Sumário Prefácio à sétima edição Prefácio à terceira edição Prefácio à segunda edição 1. Indicações sobre a estrutura e o processo do “coronelismo” 2. Atribuições municipais 3. Eletividade da administração municipal 4. Receita municipal 5. Organização policial e judiciária 6. Legislação eleitoral 7. Considerações finais Notas Bibliografia citada Sobre o autor Prefácio à sétima edição José Murilo de Carvalho DÍVIDA Devo, indiretamente, a Victor Nunes Leal o interesse pelo tema do coronelismo. Segundo seu próprio depoimento, ele recusou o convite para redigir o verbete sobre o assunto, que lhe fora feito pelos responsáveis pelo Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro organizado pelo CPDOC/FGV e publicado em 1984. Alegou na ocasião falta de competência, por desatualização, em mais uma de suas costumeiras e exageradas manifestações de modéstia. Como segunda opção, fui eu convidado para a tarefa. Ganhei eu, perdeu o Dicionário, perderam os leitores. RECEPÇÃO DE CORONELISMO O primeiro contato que tive com Victor Nunes se deu por ocasião de homenagem que lhe prestamos em 1980 no Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), que então inaugurava o primeiro programa de doutorado em Sociologia e Política organizado no Brasil nos moldes do novo sistema de pós-graduação implantado ao final da década de 1960. Na ocasião, ao responder a saudação que lhe fiz, Victor Nunes voltou pela primeira e última vez ao tema de seu livro que saíra em 1948, para efeito de defesa de tese, ainda com o título original de O município e o regime representativo no Brasil: contribuição ao estudo do coronelismo. Intitulou sugestivamente sua resposta, publicada na revista do Instituto, “O coronelismo e o coronelismo de cada um”. Sua principal preocupação na ocasião foi responder a alguns críticos, sobretudo a Eul-soo Pang, que, segundo ele, não tinham compreendido seu conceito de coronelismo. De fato, a maioria dos autores que empregaram o conceito usado por ele, sem distinção entre críticos e admiradores, identificava coronelismo com mandonismo local. Era o caso do crítico Eul-Soo Pang, mas também do admirador Barbosa Lima Sobrinho, que por insistência do autor escreveu o prefácio à segunda edição do livro feita pela Alpha Omega em 1975 (a primeira saíra em 1949, já com o título atual, sugerido por Emil Farhat, pela Forense), que vem nessa edição também reproduzido. Contra a incompreensão, reafirmou, na resposta mencionada, que para ele o conceito de coronelismo incorporava, sim, traços de mandonismo local, mas era mais que isso, fazia parte de um sistema, de uma trama que ligava coronéis (mandões), governadores e presidente da República. Insistiu no ponto: era a ideia de sistema que distinguia seu conceito e lhe conferia originalidade. Em suas palavras: “O coronel entrou na análise por ser parte do sistema, mas o que mais me preocupava era o sistema, a estrutura e a maneira pela qual as relações de poder se desenvolviam na Primeira República, a partir do município”. A dificuldade que críticos e admiradores encontraram, e ainda encontram, em compreender a novidade do livro, exposta, aliás, com clareza meridiana, marca registrada de tudo que ele escrevia, lembra o episódio verificado durante a defesa da tese na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, em 1947, e comunicado por ele em carta a Alberto Venâncio Filho. O episódio é saboroso e, mesmo que o destinatário da carta já o tenha registrado no prefácio à terceira edição, feita pela Nova Fronteira em 1997, merece ser relembrado. Pedro Calmon, um dos examinadores, no melhor estilo bacharelesco da época, recorreu a uma das muitas fórmulas usadas para humilhar os candidatos aos concursos. Citando Capistrano de Abreu, sentenciou, provocando gargalhadas, que ninguém poderia ignorar completamente o que fosse coronelismo sem ter lido a tese de Victor Nunes. Apesar da extrema modéstia, a vítima, que se preparara cuidadosamente para o certame, não se deixou intimidar. Retrucou, duplicando as gargalhadas, que ninguém poderia ignorar completamente o que fosse sua tese sem ter ouvido a arguição do professor Pedro Calmon. Sinto-me a salvo do risco de merecer a resposta dada a Pedro Calmon, uma vez que, na mesma resposta, Victor Nunes considerou correta minha interpretação de seu livro. Mas, diante da dificuldade que muitos ainda parecem ter na compreensão ou aceitação