DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudíavel a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.link ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Sumário Fora da utopia — Daniel Piza parte 1 — palavras, palavras 1. Por que escrevo 2. Memórias de livraria 3. Confissões de um resenhista 4. Bons livros ruins parte 2 — a memória da política 1. Um enforcamento 2. O abate de um elefante 3. Reflexões sobre Gandhi 4. Como morrem os pobres 5. Dentro da baleia 6. Meu país à direita ou à esquerda parte 3 — a política da literatura 1. Escritores e Leviatã 2. Wells, Hitler e o Estado mundial 3. Lear, Tolstoi e o Bobo 4. Política versus literatura: uma análise de Viagens de Gulliver 5. Mark Twain — O bufão autorizado Fora da utopia Daniel Piza George Orwell era um escritor para quem todos os temas interessavam, dos esportes (que criticou porque incentivariam nacionalismos) à pintura (a de Salvador Dalí, por exemplo, classificou de “doentia”), mas dois temas o acompanhavam do café à ceia: a política e a literatura. Sua vida foi tomada por ambos, como a de muitos de seus contemporâneos. Como ele nasceu em 1903 e morreu em 1950 e viveu experiências raras e intensas nas duas áreas, se tornou também o símbolo de um tempo, a primeira metade do século xx, em que elas se confundiram em incontáveis pontos. O mais curioso é que nenhum outro literato discutiu tanta política e, ao mesmo tempo, colaborou tanto para evitar que a literatura se rendesse a ela. Eric Arthur Blair, seu nome de batismo, respirava política em casa desde cedo. Nasceu em Motihari, na Índia, porque seu pai trabalhava lá, como funcionário público do Império britânico. Era o tempo em que se dizia que o sol nunca se punha para os ingleses, tal a extensão de seu poder imperial. O próprio Eric trabalharia em seu nome nos domínios asiáticos. Quando tinha quatro anos, sua família voltou para a Inglaterra, e ele cresceu alimentado por rosbifes e pudins (e chegaria ao extremo de defender a culinária de seu país, reconhecidamente o ponto fraco da Inglaterra entre as artes civilizadas) e foi estudar no prestigioso Eton, o colégio preferido pela elite que depois seguiria para Cambridge ou Oxford. Teve a sorte de ser muito novo para ir à Primeira Guerra Mundial (1914-8), na qual muitos de uma brilhante geração intelectual morreram. (Mais tarde, ele escreveria que o horror da guerra não é só a morte de civis nos campos de batalha, mas também da “fina flor” de uma sociedade.) Sua vida começou a destoar do currículo “Oxbridge” em 1922, quando foi servir na Polícia Imperial Indiana na Birmânia, país hoje conhecido como Myanmar, localizado entre Bangladesh, China e Tailândia. Consta que ficou chocado com os costumes locais e distribuía corretivos nos dominados. A experiência colonialista, porém, traria aprendizados. Traria, por exemplo, a literatura, pois o período seria descrito em forma de romance em Burmese days, publicado em 1934. Traria, antes, uma fase de extrema pobreza. Quando voltou da Birmânia, em 1927, não tinha emprego e não sabia o que fazer. Decidiu passar dois anos em Paris, onde então se respirava o fim de uma era de liberação criativa nas artes e no comportamento, a qual pouco pôde aproveitar. Deu aulas em escolas e foi professor particular, trabalhou como vendedor de livraria (experiência que descreve em “Memórias de livraria”, um dos quinze ensaios que compõem este volume) e começou a carreira de resenhista de livros que manteria ativa até o fim da vida. Em 1929, quando a crise econômica ameaçava lançar o mundo em trevas, voltou para Londres. Esses anos de “bicos” e dificuldades também se transformariam em literatura, com Down and out in Paris and London (1933), seu inesquecível relato sobre a população de sem-tetos naquelas capitais. Ironicamente, o impacto maior sobre a percepção política de Orwell veio não do colonialismo e da pobreza asiática, mas do convívio com os desempregados e os desgarrados das sociedades européias. Em 1936 o editor Victor Gollance o contratou para visitar regiões que sofriam o desemprego em massa, em Lancashire e Yorkshire, e descrever a situação em Road to Wigan pier, publicado no ano seguinte. Num ensaio de três anos depois, “Dentro da baleia”, que dá título a este livro, observou que, muito mais do que uma crença nas teorias de Marx e Engels, era o desemprego que levava as pessoas a aderir ao comunismo. A