Classes sociais e grupos subalternos: distinção teórica e aplicação política LEANDRO GALASTRI * Introdução O objetivo deste texto é apresentar, em seus traços principais, o modo em que Gramsci associa o conceito de “classes sociais” àquele de “grupos subalternos” e como tal associação pode ser aplicada à análise política das relações de força numa dada formação social capitalista. Na primeira parte, mobilizo alguns autores centrais com respeito ao tema das classes que guardem alguma proximidade com a concepção de Gramsci para melhor esclarecer, por comparação, como ela se apresenta nos Quaderni del carcere [Cadernos do cárcere]. A seguir, deter-me-ei especificamente sobre os elementos de distinção e aproximação entre as concep- ções de “classes sociais” e “grupos subalternos” em Gramsci. Na sequência, como exemplo de aplicação desses elementos de distinção e aproximação, farei um breve debate crítico com a assimilação daquelas concepções gramscianas pela corrente dos subaltern studies. Por fim, seguem-se as observações finais do meu trabalho. Sobre as concepções de classe em Gramsci, Bensaïd, Thompson, Poulantzas e Marx Considerando “classe social” como categoria, uma criação do pensamento para a compreensão de aspectos específicos da realidade, deve-se entendê-la como uma acepção apta a lidar com o dinamismo das lutas sociais reais. Os conceitos * Professor de Ciência Política da Universidade Federal de Alfenas (Unifal-MG). E-mail: leandroga- [email protected] Classes sociais e grupos sabalternos: distinção teórica e aplicação política • 35 MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 3355 1111//0099//22001144 1155::0022::5599 de burguesia, proletariado, camponês, lúmpen etc. procuram identificar as sin- gularidades e particularidades que identificam diferentes fenômenos na categoria geral de classes sociais. Tais conceitos são interdependentes e se apresentam como momentos distintos e/ou antagônicos do conjunto de relações sociais constitui- doras do capital. Ao se trabalhar com a noção de classes e grupos subalternos, seria preciso procurar entender por que Gramsci passou a utilizá-la no lugar das noções mais consagradas de proletariado, classe operária, campesinato. Segundo Del Roio (2007), a hipótese mais provável é que tenha se tratado de um desenvolvimento na sua elaboração, que teria partido da especificidade da questão operária em direção a níveis sempre mais altos de complexidade e generalidade, em busca de uma definição científica que contemplasse elementos que pudessem compor uma nova sociedade civil anticapitalista. Durante o período em que viveu em Torino, Gramsci testemunhou e viveu de maneira intensa a experiência dos conselhos de fábrica da segunda década do sé- culo XX. A reflexão teórica que daí seria desenvolvida por Gramsci, sobretudo por meio do jornal que dirigia, L’Ordine Nuovo, teria estimulado nele a concepção de uma revolução que nasceria da autonomia e da auto-organização do processo fabril, na qual os conselhos seriam o fundamento da democracia operária (Ibid.). Mas a derrota da revolução socialista internacional, marcada notadamente pelos reveses na Alemanha e na Itália, teria feito com que Gramsci se voltasse para a diversidade e as especificidades nacionais em primeiro plano. Teria sido paulatinamente, mas sobretudo a partir do fim do ciclo revolucio- nário europeu, em 1923, que Gramsci iniciaria sua busca pelas razões da derrota do biennio rosso e os caminhos da revolução socialista na Itália e no mundo (Ibid.). Era necessário conhecer as especificidades nacionais. Os conceitos abstra- tos de “proletariado” e “campesinato” não seriam suficientes para se compreender em toda sua natureza e diversidade as lutas de classe na Itália. As diferenças entre o Norte e o Sul, as oposições entre os próprios trabalhadores de uma e outra região, os diferentes níveis culturais relativos às diferenças de classe, tudo isso precisava ser rigorosamente apreendido se se quisesse traçar uma estratégia socialista para a Itália. Para Antonio Gramsci, a história dos grupos subalternos é necessariamente desagregada e episódica, e a tendência que tais grupos pos- suem para a unificação só se concretizaria com uma vitória política permanente (Gramsci, 2001, p.2283). Para ele, os grupos subalternos são formados pelo conjunto das massas do- minadas, mas sem possuir agregação de classe. Os grupos subalternos não estão necessariamente unificados em classes sociais, pois, para que isso ocorresse, deveriam possuir