da novidade conceitual trazida por Coronelismo, e, sobretudo, diante da absoluta necessidade de frisar sua relevância para a história de nossa produção intelectual, creio valer a pena, mesmo passados tantos anos da primeira edição, retomar o debate. Procederei da seguinte maneira: primeiro, mostrarei a novidade da obra; depois, buscarei, na formação de Victor Nunes e no contexto em que trabalhou, possíveis explicações para a natureza inovadora dela; finalmente, comentarei o que resta de Coronelismo nos dias de hoje. ORIGINALIDADES DE CORONELISMO Não foi uma, foram várias as originalidades do livro. Para apontá-las, retomo alguns comentários que fiz na saudação a Victor Nunes por ocasião da homenagem que lhe foi prestada pelo Iuperj. A primeira, a mais importante e menos compreendida, já foi comentada. Tem a ver com o enfoque do coronelismo como sistema, como caracterização da rede nacional de poder desenvolvida no período histórico que correspondeu à primeira experiência do federalismo. O coronelismo, nessa visão, não é simplesmente um fenômeno da política local, não é mandonismo. Tem a ver com a conexão entre município, Estado e União, entre coronéis, governadores e presidente, num jogo de coerção e cooptação exercido nacionalmente. Outra inovação importante foi romper com o estilo dicotômico de analisar a política e a vida nacionais, expresso em polarizações como casa-grande versus Estado (Gilberto Freyre), feudalismo versus capitalismo (Partido Comunista), litoral versus sertão (Euclides da Cunha), eleição versus representação (Gilberto Amado), e, sobretudo, público versus privado (Nestor Duarte, Sérgio Buarque de Holanda). A divergência mais clara de Coronelismo era com A ordem privada e a organização política nacional (1939) de Nestor Duarte, que separava poder público e ordem privada. Sempre tive a impressão de que, em sua tese, Victor Nunes estava polemizando com Nestor Duarte. Ele negava tal intenção. Mas, talvez por sua conhecida elegância, talvez por receio da banca, ou pelas duas coisas, ele não polemizou abertamente com ninguém na tese. Mesmo que o tivesse feito no caso de Nestor Duarte, dificilmente o reconheceria. Victor Nunes não ignorava nem negava as tensões envolvidas nas polarizações, mas buscou entendê-las como relações quase diria dialéticas. O coronel e o governador obedeciam a dinâmicas distintas, mas interagiam, imbricavam-se, invadiam reciprocamente seus territórios, corroendo e alterando no processo a própria natureza do público e do privado. Está aí, parece-me, uma proposta de interpretação de poder explicativo muito maior do que o das dicotomias, em que pese a atração analítica exercida por elas. Em Coronelismo Victor Nunes superou também os determinismos que ainda povoavam nosso pensamento social, alguns deles herdados do século XIX. Havia, entre outros, juridicismos (Alberto Torres), economicismos (Caio Prado), culturalismos (Gilberto Freyre), racismos (Oliveira Viana), psicologismos (Paulo Prado). Victor Nunes combinou diversas abordagens, sem atribuir a apenas uma variável caráter explicativo exclusivo e excludente. Reconhece uma estrutura agrária e uma classe proprietária que se inserem na economia de exportação. Mas o coronel, operador dessa economia, é também um ser profundamente político que interage com o Estado, servindo-o e dele se servindo, perdendo lentamente no processo sua hegemonia. No esquema analítico do autor entram fatores econômicos, políticos e sociais, além dos tradicionais aspectos jurídicos e financeiros. Entra ainda grande sensibilidade para a dimensão histórica, que o faz caracterizar o fenômeno do coronelismo como sistema restrito a um momento específico de nossa vida política. Com isso, evita as análises genéticas que viam na história do país, em sua cultura e sua história, permanências que o condenavam à eterna infantilidade democrática. A essas virtudes, o livro acrescentava um traço metodológico que poderíamos chamar de moderno, surgido após a introdução das ciências sociais em nosso sistema universitário. Ele pode ser definido como combinação do tratamento teórico e conceitual com cuidadosa pesquisa empírica. Em Coronelismo, a preocupação com a precisão conceitual e o esboço de uma teoria que poderíamos chamar de médio alcance (o sistema coronelista) combinam-se com o recurso aos dados quantitativos do IBGE, disponíveis no censo de 1940 e nos