afirmação causou celeuma na época. Hoje soa precisa. A vida de Orwell não tinha sossego. Casou-se em 1936 com Eileen O’Shaughnessy (que morreria em 1945) e, no mesmo ano, partiu para a Espanha para lutar na Guerra Civil ao lado dos republicanos, experiência que seria narrada de forma poderosa em Homage to Catalonia (1939). Mas foi ferido por um tiro na nuca em 1938, um ano antes do fim do conflito e do início da Segunda Guerra Mundial. Não era só seu corpo que sofria; Orwell teve um desequilíbrio psicológico e foi internado num sanatório. Quando saiu, foi em busca de recuperação para o Marrocos, onde passou seis meses escrevendo para jornais e para seu próximo livro, Coming up for air (1940). A guerra tinha começado e ele novamente foi trabalhar para o governo britânico, na Guarda Civil, além de fazer transmissões pela rádio bbc, onde, de 1941 a 1943, alternou as notícias políticas com leituras de poesia. Na mesma época, começou a escrever uma coluna de página inteira no Tribune, onde era o editor de livros. Também colaborava com The Observer e Manchester Evening News. Os assuntos predominantes? Literatura e política, claro. É uma seqüência significativa: intensas vivências pessoais seguidas de livros que as tentaram compreender, ora em ficção, ora em não-ficção. Orwell viu o colonialismo, o desemprego, a guerra. Experimentou a pobreza e a violência. Viajou muito, teve contato com diversas classes sociais e realidades locais. Escreveu cinco livros e algumas centenas de artigos. Foi só então, depois dos 42 anos, que publicou os dois romances que lhe dariam fama mundial e posteridade: A revolução dos bichos (1945) e 1984 (1949). Não à toa, são duas alegorias políticas, em que o próprio tema da relação entre palavras e ideologias é dramatizado. Assim como o teatro de Bernard Shaw não pode ser compreendido sem que se compreenda seu jornalismo, a ficção de Orwell é profundamente interligada com seus ensaios e reportagens. O que esta coletânea mostra é que Orwell é ao mesmo tempo um emblema de um período histórico e uma exceção entre seus pares. Politicamente, sempre esteve mais próximo da esquerda, preocupado como era com o que hoje se chama de “inclusão social” e revoltado contra governos autoritários e antidemocráticos. Mas nunca aderiu ao marxismo ou a suas correntes sucessoras; nunca acreditou que havia uma lei histórica que determinava, cedo ou tarde, o suicídio do capitalismo. Com o passar do tempo, foi se tornando cada vez mais cético. Reclamou, por exemplo, da falta de pragmatismo da esquerda britânica e da falta de união das facções esquerdistas espanholas — duas queixas que se tornariam comuns décadas mais tarde em toda a Europa. Jamais caiu no conto da “etapa necessária” de poder de uma minoria para que o proletariado fosse levado ao paraíso. Ao contrário de outros escritores que misturaram ficção e política, como Sartre ou Malraux, jamais elogiou Stalin ou Mao. Ao contrário: satirizou o totalitarismo socialista como poucos, com a grande vantagem de jamais aderir à retórica conservadora ou reacionária. Orwell era o que os anglo-saxões chamam de liberal, ou seja, um sujeito que valoriza as liberdades individuais e os direitos sociais, rejeitando a expansão do Estado, da máquina burocrática, na qual via também as nocivas conseqüências culturais. Para ele, “burguesia” não era um palavrão. Numa das grandes passagens de “Dentro da baleia”, defendendo a criatividade politicamente passiva de Henry Miller, escreveu que o maior inimigo do escritor é a ditadura: [...] Em geral se imaginava que o socialismo poderia preservar, e inclusive expandir, a atmosfera de liberalismo. Agora se começa a perceber o quanto essa idéia é falsa. Quase com certeza estamos rumando para uma era de ditaduras totalitárias — uma era em que a liberdade de pensamento será a princípio um pecado mortal e mais tarde uma abstração sem sentido. O indivíduo autônomo será eliminado da existência. Isso significa que a literatura, na forma em que a conhecemos, deve sofrer ao menos uma morte temporária. [...] Daqui para a frente, porém, o fato de grande importância para o escritor será que este mundo não é o de um escritor. Isso não significa que ele não possa ajudar a fazer nascer uma nova sociedade, mas não pode participar do processo como escritor. Porque como escritor ele é um liberal, e o que ocorre é a destruição do liberalismo. [...] Ao que parece, nada