formações, agregados próprios que interviessem politicamente na relação de forças sociais vigente em determinada formação social. Conside- rando a “unidade histórica fundamental” como resultado das relações orgânicas entre Estado e sociedade civil, Gramsci conclui que as classes subalternas, “por 36 • Crítica Marxista, n.39, p.35-55, 2014. MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 3366 1111//0099//22001144 1155::0022::5599 definição”, não são unificadas e não podem se unificar enquanto não puderem “se tornar Estado” (Ibid., p.2288). Para o filósofo francês Daniel Bensaïd, do ponto de vista do materialismo histórico, “não há uma concepção sociológica classificatória de classe. Há, sim, uma concepção estratégica de classe realizada a partir da sua luta” (Bensaïd, 2010). Segundo ele, em Marx, a noção de classe não seria redutível a um atributo de que seriam portadores os indivíduos que a compõem, nem à soma desses indivíduos. A classe seria uma totalidade relacional, e não uma simples soma (Bensaïd, 1999, p.147). A classe existiria somente em relação conflituosa com outras classes, revelando-se assim “no e pelo movimento do capital” (Ibid., p.153). Assim, a ideia de classes pressuporia o conflito. Para Bensaïd, a apresentação, n’O Capital, da teoria do valor-trabalho e da mais-valia corresponderia já a uma abordagem teórica das classes, o que ocorreria na medida em que tal apresentação expõe a relação antagônica de exploração, embora faltem ainda, nesse caso, algumas mediações para se chegar à classe plenamente determinada (Ibid., p.154). Daniel Bensaïd argumenta que grande parte dos “autoproclamados” herdeiros de Marx seriam não mais que “classificadores” ao manejar o tema das classes sociais, dada a dificuldade em compreender a originalidade de Marx no assunto e a confusão que empreenderiam com frequência nas discussões sobre classes, castas, ordens etc. (Bensaïd, 1995, p.107). A classe enquanto “relação” seria, sobretudo, a “expressão social coletiva do fato da exploração e, naturalmente, da resistência a esse fato” (Sainte-Croix, apud Bensaïd, 1995, p.111). A classe não seria, portanto, um dado estrutural inerte. A “resistência” seria constitutiva de sua determinação. De acordo com o filósofo francês, tal abordagem ficaria mais clara atentando- -se para o contexto do “debate anglo-saxão”, que oporia os partidários de uma determinação estrutural das classes (alusão à leitura estrutural do marxismo repre- sentada principalmente por Althusser e o “primeiro” Poulantzas) aos defensores de um “primado da ação” (experiência vivida, preferências) influenciados pelos escritos do historiador britânico E. P. Thompson a respeito da formação da classe operária britânica (Bensaïd, 1995, p.111). De fato, Thompson defende, no prefá- cio à Formação da classe operária inglesa, que a “classe” não é uma “estrutura” ou uma “categoria”, mas algo que ocorreria efetivamente nas relações humanas, “cuja ocorrência pode ser demonstrada” (Thompson, 1987, p.9). A classe social seria, assim, um fenômeno histórico, que unificaria uma série de acontecimentos “díspares e aparentemente desconectados, tanto na matéria-prima da experiência como na consciência” (Ibid.). De que maneira Thompson credita à experiência o surgimento, a formação de uma classe? Segundo ele, a classe “ocorreria” quando alguns homens sentem e articulam a homogeneidade de seus interesses como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), e o fazem contra outros homens cujos interesses não apenas diferem, mas geralmente se opõem aos seus. A experiência de classe seria determinada, em grande medida, pelas relações de produção nas quais os Classes sociais e grupos sabalternos: distinção teórica e aplicação política • 37 MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 3377 1111//0099//22001144 1155::0022::5599 homens nascem ou entram involuntariamente. A “consciência de classe”, por sua vez, seria a forma como essas experiências são tratadas culturalmente, por meio de tradições, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Porém, a consciência não aparece determinada, como ocorre com a experiência. A consciência de classe surgiria da mesma forma em tempos e lugares diferentes, mas nunca exatamente da mesma forma, daí a impossibilidade de estabelecer leis a respeito (Ibid., p.10). Para Thompson, a classe é um processo, não uma “coisa”, um dado quantifi- cável. Sua “consciência” ou seus “interesses” não existem a priori, não esperam ser descobertos ou alcançados, mas