Slavoj Žižek Como ler Lacan Tradução: Maria Luiza X. de A. Borges Revisão técnica: Marco Antonio Coutinho Jorge Professor do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Instituto de Psicologia/Uerj Para Tim, o mais jovem materialista dialético do mundo! Sumário Introdução 1. Gestos vazios e performativos: Lacan se defronta com a conspiração da CIA 2. O sujeito interpassivo: Lacan gira uma roda de orações 3. De Che vuoi? à fantasia: Lacan De olhos bem fechados 4. Dificuldades com o real: Lacan como espectador de Alien 5. Ideal do eu e supereu: Lacan como espectador de Casablanca 6. “Deus está morto, mas Ele não sabe”: Lacan brinca com Bobók 7. O sujeito perverso da política: Lacan como leitor de Mohammad Bouyeri Notas Cronologia Sugestões de leituras adicionais Índice remissivo Introdução Tentemos lavar um pouco mais nossos miolos.1 EM 2000, O CENTÉSIMO ANIVERSÁRIO da publicação de A interpretação dos sonhos de Freud foi acompanhado por uma nova onda de proclamações triunfalistas a respeito da morte da psicanálise: com os novos avanços das ciências do cérebro, ela está enterrada onde sempre deveria ter estado, no quarto de despejo das buscas pré-científicas e obscurantistas de significados ocultos, ao lado de confessores religiosos e intérpretes de sonhos. Como diz Todd Dufresne,2 nenhuma figura na história do pensamento humano esteve mais errada acerca de todos os seus fundamentos − com exceção de Marx, acrescentariam alguns. Era de se esperar que em 2005 o escandaloso Livro negro do comunismo,3 listando todos os crimes comunistas, fosse seguido pelo Livro negro da psicanálise, que listava todos os erros teóricos e as fraudes clínicas dos psicanalistas.4 Dessa maneira negativa, pelo menos, a profunda solidariedade entre o marxismo e a psicanálise é agora exibida à vista de todos. Há algum sentido nessa oratória fúnebre. Um século atrás, para situar sua descoberta do inconsciente na história da Europa moderna, Freud desenvolveu a ideia de três humilhações sucessivas sofridas pelo homem, as três “doenças narcísicas”, como as chamou. Primeiro Copérnico demonstrou que a Terra gira em torno do Sol, e assim privou-nos a nós, seres humanos, do lugar central no Universo. Depois Darwin demonstrou que emergimos da evolução cega, e nos tomou nosso lugar de honra entre os seres vivos. Finalmente, quando Freud descobriu o papel predominante do inconsciente em processos psíquicos, revelou-se que nosso eu não manda nem mesmo em sua própria casa. Hoje, um século depois, um quadro mais implacável está emergindo. Os últimos avanços científicos parecem infligir uma série de humilhações adicionais à imagem narcísica do homem: nossa mente é uma mera máquina de calcular, processando dados; nosso senso de liberdade e autonomia é a ilusão do usuário dessa máquina. À luz das ciências do cérebro, a própria psicanálise, longe de ser subversiva, parece antes pertencer ao campo humanista tradicional ameaçado pelas mais recentes humilhações. Assim, será que a psicanálise está realmente obsoleta em nossos dias? Parece que sim, em três níveis interligados: 1) o do conhecimento científico, em que o modelo cognitivista-neurobiológico da mente humana parece suplantar o modelo freudiano; 2) o da clínica psiquiátrica, em que o tratamento psicanalítico está perdendo terreno rapidamente para pílulas e terapia comportamental; 3) o do contexto social, em que a imagem freudiana de uma sociedade e de normas sociais que reprimem as pulsões sexuais do indivíduo não soa mais como uma explicação válida para a permissividade hedonística que hoje predomina. Apesar disso, no caso da psicanálise o funeral talvez seja prematuro, celebrado para um paciente que ainda tem uma vida longa pela frente. Em contraste com as verdades “evidentes” abraçadas pelos críticos de Freud, meu objetivo é demonstrar que só hoje o tempo da psicanálise está chegando. Vistos através dos olhos de Lacan, através do que Lacan chama de seu “retorno a Freud”, os insights fundamentais de Freud emergem finalmente em sua verdadeira dimensão. Lacan compreendeu esse retorno como um retorno não ao que Freud disse, mas ao âmago da revolução freudiana, da qual o próprio Freud não tinha plena consciência. Lacan iniciou seu “retorno a Freud” com a leitura linguística de todo o edifício psicanalítico, sintetizada no que é talvez sua fórmula isolada mais conhecida: “O inconsciente está estruturado como uma linguagem.” A percepção predominante do inconsciente é a de que ele é o domínio das pulsões irracionais, algo oposto ao eu consciente e racional. Para Lacan, essa noção do inconsciente