restou exceto quietismo — despojar a realidade de seus horrores pela simples submissão a ela. Entre nas entranhas da baleia — ou, antes, admita estar dentro da baleia (porque, claro, você está). Orwell escreve sob o clima de chumbo da Segunda Guerra. Na realidade, não acha que a ficção de Miller seja uma esperança para o futuro da literatura. Critica Trópico de Câncer por colocar imaginação e estilo a serviço de um individualismo frívolo, impotente, negativista, “emocionalmente espúrio” — amoral, em suma. Mas vê isso como sintoma do beco-sem-saída em que os escritores dos anos 1940 estariam. De um lado, o capitalismo do laissez-faire e da cultura cristã liberal estava em colapso; do outro, o socialismo se revelara mais uma forma de totalitarismo, de extermínio da liberdade de pensamento e criação. Como poderia haver uma literatura “construtiva” diante de tal falta de perspectivas? Este volume, selecionado a partir de coletâneas diversas de seus artigos e ensaios, é repleto de reflexões sobre a função do escritor em tempos de maremoto político. Mas também procura mostrar um Orwell memorialista, mais desarmado, dotado de um poder de observação social e artística ao mesmo tempo incisiva e compreensiva. Na primeira parte, por exemplo, vemos sem firulas por que se tornou escritor (“Até onde se sabe, esse demônio é o mesmo instinto que faz um bebê chamar atenção aos berros”), acompanhamos sua experiência como leitor e crítico (quando defende a idéia de que poucos livros merecem ser resenhados) e conhecemos a categoria dos “bons livros ruins” (histórias como A cabana do pai Tomás que, embora melodramáticas, nos prendem por sua narrativa). Orwell não gostava de escrever sobre livros — nem sobre nada mais — em tom professoral, pseudocientífico, como se ler fosse coisa chata ou questão de status. Em alguns textos esse memorialismo se une à reportagem e produz algumas das peças mais famosas da história do jornalismo literário, estudadas em escolas de comunicação em todo o mundo. É o caso, neste volume, de “Um enforcamento” e “O abate de um elefante”. O primeiro é uma demonstração das habilidades descritivas de Orwell. Não só ele usa as palavras adequadas para criar a imagem na mente do leitor e seleciona os detalhes realmente significativos, mas também acrescenta metáforas, medita sobre a natureza humana, liga substantivos a adjetivos de forma memorável. Classifica a cena da execução na Birmânia como “solene sandice”. “O abate de um elefante” tem ainda mais força. Já revoltado contra o imperialismo e ansioso para abandonar seu trabalho na administração pública, Orwell narra a cena de um elefante que está destruindo um bazar num bairro pobre. Ficamos curiosos sobre o desenrolar da situação. Dois mil nativos cercam o escritor na torcida de que ele atire no animal; Orwell se sente “um fantoche”, obrigado a matar sem nem mesmo saber se era necessário ou não. Há uma sugestão conradiana de complexidade e solidão em todo o texto. “Entendi naquele momento que quando o branco se torna tirano é sua própria liberdade que ele destrói.” Orwell também sabia ser provocador e agressivo. Gostava de polêmicas. A abertura de seu texto sobre Gandhi, por exemplo, provocou ira nos admiradores do pacifista indiano: “Santos devem ser considerados culpados até que se prove sua inocência”. E passa a discutir a vaidade e o anti-humanismo de Gandhi. Lendo “Como morrem os pobres”, seu relato de uma visita a um hospital público de Paris em 1929, nos reasseguramos de que desse assunto, humanismo, Orwell entendia como poucos. Sentimos o clima de abandono e descaso daqueles pacientes a cada linha. Como jornalista-ensaísta, herdeiro de grandes estilistas britânicos do gênero como William Hazlitt, Orwell tinha o dom de desafiar os lugares-comuns vigentes na população, ao mesmo tempo que enfrentava as ilusões da intelectualidade de esquerda. Começa “Meu país à direita ou à esquerda” da seguinte forma: “Ao contrário da crença popular, o passado não foi mais rico de acontecimentos do que o presente”. É uma reflexão sobre a relação dos indivíduos com sua pátria. Orwell defende o patriotismo, como o sentimento de pertencer a uma entidade real chamada país, e não o nacionalismo, que é uma visão conservadora segundo a qual uma nação é inerentemente superior à vizinha. Seu ensaio sobre H. G. Wells, o autor de A máquina do tempo, é cheio de observações interessantes: “As pessoas que dizem que Hitler é o Anticristo ou então o Espírito Santo estão mais próximas de entender a verdade do que os intelectuais que por dez anos pavorosos sustentaram que ele não passa de um personagem saído de uma ópera cômica, que não merece ser levado a sério”. Ou: “As pessoas que demonstraram melhor entendimento do fascismo são as que sofreram com ele ou as que têm um traço de temperamento fascista”. Wells soava razoável ao propor a conjugação de ciência com bom senso, mas para entender o mundo moderno isso não bastava. “[Wells] foi, e ainda é, bastante incapaz de entender que o nacionalismo, a intolerância religiosa e a lealdade feudal são forças bem mais poderosas”, resume. É outra frase bem atual, se pensarmos no 11 de setembro de 2001 e na reação de Bush. Seu ataque ao panfleto de Tolstoi contra Shakespeare é outro grande momento. Identifica a aversão do grande romancista russo ao autor de Rei Lear pelas diferenças de comportamento entre ambos. Shakespeare é mundano, um poeta-pensador que não tem uma postura religiosa diante da vida; não acha que devemos renunciar aos prazeres e incertezas da existência em nome de um prêmio maior. Orwell diz tudo isso sem em nenhum momento criticar Tolstoi como escritor, admirador que era de obras-primas como Guerra e paz e Ana Karenina. Nem sempre que leva as opiniões políticas para o exame de grandes escritores, porém, Orwell tem a mesma capacidade de distinção. Ao analisar o conservadorismo anticientífico de Swift, encontrando suas pegadas em todos os passos das Viagens de Gulliver, apesar de vários insights, termina perdendo a noção dos limites. É verdade que Swift, ao rir da humanidade, também está atacando a Inglaterra. Mas não foi o que fez Dante na Comédia? Critica sua Florença natal e, ao mesmo tempo, ilumina as ironias da natureza humana. Orwell diz admirar Viagens de Gulliver e tê-lo relido uma dúzia de vezes, só que não chega a demonstrar por que sua imaginação literária transcende sua defesa de um mundo estático. Com Mark Twain, é ainda mais injusto. Ele se queixa da carreira do escritor americano como humorista e palestrante. Agudamente, nota que seus contos cômicos pecam por um certo mecanicismo, uma previsibilidade que deriva do desejo de agradar à platéia presente. Mas diz que os livros de Twain dão a impressão de que ele tinha um romance maior por ser escrito, o qual nunca fez. Num trecho, compara o caráter dele com o de Anatole France, dois herdeiros de Voltaire, e diz que o escritor francês era mais erudito, mais corajoso e “mais vivo esteticamente”. Bem, como comprova o interesse por ambos na atualidade, France pode ter sido mais erudito e corajoso, mas certamente não atingiu a vivacidade estética em nenhum romance como Twain em Huckleberry Finn. Mesmo na política sua clareza não foi infalível. Orwell foi profético em suas críticas à esquerda socialista, mas em outros aspectos foi um pensador comum à sua época. Não imaginava que o capitalismo pudesse ser reformulado, como foi, na segunda metade do século xx; hoje a democracia liberal, no sentido mais amplo da expressão, é mais adotada mundo afora do que jamais foi. Para Orwell, o futuro pertencia ao totalitarismo, aos Hitlers e Stalins, e o escritor não passaria então de um registrador da realidade imediata, em vez de um ser pensante capaz de influenciar o curso da humanidade. Mesmo seu conceito de que o socialismo poderia ser uma expansão do liberalismo era ingênuo antes mesmo da década de 1930, como um filósofo como o inglês Bertrand Russell já percebera. E o pessimismo de Orwell não via escape, por exemplo, no sistema democrático à maneira americana, porque para ele a “sociedade de massas” inevitavelmente descambaria em controle dos indivíduos, em cooptação das idéias. Roosevelt não era opção construtiva. Orwell, afinal, não gostava da mentalidade de classe média — religiosa, patrioteira, discriminadora. Esse Orwell algo moralista e nacionalista, que parece ter certeza de que o futuro será da barbárie (e em 1940 chega a dizer que a Inglaterra é uma “grande família comandada pelos membros errados”), pareceu estranhamente ratificado em 1998. Foi quando se revelou que, em 1949, a pedido de Celia Kirwan, funcionária das Relações Exteriores, ele elaborou uma lista de “criptocomunistas” para o governo britânico. Sim, dedurou. Dedurou artistas e
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