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C:\Job\ABL\REVISTA BRASILEIRA 55 PDF

305 Pages·2008·2.84 MB·Portuguese
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Carta de Machado de Assis ao Secretário do Conservatório Dramático Brasileiro. Prosa Machado e a educação Arnaldo Niskier Ocupante da Cadeira 18 na Academia Brasileira de J Letras. oaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839, ano em que também nasceram Casimiro deAbreueTobiasBarreto.Começouaversejaraos15anose,antes dos18anos,publicouoseuprimeiroconto(gêneroemquefoimes- tre indiscutível): “Três tesouros perdidos”. Machadoeramestiço,filhodeumpardoforro(FranciscoJoséde Assis)edemãenegra(MariaLeopoldinaMachadodeAssis).Eram agregados de uma quinta, o pai pintor de paredes. Ficou órfão de mãemuitocedo(usouoseunomeartístico)eencontrounamadras- ta,alavadeiraMariaInês,ograndearrimodasuainfância,especial- mente após a morte do pai, em 1851. Machado foi contista, poeta, cronista, crítico e autor teatral (o seu Lição de Botânica, nascido de um conto, é simplesmente genial). Eraumautodidata,quefreqüentouapenasaescola primária. Mor- reunoRio,nodia29desetembrode1908,com69anosdeidade. Junto comLúciodeMendonça,foiumdosfundadoresdaAcade- 13 Arnaldo Niskier miaBrasileiradeLetras,em1897,eapresidiudurantedezanos(atéasuamor- te). Aolongodavida,produziudiversasobras-primas,inclusivealgumaspé- rolasquedenotamaexistênciadeum sagazolharpedagógico,maisvalorizado pelofatodenãotersidooriundodeumeducadoroudeumprofissionalfor- madonoexterior,comoeratradicional,naquelestemposdedevoçãoculturalà Europa. De Machado, no Brasil, já se escreveu tudo. Ou quase tudo. Talvez esti- vesse faltando uma abordagem pedagógica, a fim de que dele se extraísse o sumo dos seus pensamentos originais – e que se mantiveram, a despeito da ação do tempo. Em seu estilo e em sua cuidadosa estrutura vocabular, Machado ensinava. Eraprofessorpacienteedireto.Nãoconseguíamosnós,suascriaturas,en- ganá-lo.Emumareleituradeseusromances,contos,crônicasecartas(queem tudousavaseutambémextraordináriotalentodeeducador),descobrimosque eleseesmeravaemnosmostrardequemaneiracadaumdenóspodechegara ser um ser humano melhor. Nãosetratavadeumensinamentodoaltoparabaixo,masdeumaconversa machadiana,calma,olhonoolho,comoquemdiz“vejasócomonóssomos” ou “imagine como Brás viu o mundo e seus habitantes depois que foi para o outrolado”,masjuntocomo“vejasó”eo“imagine”haviatambémoespanto do “quem diria!”. Era um “olhar pedagógico”, refinado, sereno, que nos via por dentro. MasMachadodeAssis,alcançandoaglóriados69anos,iluminoualitera- turabrasileiracomalgumasdassuasobrasmaisemblemáticas–eemtodaselas pudemossentir,desdecedo,umafagulhapedagógica.Sempreumalição,mes- mo que não fosse exatamente essa a sua intenção. Nãonospreocupamosexatamentecomliçõesmorais,massimcomoqueo espíritodeMachadoacolheuequeseriadeinteresseobjetivodaeducaçãodo seutempo.Apresençadoprofessor,aformadoscastigos,avalorizaçãodelín- guasestrangeiras,opoucoprestígiodadoàeducaçãofeminina...sãotemasre- correntes na obra do Bruxo do Cosme Velho. 14 Machado e a educação ComacolaboraçãodosintegrantesdoCentrodeEstudosMachadianos, deBeloHorizonte,dirigidopeloprofessorMauroRosa,levantamosumasé- riedepensamentosemqueMachadodeixatranspareceroseuinteressepela educação. O mundo melancólico de Machado, com as suas voltas à infância sofrida, mescla-se com a nostalgia presente no “Conto de escola”: “Paracúmulododesespero,viatravésdasvidraçasdaescola,noclaroazuldo céu,porcimadomorrodoLivramento,umpapagaiodepapel,altoelargo, presodeumacordaimensa,queboiavanoar,umacoisasoberba.Eeunaes- cola,sentado,pernasunidas,comolivrodeleituraeagramáticanosjoelhos.” A sua imaginação estava longe dali; os livros, esquecidos; desespero, uma prisão? Alembrançacertamenteédaescolapúblicaemquesedeparoucomoinício daescolarização,napaisagembucólicadomorroemquenasceuealcançouas primeiras luzes. Garoto ainda, sonhava, para além da paisagem do morro, voandojuntocomopapagaio.Olivroeagramáticanãoacompanhavamasua imaginação. Éoteatrodasuainfância,emquedesfilamosconflitosdaalma,naquele estilo sem