se constroem na ocorrência da classe. Esta acepção de classe traria consigo a noção de relação que, como tal, seria algo fluido e escaparia à análise se se tentasse “imobilizá-la num dado momento e dissecar sua estrutura” (Ibid.). Segue o autor afirmando que não haveria classes caso a história fosse “congelada” num determinado ponto, mas apenas uma “multidão de indivíduos com um amontoado de experiências” (Ibid.). A manifestação das classes apareceria examinando esses homens durante um período adequado de mudanças sociais, em que padrões em suas relações, ideias e instituições poderiam ser observados: “a classe é definida pelos homens enquanto vivem sua própria história e, ao final, esta é sua única definição” (Ibid.). Assim, para Thompson, a classe é definitivamente uma categoria histórica derivada de processos sociais através do tempo. As classes seriam conhecidas porque, reiteradamente, as pessoas teriam se comportado de modo classista, gerando regularidade de respostas a situações análogas em diferentes espaços. Segundo o autor, isso enfatizaria o fato de a classe, “no seu sentido heurístico, ser inseparável da noção de ‘luta de classes’” (Thompson, 2001, p.274). Thompson destaca o que ele considera ser a “distorção” sofrida por grande parte da teoria e da historiografia marxistas a partir do exame de classe segundo as categorias de “base” e “superestrutura”, ou mais consagradamente “estrutura” e “superestru- tura”, a partir do prefácio de Marx de 1859 à sua “Contribuição para a crítica da economia política”. O equívoco estaria na interpretação segundo a qual as forças e as relações produtivas forneceriam a “‘base’, que se supõe real e objetiva, e delas a consciência de classe emergiria como uma superestrutura ‘derivada’” (Ibid., p.278). Esta é uma crítica da qual Gramsci também se ocupou, procurando realizar uma releitura do prefácio de Marx que superasse as interpretações economicistas e deterministas que dele haviam resultado. Sabe-se que, a partir da análise do prefácio, Gramsci alcança uma caracteri- zação do movimento histórico calcada, sobretudo, na ideia de relações de força ou, em última análise, na política. A relação estrutura-superestrutura evolui, na análise dialética de Gramsci, para diferentes momentos de relação de forças, num quadro modelar de desenvolvimento de determinada formação social: I) Uma relação de forças sociais estreitamente ligada à estrutura, objetiva, indepen- dente da vontade dos homens, que pode ser medida com os recursos das ciências exatas ou físicas [...]. 38 • Crítica Marxista, n.39, p.35-55, 2014. MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 3388 1111//0099//22001144 1155::0033::0000 II) Um momento sucessivo que é a relação de forças políticas, ou seja, a avaliação do grau de homogeneidade, de autoconsciência e de organização alcançado pelos vários grupos sociais [...]. III) O terceiro momento é aquele da relação de forças militares, imediatamente decisivo em cada caso (o desenvolvimento histórico oscila continuamente entre o primeiro e o terceiro momento, com a mediação do segundo) [...]. (Gramsci, 2001, p.1583-1586) O que Gramsci classifica como primeiro nível de relações de forças, aquele que se refere diretamente ao desenvolvimento da estrutura econômica de uma determinada formação social, já estaria definido e consolidado na fase con- temporânea do desenvolvimento capitalista. Segundo Cospito (2000, p.100), Gramsci já estaria refinando o tratamento da questão relativa às relações entre estrutura e superestrutura ao analisar a crise econômica de 1929, ao considerar que se trataria de um processo com possibilidade de várias definições, sendo- -lhe impossível apontar uma única causa. Seria, para Gramsci, um processo com múltiplas manifestações, cujas causas e efeitos estariam entrelaçados (Gramsci, 2001, p.1755-1756). Tais observações de Gramsci forneceriam duas importantes conclusões gerais, a saber, que a crise de 1929, ao não provocar a esperada der- rocada final do capitalismo, contribuiria para estimular nele a refutação de uma relação estreitamente causal entre estrutura e superestrutura e, finalmente, que tal refutação significaria, na realidade, negar a própria imagem de uma “base” sobre a qual se elevaria uma determinada superestrutura destinada a ruir no momento da desorganização daquela base. Daí, segundo Cospito, a necessidade de se su- perar o próprio postulado do problema em termos de relações entre estrutura e superestrutura (Cospito, 2000, p.101). Aponta Cospito