângela Maria e amigos, de 1996) e também por Edson Cordeiro (CD intitulado Edson Cordeiro, de 1994). Noutra parte deste artigo, abordaremos a questão da tradução alemã de termos afro-brasileiros presentes em algumas obras escolhidas de Jorge Amado, visando a mostrar como se comporta a tradução desses vocábulos culturalmente bastante marcados. Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018 361 Romão SINCRETISMO RELIGIOSO AFROBRASILEIRO: UMA FORMA DE TRADUÇÃO O sincretismo religioso seguramente não foi um fenômeno restrito às populações africanas no Brasil. Há exemplos sobre o possível sincretismo entre o diabo católico e figuras do “complexo Jurupari” (FREYRE, 2000, p. 208), termo tupi identificado como demônio ou, recorrendo à sinonímia tupi, espécie de Anhangá, Taguaíba, Taúba, Aguaçaig, Guaiupia (cf. CUNHA, 1999, P. 186). Cristina Pompa (2003, p. 44s.), citando o trabalho de outros estudiosos, lembra que “não existe povo tão bárbaro que não possua, por instinto, uma mínima noção de divindade”. Destaca que, entre os indígenas brasileiros, essa tarefa caberia a Tupã, “ser mitológico ligado ao céu e ao trovão e, portanto, por analogia, à dimensão celeste do ser supremo da religião judaico-cristã”. O sincretismo ocorrido entre as crenças indígenas e o sistema católico foi fruto notadamente das investidas jesuíticas em seu afã evangelizador. No caso dos africanos, estes exerceram um papel de protagonistas, ao buscarem formas de continuar a cultuar suas divindades. Para tanto, buscaram uma espécie de meio-termo entre seu real panteão e o sistema dos santos católicos introduzido pelos padres ibéricos. Na religiosidade dos colonizadores, parecia haver um misto de hipocrisia e perversidade: professar a religião católica e ser cristão não necessariamente eram equivalentes. Consideramos aqui o ato de ser cristão em seu sentido mais específico: quando alguém age de forma ética e humana, pratica o amor ao próximo e segue mandamentos divinos que pregam, por exemplo, que não se deve matar o próximo nem cobiçar os bens de outrem. Sobre a hipocrisia e perversidade supramencionadas, Verger (1997, p. 24) passou em revista os nomes dos tumbeiros citados em vários documentos até o ano de 1800 e observou que todos se encontravam “sob a proteção da Virgem Maria, de Cristo, dos santos e, até mesmo, das almas”. Verger também cita que “corvetas, galeras e sumacas tinham belos nomes, como: Nossa Senhora da Conceição e Esperança – Nossa May de Deus, May dos Homens, Santo André dos Pobres e Alma-Nossa Senhora da Ajuda, Santo Antônio e Almas” (VERGER, 1997, p. 24). O autor também informa que o padroeiro, ou seja, “o protetor particular dos homens de negócios que dedicavam ao tráfico de negros na Costa da Mina”, era São José. Para o Castelo da Mina (também chamado de Castelo de Elmina), D. João II inclusive enviara em 1481 uma imagem do santo padroeiro, que ali permaneceu “até o ano de 1637”. Com a presença dos africanos no Brasil Colônia, as diferentes religiões e/ou os cultos tradicionais dos diversos grupos étnicos foram-se assimilando, para, num primeiro passo, paulatinamente constituírem o que se costuma chamar de candomblé e, 362 Trab. Ling. Aplic., Campinas, n(57.1): 353-381, jan./abr. 2018

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culinária e cuidados reservados às crianças de seus senhores, inclusive atuação como . hauçá, e, em menor número, pelos tapa, bornu, gurunsi;.
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