estilo de Machado, como ele mesmo afirmava: “O melhor é afrouxar a rédea à pena, e ela que vá andando, até achar entrada... Palavra puxapalavra,umaidéiatrazoutra,eassimsefazumlivro,umgovernoou uma revolução.” Em OutrosContos [Garnier, 1889], encontramos mais uma preciosidade li- gada à idéia do magistério, no sentido que lhe quis dar Machado de Assis: “Meupropósitoerasermestredemeninos,ensinaralgumacousapoucado quesoubesse,daraprimeiraformaaoespíritodocidadão...Calou-seomes- trealgunsminutos,repetindoconsigoessaúltimafrase,quelhepareceuen- genhosaegalante...Omestre,enquantoviravaafrase,respirandocomestré- 15 Arnaldo Niskier pito, ia dando ao peito da camisa umas ondulações que, em falta de outra distração,recreavaminteriormenteosdiscípulos.Umdestes,omaistraves- so,chegouaodesvariodeimitararespiraçãogrossadomestre,comgrande sustodosoutros,poisumadasmáximasdaescolaeraque,nocasodesenão descobriroautordeumdelito,fossemtodoscastigados;comestesistema, diziaomestre,anima-sea delação,quedevesersempreumadasmaissóli- dasbasesdoEstadobemconstituído.Felizmente,elenadaviu,nemogesto dotemerário,umpirralhodedezanos,quenãoentendianadadoqueelees- tavadizendo,nemobeliscãodeoutropequeno,omaisvelhodaroda,um certo Romualdo, que contava 11 anos e três dias; o beliscão, note-se, era parachamá-loàcircunspecção...Daquiemdiante,omestrecontinuouaex- primir-se em tal estilo que os meninos deixaram de entendê-lo. Ocupado emescutar-se,nãodeupeloarestúpidodosdiscípulos,esóparouquandoo relógiobateumeio-dia.Eratempodemandaremboraesserestodaescola, quetinhadealmoçar,paravoltaràsduashoras.Osmeninossaíram pulan- doalegres,esquecidosatédafomequeosdevorava,pelaidéiadeficarlivres de um discurso que podia ir muito mais longe.” Éumtextoadmirável,dequesepodemtirardiversasinferências:afinairo- niacomrespeitoàidéiaabomináveldedelação;aexistênciasomentedemeni- nosnaclasse,revelandoadiscriminaçãoentãoexistente;arepetiçãoexaustiva dapalavra“mestre”,comqueMachadodesignavaosprofessores;oretratode corpo inteiro de uma classe típica, em que ocorrem fatos ainda hoje comuns noespíritodagarotada.Issotudoalémdomestre,que,falandoparasimesmo, revelava o inteiro teor do que então denominávamos magister dixit. Era o pró- prio, não estava nem aí para a platéia. Aocorrênciadessecontotrouxe-meaindaoutromomentodaobramacha- diana que desenha a escola, não “risonha e franca”, como a quis apresentar Olavo Bilac, outro membro da Academia Brasileira de Letras e grande poeta parnasiano. O texto diz assim: 16 Machado e a educação “Meu propósitoerasermestredemeninos,ensinaralgumacousapoucado quesoubesse,daraprimeiraformaaoespíritodocidadão.Calou-seomes- trealgunsminutos,repetindoconsigoessaúltimafrase,quelhepareceuen- genhosa e galante...” TrazerMachadodeAssisparaocampodapedagogia,quenãofoisuaprio- ridade,éumaformatambémdehomenageá-lo,mostrandoqueasuagenialida- de não conheceu limites – e por isso mesmo jamais poderia ser insensível ao que representa a nossa educação para o futuro das novas gerações. 17 Mascara mortuária de Machado de Assis. Prosa Tudo são mistérios Lêdo Ivo Ocupante da Cadeira 10 na Academia Brasileira de Letras. A solidãoestéticadeMachadodeAssissedesfazdesdequeo seqüestremos de sua moldura nativa e nos disponhamos a avaliá-lonolargoestuárioque,emnossotempo,acolheascontribui- çõesdestinadasamudarafaceeodestinodoromancerealistaena- turalista do século XIX. Estaperspectivaatualizaasocorrênciashistóricasepermiterein- ventar o passado na medida em que se busca interrogá-lo critica- mente.Colocadonele,oautordeDomCasmurroexibe,naquelamão invejávelquenarrouoamordesvairadodeQuincasBorbaedescre- veu o corpo de Sofia “emergindo as cadeiras amplas, como uma grandebraçadadefolhasquesaidedentrodovaso”,acartadebara- lho que lhe dá o direito de figurar não apenas na nossa literatura comoumprotagonistaseminal,masaindanamesafaustosadosque revolucionaram o romance ocidental. ApósaafirmaçãoépicaefloridadeJosédeAlencar,comassuas ficçõesestuantesdeluzesepaisagens,coreserumores,eaplicadasna 19 Lêdo Ivo possessãoterrestreenaabrangência,MachadodeAssisabriu,emnossalitera- tura,umcaminhodedissidênciaqueaindahojeavança.Aformaderomance