anuários, aos Anais e Diário do Congresso, e aos jornais da época e às pesquisas sociológicas e antropológicas que começavam a ser produzidas. Educado na tradição bacharelesca, propensa ao juridicismo e ao ensaísmo, sem treinamento ou estada no exterior de que se beneficiaram, por exemplo, Gilberto Freyre e Sérgio Buarque, sem recorrer a autores estrangeiros, cujas línguas aparentemente não dominava, “o rapazinho caipira de Carangola”, como certa vez se definiu, no esforço de se tornar titular da cátedra de Ciência Política da FNFi, produziu o primeiro trabalho moderno de ciência política em nosso país. GÊNESE DE CORONELISMO Mais difícil do que apontar as inovações do livro é traçar sua gênese, isto é, o caminho percorrido pelo autor em sua produção. Diante da escassez de informações fornecidas por ele, tenho que me restringir a pequenas indicações e algumas hipóteses. Victor Nunes formou-se em 1936, aos 22 anos, bacharel em direito pela Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, instituição resultante da fusão, em 1920, da Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais com a Faculdade Livre de Direito da Capital Federal. Embora exercendo simultaneamente, por necessidade financeira, trabalho jornalístico, não pode não ter sido influenciado pela forte presença na faculdade de professores de esquerda, como Leônidas de Resende, contratado em 1932, depois de derrotar em concurso Alceu Amoroso Lima; Hermes Lima, que impôs em 1933 outra derrota ao líder católico; e Edgardo de Castro Rebelo, de geração mais antiga. Hermes Lima tem quatro textos citados em Coronelismo, e foi posteriormente colega de Victor Nunes no Supremo Tribunal Federal, tendo sido, com este e Evandro Lins e Silva, aposentado compulsoriamente em 1969. Edgardo de Castro Rebelo também é citado na tese. Na Faculdade de Direito, segundo depoimento de Evaristo de Moraes Filho, todos os estudantes eram “mordidos” pelo marxismo. Coronelismo foi criticado, em chave marxista, por Paul Cammack, sob a alegação de que o autor via os coronéis apenas como atores políticos, não como produtores, quer dizer, não como classe social. No entanto, está claro no texto que eles constituem uma classe social, e uma classe dominante, e que foi seu enfraquecimento como produtores que os levou a acordo com o poder estatal. Há aí, sem dúvida, indicação da mordida marxista. A visão de classe não poderia ter tido origem no círculo de amizades do autor, composto de advogados, jornalistas e homens de governo. Muito menos da Faculdade Nacional de Filosofia, onde predominavam professores integralistas, como Álvaro Vieira Pinto e Thiers Martins Moreira, ou tidos como simpatizantes, como Santiago Dantas, além de militantes católicos conservadores, como Alceu Amoroso Lima. A mordida marxista pode lhe ter inoculado também um gostinho por grandes esquemas interpretativos. Depois de trabalhar com Gustavo Capanema no Ministério da Educação, Victor Nunes foi, por indicação do ministro, contratado em 1943 pela Faculdade Nacional de Filosofia, criada em 1939. Substituía o professor André Gross, que retornara à França, como catedrático interino da disciplina de Ciência Política. A titularidade na cátedra exigia defesa de tese. Victor Nunes pôs-se logo a trabalhar intensamente na preparação das aulas e na feitura da tese. Foram, em suas próprias palavras, tempos de “angústia verdadeira”. Nas horas vagas, assistia a concursos para estudar a tática dos arguidores. Não há comentários seus sobre a convivência com os colegas e sobre a possível influência sobre seu trabalho. Comentou uma vez apenas sobre Manuel Bandeira, poeta de sua admiração, mas que nada tinha a ver com coronelismo. Depoimentos da época afirmam que, na verdade, havia pouco contato entre professores. Contato ou não, alguns dos colegas são citados na tese. Um deles é L. A. Costa Pinto, professor assistente da cadeira de sociologia. Dele, Victor Nunes aproveitou os estudos sobre a sociedade rural brasileira e sobre as lutas de família. Outro é Jorge Kingston, catedrático de estatística que escrevera sobre a concentração da propriedade rural em São Paulo. Alceu Amoroso Lima, professor de literatura brasileira, e Djacir Menezes, de economia política, também aparecem na bibliografia. Mas não parece que a citação desses colegas indicasse real influência. O mais provável
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