Maria Nazareth Alvim de Barros DEUS RECONHECERÁ OS SEUS A História Secreta dos Cátaros Rocco 2007 Para Marilyn Que navega comigo no mesmo barco Que compartilha das aventuras do percurso Que faz parte da minha história. Sumário INTRODUÇÃO O CONFLITO A INVASÃO A RENDIÇÃO A CAÇADA O DESAFIO A INJUSTIÇA A RECONQUISTA A RESISTÊNCIA O BLEFE A EXTORSÃO A INSUBMISSÃO QUADRO CRONOLÓGICO INTRODUÇÃO COMO O MAL APARECEU NO MUNDO? UM DEUS BOM NÃO PODE DESEJAR o Mal, não pode criar condições para que ele se manifeste; logo, ao lado de um princípio eternamente Bom, existe um princípio eternamente Mau. O pensamento dualista surgiu como resposta satisfatória a este questionamento. No princípio do cristianismo, o problema do Mal agitava as comunidades religiosas orientais. Entretanto, no primeiro século da nossa era, o pensamento dualista, que se manifestava através de heresias, não era condenado. Heresia significava um ato de escolha dentro de princípios filosóficos, filiados a uma escola, seita ou doutrina. Foi entre os séculos II e IV, quando a Igreja determinou os cânones do Novo Testamento, o credo apostólico e se tornou uma instituição eclesiástica, que as heresias foram marginalizadas. Dogmas e doutrinas que elas defendiam, quando comparados aos da ortodoxia, adquiriram sentido contrário ao que foi definido pela Igreja Católica em matéria de fé. Heresias e hereges passaram a ser perseguidos. Em estado latente, elas e eles se mantiveram. Por volta do ano 1000, o problema do Mal voltou a atormentar o homem. O retorno das heresias tornou-se um fato europeu. O que hoje denominamos catarismo apareceu na França, no século XI, possivelmente trazido da Bulgária. O catarismo se instalou também na Catalunha, na Itália, na Alemanha, na Inglaterra, mas foi no Sul da França que tomou forma de religião, organizando- se como Igreja, como civilização original. Foi ainda no Sul da França que ele contou com a conivência dos senhores feudais e exerceu influência social e política sobre a região, modificando o pensamento e os hábitos cotidianos dos sulistas. Em meio a tantas cruzadas, tantas mortes em nome de Cristo, a Cruzada Albigense, empreendida contra cristãos e não contra infiéis, foi a que obteve maior êxito e conseqüências importantes. Após a expedição de 1226, o papa Gregório IX instaurou o primeiro sistema de controle ideológico, feito através de denúncias, delação institucionalizada, interrogatórios e constituição de fichas de informação. A Inquisição, comandada pelos Frades Pregadores, deu nascimento a uma ferramenta que seria privilegiada por todos os totalitarismos futuros, por todas as ditaduras vindouras. Anos depois, o Languedoc{1} foi anexado à Coroa da França, fato de importância capital para a constituição da França atual, porque abriu para o reino as portas do Mediterrâneo. O CONFLITO EM MEADOS DO SÉCULO XI, A GRANDE PREOCUPAÇÃO DA IGREJA ERA o retorno das heresias, que contaminavam os fiéis e os afastavam da ortodoxia de Roma. A mais perniciosa era a difundida entre tecelões. Bispos e arcebispos reagiam. Faziam pregações, reuniam-se em concílios, estabeleciam cânones proibindo feudatários e povo, sob pena de excomunhão{2} e interdição, de dar asilo e proteção a infiéis ou manter quaisquer relações com eles, mas as ameaças não impediram o desenvolvimento da heresia nem o convívio com hereges. Ao contrário, no início do século XII, ela ganhava seguidores por toda parte. Foi para divulgá-la que, em 1116, o monge Henrique de Lausanne chegou a Mans. O bispo da cidade acolheu-o sem questionamentos. Olhos voltados para uma viagem a Roma, mal informado sobre o conteúdo da doutrina que seria exposta e defendida pelo monge, o bispo lhe deu permissão para falar ao povo. Ele partiu, e quando voltou à cidade fervilhava. De um lado, o povo, entusiasmado, escutava atentamente as idéias trazidas por Henrique; de outro, as autoridades religiosas locais escandalizavam-se com o teor de seus calorosos discursos. Proibido de pregar, ele não se acovardou e, para espanto da comunidade eclesiástica, não se calou. Os fiéis, encantados com a heresia, garantiam-lhe autoridade e amparo. O bispo conseguiu rechaçá-lo de seus domínios. Henrique refugiou-se em várias cidades, aliciou inúmeros seguidores, mas onde pregava era escorraçado. Tanto teimou, que foi intimado a se retratar em concílio. Desculpou-se, compungido. Depois, esqueceu promessas e, indiferente a ameaças, reproduziu as antigas crenças. Fuga... Expulsão... Fuga... Expulsão... Vinte anos depois, Henrique de Lausanne abancou-se em Toulouse. Granjeou inúmeros adeptos. Suas palavras resvalaram para cidades vizinhas, e muitos se converteram à heresia. Afonso Jordão, conde de Toulouse, não fora