queelecultivoucolidiacomumaconsolidadatradiçãodeinteirezaetotalida- de–eessacolisãoprossegue,tornando-ocontemporâneodainquietaçãoesté- tica dos nossos dias. Os seus modelos literários favoritos não foram Walter ScottouBalzac,DickensouZola.Administradorsábiodeseusdonsgenuínos, edotadodeumacerteiravisãocríticadesuaspossibilidadespessoaisaquenão faltavaumanotacompulsiva,eleseutilizoudeformasdenarraçãoecomposi- çãodoséculoXVIII.Recuouparaavançar.Nanoiteromanescajáfinda,bus- cou as luzes de sua alvorada. À efusão, à grandiosidade e ao transbordamento da ficção romântica de Balzac,VictorHugoeGeorgeSand,preferiuocontofilosóficodeVoltairee DideroteaambíguaedigressivaprosaficcionaldaXavierdeMaistre.Essain- clinaçãonaturaldeseuespíritodenarradorbreveeparco,queprefereainten- sidadeàfluênciagenerosaoudesabrida,completa-secomumaeleiçãofunda- mental: a de Sterne, lido em francês, nos dois volumes de Tristram Shandy e Le VoyageSentimental(edição Garnier), que ora tenho diante de mim. Desses cultores de romance anterior aos modelos majestosos consagrados pelo século XIX Machado de Assis aprendeu a lição suprema da alusão e da fragmentariedade,daironiasucessivaedadescontinuidadepsicológica,daful- guração anedótica e da tensão lingüística pronta a reclamar do leitor a pausa reverente.E,namedidaemqueosmodelosporeleescolhidosoferecemadis- cussão da própria genuinidade do gênero, Machado de Assis engasta em sua obra,noiluminadoespaçoprecursordosseuscontoseromances,aproposta da discussão crítica da forma adotada. Mas se impõe não esquecer que a sua posição heterodoxa e até soberbamente marginal de escritor que se abeberou emfontesprivilegiadasdeexperimentaçãoromanescaextrapolasuacondição de ficcionista. Ela o abarca inteiro, conferindo-lhe a coerência definitiva. Adepto de uma criação literária e poética que seja uma construção e não umaefusão–oumelhor,quesejaaconstruçãodeumaefusão,incumbindo-se o autor de compor e organizar a emoção a ser experimentada pelo leitor –, 20 Tudo são mistérios MachadodeAssisrespiraasuadiferençanumacomparsariaintelectualsensí- velaoprestígiodosmodelostriunfantesquenãoforamosseus.Emboraanos- talgiaromânticaopersigaavidainteira,comoocomprovaasuasinceraadmi- raçãoporJosédeAlencarepelospoetasromânticosportadoresdosdonsque lhefaltavam,eleseirádestacando,anoporanoeobraporobra,pelocontraste comoseuambiente.Acuriosidadeintelectualqueocaracterizouetantocon- tribuiuparaprojetarasuacriaçãopessoalcomoumaobradecultura,crescen- tementeregidapeloimperativoparnasianodofinolavoredaenergiaestilísti- ca, dá uma boa medida dessa dessemelhança. Machado de Assis transitou num universo livresco que inclui o teatro de Shakespeare,RacineeMolière,ostrágicosgregos,aBíblia,aDivinaComédia,Os Lusíadas,osvelhosclássicosportuguesesquelheincutiramogostodavernacu- lidade(aliástemperadaemsuaobraporumaadmirávelprofusãodebrasileiris- moseatédeafricanismos),oscontistasfilosóficosdoséculoXVIII,Heinee Musset,DostoiévskieRenaneatéCharlesNodiereMaupassant.Masporém nãonosesqueçamosjamaisdequeessemundodeleiturasestariaincompleto se nele não figurassem os grandes moralistas, como Montaigne, Pascal, La BruyèreeLaRochefoucould,osquaisfortaleceramasuavisãopessoaldeque ohomemnãoéflorquesecheire–eoromancistaquenãoserendaaessaevi- dência palmar jamais será literariamente bem-sucedido. Bebendoemtantasfontes,proclamando-ascomumentusiasmoqueàsve- zesfrisavapelaveneraçãoouescondendo-asnasdobrasdesuafinaprosacom omesmocuidadocomqueocultavaasuaorigemfamiliar,MachadodeAssis representa,entrenós,oexemplomaisfulgentedequeacriaçãopoéticaéuma solitáriaaventuralingüística:umproblemadelinguagem.SóaLiteraturatem opoderdemudaraLiteratura.Eamesadeumescritor,comosseuslivrose papéis,esuadesarrumaçãoafortunada,compara-seaumportoabertoanave- gaçõesmisteriosaseaparelhadoparapermitiraoviajantemanifestarleblancsou- cidenotretoilemallarmeano. A uma produção literária e poética assinalada pelo uso incompleto e até predatóriodosmeios,eàdisposiçãogenerosadotalentopessoal,Machadode 21

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