pertence à Lebensphilosophie (filosofia de vida) romântica e nada tem a ver com Freud. O inconsciente freudiano causou tamanho escândalo não por afirmar que o eu racional está subordinado ao domínio muito mais vasto dos instintos irracionais cegos, mas porque demonstrou como o próprio inconsciente obedece à sua própria gramática e lógica: o inconsciente fala e pensa. O inconsciente não é terreno exclusivo de pulsões violentas que devem ser domadas pelo eu, mas o lugar onde uma verdade traumática fala abertamente. Aí reside a versão de Lacan do moto de Freud Wo es war, soll ich werden (Onde isso estava, devo advir): não “O eu deveria conquistar o isso”, o lugar das pulsões inconscientes, mas “Eu deveria ousar me aproximar do lugar de minha verdade”. O que me espera “ali” não é uma Verdade profunda com a qual devo me identificar, mas uma verdade insuportável com a qual devo aprender a viver. Como, então, as ideias de Lacan diferem das escolas psicanalíticas convencionais de pensamento e do próprio Freud? Com relação a outras escolas, a primeira coisa que chama a atenção é o teor filosófico da teoria de Lacan. Para ele, fundamentalmente, a psicanálise não é uma teoria e técnica de tratamento de distúrbios psíquicos, mas uma teoria e prática que põe os indivíduos diante da dimensão mais radical da existência humana. Ela não mostra a um indivíduo como ele pode se acomodar às exigências da realidade social; em vez disso, explica de que modo, antes de mais nada, algo como “realidade” se constitui. Ela não capacita simplesmente um ser humano a aceitar a verdade reprimida sobre si mesmo; ela explica como a dimensão da verdade emerge na realidade humana. Na visão de Lacan, formações patológicas como neuroses, psicoses e perversões têm a dignidade de atitudes filosóficas fundamentais em face da realidade. Quando sofro de neurose obsessiva, essa “doença” colore toda a minha relação com a realidade e define a estrutura global de minha personalidade. A principal crítica de Lacan a outras abordagens psicanalíticas diz respeito à sua orientação clínica: para Lacan, o objetivo do tratamento psicanalítico não é o bem-estar, a vida social bem-sucedida ou a realização pessoal do paciente, mas levar o paciente a enfrentar as coordenadas e os impasses essenciais de seu desejo. Com relação a Freud, a primeira coisa que chama a atenção é que a chave usada por Lacan em seu “retorno a Freud” vem de fora do campo da psicanálise: para descerrar os tesouros secretos de Freud, Lacan arregimentou uma tribo variada de teorias, da linguística de Ferdinand de Saussure à teoria matemática dos conjuntos e às filosofias de Platão, Kant, Hegel e Heidegger, passando pela antropologia estrutural de Claude Lévi-Strauss. Disto decorre que a maior parte dos conceitos essenciais de Lacan não tem um equivalente na própria teoria freudiana: Freud nunca menciona a tríade do imaginário, simbólico e real, nunca fala sobre “o grande Outro” como a ordem simbólica, fala de “eu”, não de “sujeito”. Lacan usa esses termos importados de outras disciplinas como instrumentos para fazer distinções que já estão implicitamente presentes em Freud, mesmo que ele não tivesse conhecimento delas. Por exemplo, se a psicanálise é uma “cura pela fala”, se trata distúrbios patológicos somente com palavras, tem de se basear numa certa noção de fala. A tese de Lacan é que Freud não estava ciente da noção de fala implicada por sua própria teoria e prática, e que só podemos desenvolver essa noção se nos referirmos à linguística saussuriana, à teoria dos atos de fala e à dialética hegeliana do reconhecimento. O “retorno a Freud” de Lacan forneceu um novo alicerce teórico para a psicanálise, com imensas consequências também para o tratamento analítico. Controvérsia, crise e até escândalo acompanharam Lacan ao longo de toda a sua carreira. Ele não só foi obrigado a se desvincular da Associação Internacional de Psicanálise (ver Cronologia), em 1963, como suas ideias provocativas incomodaram muitos pensadores progressistas, de marxistas críticos a feministas. Embora seja usualmente percebido na academia ocidental como um tipo de pós-modernista ou desconstrucionista, Lacan escapa dos limites indicados por esses rótulos. Ao longo de toda a sua vida ele foi superando rótulos associados a seu nome: fenomenologista, hegeliano, heideggeriano, estruturalista, pós-estruturalista; não admira, uma vez que o traço mais importante de seu ensinamento é a autocrítica permanente. Lacan era um leitor e intérprete voraz; para ele, a própria psicanálise é um método de leitura de textos, orais (a fala do paciente) ou escritos. Não há maneira melhor de ler Lacan, então, que praticar seu modo de leitura e ler os textos de outros com Lacan. Assim, cada capítulo deste livro vai confrontar uma passagem de Lacan com um outro fragmento (de filosofia, de arte, de cultura popular e ideologia). A posição lacaniana será elucidada através da leitura lacaniana do outro texto. Outra característica deste livro é uma vasta exclusão: ele ignora quase por completo a teoria de Lacan acerca do que se passa no tratamento psicanalítico. Lacan foi antes de tudo um clínico, e considerações clínicas permeiam tudo o que ele escreveu e fez. Mesmo quando ele lê Platão, são Tomás de Aquino, Hegel, Kierkegaard, é sempre para elucidar um problema clínico preciso. A própria ubiquidade dessas considerações é o que nos permite excluí-las: precisamente porque o clínico está em toda parte, podemos contornar o processo e nos concentrar, em vez disso, em seus efeitos, no modo como ele colore tudo que parece não clínico − esse é o verdadeiro teste de seu lugar central. Em vez de explicar Lacan por meio de seu contexto histórico e teórico, Como ler Lacan usará o próprio Lacan para explicar nossas agruras sociais e libidinais. Em vez de pronunciar um julgamento imparcial, este livro oferecerá uma leitura partidária − é parte da teoria lacaniana que toda verdade é parcial. O próprio Lacan, em sua leitura de Freud, exemplifica o poder dessa abordagem parcial. Em suas Notas para uma definição de cultura, T.S. Eliot observa que há momentos em que a única escolha se dá entre sectarismo e descrença, momentos críticos em que a única maneira de manter uma religião viva é levar a cabo uma dissidência sectária de seu corpo principal. Por meio dessa dissidência sectária, dissociando-se do cadáver em deterioração da Associação Internacional de Psicanálise, Lacan manteve o ensinamento freudiano vivo. Cinquenta anos depois, compete a nós fazer o mesmo com Lacan.a a Uma observação final: como este livro é uma introdução a Lacan, focada em alguns de seus conceitos básicos, e como este tópico é o foco de meu trabalho nas últimas décadas, não houve meio de evitar alguma canibalização de meus livros já publicados. Para compensar, tomei grande cuidado em dar a cada uma dessas passagens emprestadas um novo desdobramento aqui. 1. Gestos vazios e performativos: Lacan se defronta com a conspiração da CIA Será nesses dons, ou então nas senhas que neles harmonizam seu contrassenso salutar, que começa a linguagem com a lei? Pois esses dons já são símbolos, na medida em que símbolo quer dizer pacto e em que, antes de mais nada, eles são significantes do pacto que constituem como significado: como bem se vê o fato de que os objetos da troca simbólica – vasos feitos para ficar vazios, escudos pesados demais para carregar, feixes que se ressecarão, lanças enterradas no solo – são desprovidos de uso por destinação, senão supérfluos por sua abundância. Será essa neutralização do significante a totalidade da natureza da linguagem? Tomada por esse valor, encontraríamos seu esboço nas gaivotas, por exemplo, durante a exibição sexual, materializado no peixe que elas passam umas às outras de bico em bico, e no qual os etologistas – se realmente cabe ver nisso com eles o instrumento de uma agitação do grupo que seria equivalente a uma festa – estariam perfeitamente justificados em reconhecer um símbolo.5 AS NOVELAS MEXICANAS SÃO GRAVADAS num ritmo tão frenético (um episódio de 25 minutos por dia, todos os dias) que os atores sequer recebem o texto para aprender suas falas de antemão; usam minúsculos receptores em seus ouvidos que lhes dizem o que fazer e aprendem a representar o que ouvem (“Agora lhe dê um tapa e diga que o odeia! Depois o abrace! …”). Esse procedimento nos dá uma imagem do que, segundo a percepção comum, Lacan quer dizer com “o grande Outro”. A ordem simbólica, a constituição não escrita da sociedade, é a segunda natureza de todo ser falante: ela está aqui, dirigindo e controlando os meus atos; é o mar em que nado, mas permanece essencialmente impenetrável − nunca posso pô-la diante de mim e segurá-la. É como se nós, sujeitos de linguagem, falássemos e interagíssemos como fantoches, nossa fala e gestos ditados por algo sem nome que tudo impregna. Será isso o mesmo que dizer que, para Lacan, nós, indivíduos humanos, somos meros epifenômenos, sombras sem nenhum poder real próprio? Que nossa autopercepção como agentes livres autônomos é uma espécie de “ilusão do usuário” cegando-nos para o fato de que
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