que, já em 1930, em conversas com seus companheiros de prisão, Gramsci, para romper com aqueles que acusariam o marxismo de mecani- cismo, fatalismo, determinismo econômico etc., sugeria que não se falasse mais em “estrutura” e “superestrutura”, mas apenas em “processo histórico”, do qual todos os fatores fariam parte (Ibid., p.104). Para Gramsci, isso seria assim porque em sua visão era necessária a colocação da questão em termos “histórico-políticos”. A estrutura-superestrutura se converteria então na dialética entre forças subjetivas e objetivas, que seria muito menos dicotômica já que, para Gramsci, “objetivo” significa “humanamente objetivo” e, assim, também “humanamente subjetivo” e, portanto, “universal subjetivo” (Ibid., p.105). Para Burgio, existiria uma possibilidade de leitura múltipla da análise grams- ciana das relações de força (Burgio, 2003, p.114). Segundo a leitura mais simples, os três “momentos” da relação de força (social, político e militar) representariam o âmbito de referência da análise social-política, análise que deve se mover a partir do reconhecimento da composição social, aferir o estado das subjetividades políticas e, finalmente, preparar o terreno dos conflitos internacionais (Ibid.). Classes sociais e grupos sabalternos: distinção teórica e aplicação política • 39 MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 3399 1111//0099//22001144 1155::0033::0000 Neste sentido, poder-se-ia dizer que o objetivo teórico da “tripartição da relação de força” seria fornecer um quadro geral das articulações da totalidade político- -social, a partir das quais se desenvolveriam conflitos em condições de determinar uma crise histórica (Ibid.). Assim, quando absolutizada, a relação das “forças sociais” (referente ao “mo- mento” social) constituiria a representação do conflito de classe pela ótica econo- micista, própria, por exemplo, do sindicalismo revolucionário, não por acaso objeto da crítica de Gramsci. A relação das “forças políticas”, no entanto, corresponderia à teoria crítica elevada ao nível de complexidade correspondente à análise marxiana do capital como relação social (Ibid.). Neste terreno, os sujeitos seriam constituídos como forças “sociais-políticas” que se determinariam num contexto de relações relativamente independentes do processo de produção imediato e com base na elaboração crítica das próprias funções. Finalmente, a relação das “forças militares” refletiria a análise madura dos conflitos bélicos enquanto projeções externas (e manifestações extremas) das contradições do sistema capitalista. A esta análise estaria subjacente a ideia – central na análise leniniana sobre o imperialismo – de que a dinâmica da acumulação capitalista conduziria inevitavelmente à guerra, dadas as conexões das economias nacionais no âmbito internacional pela via das tensões referentes ao controle monopolista de mercados de consumo, matérias- -primas e recursos energéticos (Ibid.). A concepção dialética do nexo estrutura-superestrutura seria uma característica definidora do marxismo de Gramsci e um dos eixos fundamentais de sua crítica antideterminista e antieconomicista, reconhecendo a capacidade do momento sub- jetivo de incidir sobre terreno estrutural (Burgio, 2002, p.121). Do ponto de vista do materialismo histórico, a natureza dialética (de ação recíproca) daria significado ao nexo estrutura-superestrutura em todas as formações sociais. A relevância dessa questão conferiria à análise gramsciana um significado específico e historicamente referido. A ênfase recairia sobre as consequências práticas (políticas) da natu- reza contraditória das relações. Por sua vez, tais consequências – a atualização da perspectiva revolucionária como possibilidade concreta – remeteriam aos progressos alcançados pela massa subalterna no terreno da autoconsciência e do desenvolvimento histórico concreto da sociedade moderna (Ibid., p.122). Afirmando, assim, a capacidade do elemento subjetivo de incidir também na determinação das dimensões estruturais de uma formação social, Gramsci transforma, como já observado, a dicotomia “estrutura x superestrutura” em campo de relações de forças políticas, adiantando uma problemática semelhante à da “experiência” reivindicada por Thompson. Este, por sua vez, a contrapõe às leituras estruturais do marxismo como a de Poulantzas, por exemplo, para quem a classe social seria um “conceito” que indicaria os efeitos das estruturas de um modo de produção “ou de uma formação social” sobre seus “suportes” agentes (Poulantzas, 1977, p.65). De todo modo, também para Poulantzas, as classes sociais não seriam uma “coisa empírica”. Mais uma vez, elas indicariam “o efei- 40 • Crítica Marxista, n.39, p.35-55, 2014. MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 4400 1111//0099//22001144 1155::0033::0000 to de um conjunto de estruturas dadas, conjunto esse que determina as relações sociais como relações de classe” (Ibid.). Esses efeitos, segundo Poulantzas, seriam produzidos, mais exatamente, pela articulação dos níveis estruturais (econômico, político e ideológico) que especificariam um determinado modo de produção ou uma formação social. Embora a noção de “efeitos” pareça neutralizar eventuais possibilidades de iniciativas de classe, Poulantzas fornece pistas para a superação deste problema, afirmando que “as classes conotam sempre práticas de classe, e estas práticas não são estruturas” (Ibid., p.66). A constituição das classes não diria respeito apenas ao nível econômico, mas à articulação do conjunto dos níveis de um modo de produção ou de uma formação social: “a organização das instâncias em níveis econômico, político e ideológico reflete-se, nas relações sociais, em prática econômica, política e ideológica de classe e em luta das práticas das di- versas classes” (Ibid.). Em Poulantzas, os níveis estruturais tanto do modo de produção quanto da formação social estariam misturados e em articulação recíproca e cruzada, já que, para ele (baseando-se em Althusser), uma formação social seria o resultado da pre- sença de um conjunto de estruturas de diferentes modos de produção simultâneos, com um deles sendo o modo de produção dominante em determinada época. A definição de Olin Wright (1985) tenta avançar a partir das asserções poulantzianas quando propõe que “a organização social da produção determina uma estrutura de ‘espaços vazios’ nas relações de classe, a serem preenchidos pelas pessoas”. Assim estaria constituída uma “estrutura de classe” (Olin Wright, 1985, p.10). Por outro lado, a “formação de classe” se referiria às coletividades organizadas no interior daquela “estrutura de classe”, na base de interesses moldados pela “estrutura de classe”. A formação de classe seria, assim, uma variante. O autor apresenta uma distinção entre modos de produção e formações sociais baseada em níveis de abstração. Assim, do nível mais abstrato para o mais concreto, teríamos o modo de produção, a formação social e, finalmente, o que o autor chama de “conjuntura concreta”. A sociedade, os indivíduos, os grupos e as organizações comporiam as “unidades de análise” deste último nível. Desta forma, a análise do grau de sindicalização, a formação de partidos, os movimentos sociais de base classista seriam análises das formações sociais em seus níveis mais concretos (Ibid., p.10). Assim, uma das tarefas analíticas para o estudo das classes sociais seria realizar a tradução da estrutura de relações de classe para o processo de formação de atores coletivos, passando-se do nível abstrato da análise da estrutura de classes para o nível concreto da análise da “formação de classes” (Ibid., p.123). Mas qual a definição estritamente marxiana sobre a estrutura e a formação das classes sociais, ou o que seria uma classe social propriamente dita para Marx? É notório que Marx não elaborou uma definição clara a respeito, abundando a literatura que debate e “embate-se” sobre a questão. Mas acredito ser possível encontrar em Marx indicações do caráter eminentemente político das condições de existência das classes. Nas palavras de Marx, já em A ideologia alemã, “os Classes sociais e grupos sabalternos: distinção teórica e aplicação política • 41 MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 4411 1111//0099//22001144 1155::0033::0000 indivíduos isolados só formam uma classe na medida em que devem travar uma luta comum contra outra classe; quanto ao mais, eles se comportam como inimi- gos na concorrência” (Marx; Engels, 1998, p.61).1 Por sua vez, no Manifesto do Partido Comunista, lemos que “toda luta de classes é uma luta política” (Marx; Engels, 1988, p.75), além da observação de que a organização dos proletários em classe é sua organização em “partido político” (Ibid.). Neste raciocínio, e já recorrendo aqui a minhas hipóteses a partir de Gramsci, poder-se-ia afirmar que as classes dominadas formam-se, enquanto classes, desde que frações dos grupos subalternos estejam organizadas com o objetivo de colocar em xeque, combater, questionar ou ameaçar algum