ensinado a tolher ideologias, fossem elas filosóficas, éticas ou religiosas. Estava habituado à diversidade de pensamento, advogava tolerância. Para o conde, nada mais natural que cada um professasse a religião de sua escolha. O renascimento de heresias dualistas era um fato europeu. Desde o ano 1000, após alguns séculos de latência, elas haviam sido reativadas e, se no início do cristianismo alvoroçaram o Oriente, mil anos depois agitavam o Ocidente, trazidas dos Bálcãs e do norte da Itália. Não seria ele quem as reprimiria, menos ainda os católicos da cidade. O motivo? Como perseguir amigos e parentes que cresceram juntos, foram educados nos mesmos moldes de respeito às diferentes maneiras de pensar? Os hereges viviam honradamente, como verdadeiros cristãos. Sustentavam-se através do trabalho de suas mãos, exerciam a pobreza pessoal em nítida vontade de restaurar a pureza dos ensinamentos de Cristo. A heresia preconizava um retorno ao evangelismo primitivo, aquele defendido pelo Salvador e seus apóstolos, e que a Igreja Católica esquecera, tão preocupada se encontrava com hierarquia e bens alcançados. A Igreja não pensava como o conde. Exasperava-se com o avanço da heresia. Para tentar detê-la, convocou Bernardo de Clairvaux{3} para advertir os fiéis, mostrar-lhes o perigo a que se expunham ao abraçar crenças condenadas. Acreditou que a interferência do santo homem intimidaria os desviados e os traria de volta ao rebanho, dando fim à situação que se tornava intolerável para Roma. Bernardo, antes de deixar a abadia, enviou carta a Afonso Jordão. Acusou Henrique de Lausanne de semear males e perigos por onde passava. Recriminou Afonso por acolhê-lo em terras condais, por deixá-lo propagar infames mentiras que esvaziavam igrejas, negavam sacralidade a santuários divinos, vilipendiavam sacramentos, afastavam fiéis de festas valorizadas pela Igreja, condenavam religiosos, lhes roubavam a devida reverência. Desmereceu a atitude do conde, desonrou-o aos olhos de Igreja e Coroa. Como podia Afonso dar abrigo e proteção a herege confesso, inimigo da Igreja? Por que não o afugentava como os franceses?{4} Os toulousianos,{5} pressionados, comprometeram-se a romper quaisquer relações com os hereges que não se retratassem publicamente. Nobres e cavaleiros prometeram que não mais os resguardariam, não dividiriam com eles a mesa, não manteriam nenhum comércio. Capturaram Henrique de Lausanne, aprisionaram-no. Foram as únicas atitudes repressivas que tomaram. Bernardo de Clairvaux visitou localidades vizinhas. Numa delas, dirigiu-se à igreja para pronunciar um sermão. O espaço não era grande o suficiente para comportar os que apreciavam suas palavras. O abade falou especialmente a senhores da cidade. Criticou-os por permitir que idéias condenadas florescessem em suas terras. Repreendeu-os. Ameaçou-os. Exortou-os a castigar os hereges, a retirar- lhes a devida proteção dada a vassalos,{6} a rejeitá-los, marginalizá-los. O santo homem se exaltava diante das próprias palavras, embriagava-se com a grandeza do conteúdo de seu discurso. Enquanto sorvia a própria voz, senhores e cavaleiros, seguidos pelo povo, abandonaram o santuário. Bernardo não arrefeceu. Seguiu-os e, em praça pública, continuou a aconselhar. Eles não deram ouvidos a recriminações e ordens. Entraram em suas casas. Socaram portas e panelas. Gritaram. Impediram que os poucos que permaneceram na praça ouvissem as pias palavras. Bernardo sacudiu a poeira dos pés. Ruminou entre dentes que pó eles eram, e a ele retornariam. Partiu, amaldiçoando a cidade doente, o povo infiel. De volta à abadia, ignorou atos e atitudes hostis e, como se nada o contrariasse, escreveu aos toulousianos, agradeceu a Deus a estadia entre eles, exortou-os, mais uma vez, a perseguir hereges, a detê-los. Em meados do século XII, durante o Io e o IIo Concílios de Reims, a Igreja voltou a pedir a excomunhão dos que protegessem heresiarcas e seus discípulos, a interdição das cidades que os abrigassem. Exigiu também o confisco de bens dos que persistissem no erro, e o ordálio do ferro em brasa aos que pregassem a seita impura que corrompia os fiéis. A Igreja decretou severas medidas contra hereges e seus protetores. Porém os ímpios não foram banidos, punidos, marcados, eliminados; nobres, cavaleiros e religiosos católicos não obedeceram a promessas de evitá-los em suas mesas, de cortar comércio de compra e venda com eles. Ao contrário, os hereges, independente do sexo, discriminados como perfeitos,{7} mas conhecidos como bons cristãos,{8} transitaram livremente, divulgaram a doutrina ilegal, distribuíram consolo a noviços e moribundos, ajudaram doentes e necessitados, trabalharam com as próprias mãos, viveram