fundamento material das relações de classe vigentes. Enquanto as classes e frações de classes dominantes encontram- -se permanentemente organizadas por meio dos aparelhos do Estado capitalista, as classes dominadas encontram-se política e ideologicamente dispersas na forma de grupos subalternos. A obra de Marx O 18 de brumário de Luís Bonaparte fornece importantes pistas para essa distinção. Nela fica demonstrado pelo autor que a burguesia, uma vez organizada em Estado (pelo menos suas frações dominantes), reúne, paradoxalmente, condições para recuar como classe, deixando intacta a estrutura burocrática executiva formatada em função de seus interesses materiais. Esta estrutura pode, inclusive, ser ocupada e administrada por agentes que se encon- trem desincumbidos de qualquer representação direta da burguesia como classe fundamental. É justamente por ser uma estrutura burocrática e militar construída em função de específicos interesses das classes dominantes que não basta ao proletariado ocupá-la, como enfatizará Lenin n’O Estado e a revolução, mas destruí-la para erigir nova estrutura estatal formatada, desta feita, aos interesses gerais do proletariado. As classes dominadas não se “encaixam” como dirigentes de uma estrutura de dominação construída originariamente contra seus interesses, daí a necessidade de erigir as suas próprias. A organização do proletariado como classe dominante, portanto como Estado, é a culminação do processo de sua própria constituição como classe. No prefácio à segunda edição d’O 18 de brumário, ao falar dos conflitos sociais na antiga Roma, Marx localiza “a grande massa produtiva da popula- ção”, os escravos, abaixo do que ele considera ser a dimensão da luta de classes, “travada apenas no âmbito de uma minoria privilegiada, entre os ricos livres e os pobres livres [...]” (2011, p.19). O fato de os grupos subalternos de hoje serem formados por indivíduos possuidores do status formal de “cidadãos” não os dei- 1 Marx prossegue, entretanto: “Por outro lado, a classe torna-se, por sua vez, independente em relação aos indivíduos, de maneira que esses têm suas condições de vida estabelecidas antecipadamente, recebem de sua classe, já delineada, sua posição na vida e ao mesmo tempo seu desenvolvimento pessoal; são subordinados à sua classe” (Marx; Engels, 1998, p.61). Aqui se trataria, sobretudo, não de classes sociais segundo nossa proposta, mas de grupos dispersos submetidos a determinadas relações de classe. 42 • Crítica Marxista, n.39, p.35-55, 2014. MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 4422 1111//0099//22001144 1155::0033::0000 xa, necessariamente, em melhores condições para a organização política do que os escravos de Roma. A população de escravos, uma grande massa subalterna, localizava-se no mais baixo grau na hierarquia das dominações sociais. E era por se localizar aí que se deparava com todos os tipos de dificuldades materiais possíveis, inclusive aquela da organização. Ainda em O 18 de brumário encontramos uma passagem que joga luz na questão da distinção entre grupos subalternos e classes sociais: [...] Assim, a grande massa da nação francesa se compõe por simples adição de grandezas homônimas, como batatas dentro de um saco constituem um saco de batatas. Milhões de famílias existindo sob as mesmas condições econômicas que separam o seu modo de vida, os seus interesses e a sua cultura do modo de vida, dos interesses e da cultura das demais classes, contrapondo-se a elas como inimigas, formam uma classe. Mas na medida em que existe um vínculo apenas local entre os parceleiros, na medida em que a identidade de seus interesses não gera entre eles nenhum fator comum, nenhuma união nacional e nenhuma organização política, eles não constituem classe nenhuma [...]. (Marx, 2011, p.143) A ausência do segundo conjunto de condições atribuídas por Marx para o pro- cesso de constituição de uma classe social é o que caracteriza os grupos subalternos. Assim, estes grupos seriam, justamente, massas desagregadas impedidas de exercer a luta politicamente orientada. Tudo isso permite aventar a possibilidade de que a formação de uma classe social começaria, portanto, politicamente condicionada. Classes sociais e grupos subalternos Como já justificado, o motivo pelo qual passei – rapidamente – em revista a concepção de classes sociais dos autores escolhidos é que eles oferecem uma visão geral das classes que em muito facilita seu tratamento e relação com a ideia gramsciana de grupos subalternos. Esta visão geral é a de que as classes sociais não são grupos empiricamente delimitáveis em qualquer tempo e espaço, nem simples- mente conjuntos de indivíduos localizáveis numa posição específica no processo de produção material da sociedade.2 Na análise política sobre as classes e as relações sociais fundamentais na formação social capitalista, optei pelo caminho que foge da dicotomia estanque “Estado” versus “sociedade civil”, dicotomia que vê na segunda uma dimensão social orgânica, independente, autônoma e contraposta à “sociedade política”, eliminando a unicidade dialética dessas instâncias presente em Gramsci. Como tratar as classes sociais e os grupos subalternos levando em 2 Como ocorre, por exemplo, em Lukács (1974, p.59): “No espírito do marxismo, a divisão da sociedade em classes deve ser definida pelo seu lugar no processo de produção”. Ou ainda em Bukharin (s/d, p.323): “Já vimos que por classe social se entende um conjunto de pessoas desem- penhando um papel análogo na produção, tendo no processo da produção relações idênticas com outras pessoas, sendo essas relações expressas também nas coisas (meios de trabalho)”. Classes sociais e grupos sabalternos: distinção teórica e aplicação política • 43 MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 4433 1111//0099//22001144 1155::0033::0000 consideração tal unicidade? Em Gramsci, a separação entre “sociedade política” e “sociedade civil” é um procedimento metodológico que permite localizar os níveis de relação de forças na sociedade. Gramsci estuda os subalternos mediante três tipos de abordagem: o desenvolvi- mento de uma metodologia de historiografia subalterna; a produção em si de uma história das classes subalternas; a elaboração de uma estratégia política de trans- formação apoiada no desenvolvimento histórico e na existência dos subalternos. Por meio dessa tripla abordagem, Gramsci criaria um nexo de convergência entre vários conceitos seus (Green, 2007, p.202). Nesse sentido, apenas recentemente a categoria “subalterno” aparece estudada com mais rigor por pesquisadores da obra gramsciana, após também ter sido vítima constante de mal-entendidos e apropriações “indébitas”. Neste caso, pelo menos uma parte da explicação talvez esteja no fato de que, ao menos no universo anglófono, parcela significativa dos trabalhos esteja baseada na que foi, durante bom tempo, a única tradução em inglês dos Cadernos, na verdade uma seleção de textos organizada por Quentin Hoare e Geoffrey Nowell Smith, em 1971 (Editorial Publishers, Nova York). Green explica que a seleção contém apenas algumas notas de Gramsci sobre subalternos e, a partir do momento em que essas notas são incluídas em uma seção na qual figuram também algumas notas sobre Risorgimento, intitulada Notes on Italian History [Notas sobre história italiana], se poderia acreditar que o interesse de Gramsci pelos subalternos, como conceito, estivesse ligado ao estudo do Risorgimento, enquanto que, na verdade, o interesse do autor pelos subalternos adentra sua análise omnicompreensiva da história, da política e da cultura italiana, bem como da relação entre Estado e sociedade civil na Itália. A partir das notas incluídas na seleção não resulta nem evidente, nem concebível que Gramsci pudesse ter escrito muitas reflexões sobre os subalternos ou que tivesse dedicado um caderno inteiro a este conceito. (Green, 2007, p.199) Isso teria, de alguma forma, prejudicado a compreensão de que a “subalter- nidade” é uma condição heterogênea de grupos sociais que incluem classes e não classes (grupos política e socialmente marginais, esparsos e desagregados), sendo, como sugere Baratta (2011), um enriquecimento das categorias marxistas. Existem vários “graus” ou “níveis” de subalternidade, conforme nos indica Gramsci. Os mais “avançados” requerem unificação política enquanto classes sociais. Daí a importância da distinção entre “grupos sociais subalternos” como categoria mais abstrata e “classes sociais subalternas” como fenômeno histórico de unificação política de frações e segmentos determinados dos subalternos. Ainda segundo Baratta, “a categoria ‘subalternos’ está, portanto, atravessada por uma estratifi- cação que é preciso levar em conta para não cair em abstrações determinadas” (Baratta, 2011, p.157). 44 • Crítica Marxista, n.39, p.35-55, 2014. MMiioolloo__RReevv__CCrriittiiccaa__MMaarrxxiissttaa--3399__((GGRRAAFFIICCAA))..iinndddd 4444 1111//0099//22001144 1155::0033::0000
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