da venda do que produziam, praticaram pobreza evangélica e castidade. Um grito de alarme trouxe a Tours, na primavera de 1163, cardeais, bispos, abades. Algo precisava ser feito na região do Midi. Os religiosos reunidos em concilio constataram o total fracasso das medidas tomadas até então. A heresia, desenvolvida em Toulouse, espalhou-se pelas cidades vizinhas, a Gasconha{9} e outras províncias, infectando grande número de pessoas. Para que o mal não se agravasse, interditaram qualquer pessoa, sob pena de excomunhão, de privar da companhia de hereges, dar-lhes ajuda, comercializar com eles. Enfatizaram a necessidade de condená-los à errância, isolá-los da sociedade como prescritos. Insistiram na obrigatoriedade de proibi-los de se reunir às claras ou às escondidas; afirmaram a validade de impedi-los de exercer o sagrado direito - há muito transformado em profano — de pensar de forma diferente, de escolher e privilegiar idéias outras que as aceitas pela Igreja. Aplaudiram inquéritos e denúncias. Organizaram comissões de inquisidores. Ouviram testemunhas. Dois anos depois, nada havia mudado. Um colóquio para condenação da heresia reuniu católicos e hereges. Ao evento compareceram arcebispos, bispos, arquidiáconos, prebostes, condes e viscondes. De um lado, agruparam-se os católicos, confiantes na defesa do que julgavam verdade verdadeira: a supremacia da Igreja de Roma. Bem nutridos, rostos redondos, olhos brilhantes, faces rosadas, acostumadas a bons vinhos, à mesa farta; bem vestidos, roupas imaculadamente brancas, dedos enfeitados por ouro e pedras de inúmeros matizes e reflexos. Do outro lado, os suspeitos hereges, certos de que apenas seguiam os ensinamentos do Senhor. Esguios, pele crestada pelo frio, desidratada pelo sol, mãos calejadas pelo trabalho diário, sandálias gastas, pés esgotados pelo ir e vir em auxílio a desvalidos, moribundos, necessitados de palavras de conforto ou consolação. Em assembléia, os acusados foram interrogados para que se pudesse pronunciar, sem erro ou culpa, uma condenação solene. Pública e oficial. O chefe da seita cátara local respondeu em nome do grupo às perguntas do bispo de Albi. O herege proclamou a crença num Deus único, bom, eterno, distanciado de tempo e espaço, desconhecedor de vingança, cólera e morte. Um Deus que não julgava, não condenava, não impunha sacrifícios. Um Deus que havia criado céu e terra, sem dúvida, mas terra nova e novo céu, criação invisível a olhos humanos. Afirmou a existência de uma raiz do mal cujas manifestações também eram eternas, porque o mundo da matéria, transitório, corruptível, limitado por tempo e espaço, não podia ser criação de um Pai Todo-Poderoso. De um Deus bom só podia proceder o Bem. O falso mundo era obra do princípio do Mal,{10} um príncipe perverso responsável pelo universo material e carnal. Defendeu a eternidade da alma, parcela luminosa da criação, mas condenou o corpo, túnica de pele, prisão carnal, fadada à corrupção e à morte. Mostrou o erro que era acreditar em corpo e sangue de Cristo. O filho de Deus, emanação d'Ele, identificado ao puro Espírito, só havia sido enviado ao mundo do Mal em aparência{11} de homem; só em aparência havia morrido sobre a cruz. Reprovou o casamento como sacramento. Deus nada tinha que ver com arranjos humanos, problemas de linhagem, alianças, união carnal de corpos. O casamento tornado sacramento era sacrilégio, porque revestia com aparência de religião um ato puramente social, profano. Advogou a união livre, o respeito à pessoa humana, a igualdade de direitos e deveres. O ato carnal, dentro do casamento ou fora dele, era pecado e nenhuma diferença existia entre concubina e esposa. Se a castidade não pudesse ser priorizada, era melhor manter encontros casuais que regularizar oficialmente o mal.13 O herege desprestigiou o batismo de bebês.{12} Eles não tinham compreensão para comprometimentos com atos de fé. Desvalorizou o batismo pela água. Só o batismo espiritual, conferido ao adulto por livre escolha, o revestia com o Espírito.{13}A alma não reencarnava e, com a morte terrestre do corpo que a retinha, reganhava a eternidade. O bispo condenou solenemente os hereges, refutou as alegações dos bons cristãos com citações do Novo Testamento. Os hereges questionaram a sentença. Revidaram as ofensas. Acusaram os católicos de hipócritas, falsos profetas, indignos representantes da Igreja que se vendiam por honras em praças públicas, postos mais elevados, primeiros lugares à mesa, roupas luxuosas, ouro, prata e pedras preciosas. Chamaram de hereges os católicos que não seguiam os ensinamentos de Cristo, não davam o exemplo para que o rebanho do Senhor
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