UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS À EDUCAÇÃO CAPOEIRA ANGOLA: CULTURA POPULAR E O JOGO DOS SABERES NA RODA Pedro Rodolpho Jungers Abib CAMPINAS – SÃO PAULO BRASIL 2004 UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS À EDUCAÇÃO CAPOEIRA ANGOLA: CULTURA POPULAR E O JOGO DOS SABERES NA RODA Banca Examinadora: Neusa Maria Mendes de Gusmão (orientadora) Carlos Rodrigues Brandão Jocimar Daolio Luiz Renato Vieira Olga Rodrigues de Moraes von Simson Suplentes: José Luiz Cirqueira Falcão Elisa Angotti Kosovitch Campinas – São Paulo 2004 2 RESUMO Esse trabalho propõe-se a investigar as formas com as quais a cultura popular articula todo um vasto campo de conhecimentos e saberes, bem com as formas de transmissão desses saberes através de algumas categorias, que elegemos como base para essa tarefa, quais sejam a memória, a oralidade, a ancestralidade, a ritualidade e a temporalidade, na perspectiva daquilo que denominamos aqui de uma lógica diferenciada que prevalece nesse universo, diferente daquela lógica que a racionalidade ocidental moderna determina. Trazemos também à reflexão, a partir de algumas teorias emergentes no campo das ciências sociais, a necessidade de constituição de uma nova racionalidade que seja capaz de interpretar e validar os saberes ocultos e silenciados, presentes no universo da cultura popular, como forma de ampliação das possibilidades de um diálogo frutífero entre os saberes provenientes das várias tradições, presentes tanto no âmbito da academia quanto no da cultura popular, sem hierarquias e discriminações. Para realizarmos tal tarefa, elegemos a capoeira angola, manifestação da cultura afro-brasileira das mais significativas, como campo privilegiado de estudo, na tentativa de buscar os seus sentidos e significados, esforçando-nos para constituir elementos de análise que dêem conta de interpretar sua simbologia, ritualidade e ancestralidade, como parte de elementos da cosmogonia africana, enquanto sistema religioso/simbólico que influencia consideravelmente essa manifestação. Buscamos, ainda, analisar as experiências educacionais contidas nos processos envolvendo a transmissão de saberes no universo da capoeira angola, e também como se articulam no âmbito da cultura popular, esses processos educacionais não-formais. Essas experiências envolvendo os “saberes populares” são, então, a partir de nossa análise, confrontadas com a perspectiva desenvolvida pelos processos formais de educação existentes em nossa sociedade, sobre os quais buscamos estabelecer uma crítica. Palavras-chave: cultura popular, capoeira angola, educação não-formal 3 SUMMARY The objective of this paper is to evaluate the forms in which popular culture articulates a vast field of knowledge and wisdom, as well as the ways this knowledge is transmitted through categories we selected as a base for this evaluation, specifically memory, orality, ancestrality, rituality and temporality. This was done in the perspective of what we have chosen to call “differentiated logic,” which prevails in this universe, a form of logic different from that espoused by modern Western rationality. Based on some emerging theories in the field of social sciences, we also reflect upon the need to formulate a new rationality capable of interpreting and validating the hidden and silenced knowledge present in the universe of popular culture. Our aim was to increase the possibilities for a useful dialogue between knowledge from a variety of traditions, present both in the academic arena and in popular culture, without hierarchy or discrimination. To carry out this task, we chose as our field of study Angola capoeira, an Afro- Brazilian martial art and highly significant cultural manifestation, in an attempt to find its essence and meaning. We did our utmost to identify analytical instruments that would allow us to interpret the symbology, rituality and ancestrality of Angola capoeira in terms of African cosmogony, since this religious/symbolic system has influenced it considerably. In addition, we sought to analyze the educational experiences embodied in the processes involving the transmission of knowledge in the universe of Angola capoeira and how these non-formal educational processes are articulated in the realm of popular culture. In our study, the experiences involving “popular knowledge” are contrasted with the perspective developed by the formal educational processes that exist in our society, which we are attempting to analyze from a critical point of view. Key words: Popular Culture, Angola Capoeira, Non-Formal Education 4 DEDICATÓRIA A João Pereira dos Santos, o mestre João Pequeno de Pastinha, e a todos os verdadeiros mestres da cultura popular do Brasil, guardiões da memória, dignidade e sabedoria ancestral de um povo. A meus pais Abib e Dorothy, pela presença sábia e iluminada em minha vida. À minha companheira Carol, pela paciência, carinho, inspiração e fundamental auxílio nessa caminhada. 5 AGRADECIMENTOS À Universidade Federal da Bahia e à CAPES, que permitiram as condições financeiras e materiais para a realização dessa pesquisa. À minha orientadora Neusinha, pela forma delicada, sensível e profundamente humana com que me auxiliou a encontrar caminhos. Aos professores integrantes da banca: Carlos Rodrigues Brandão, Olga Rodrigues de Moraes von Simson, Jocimar Daolio, Luiz Renato Vieira, José Luiz Cirqueira Falcão e Elisa Angotti Kosovitch, pela atenção e disponibilidade em contribuir para esse trabalho. Ao grande amigo e profundo conhecedor das “artes da capoeiragem”, Frede Abreu, pelos valiosos conselhos e sábias orientações durante toda a jornada. A todos os camaradas capoeiras, parceiros no “jogo da vida”, especialmente Vítor, Eletricista e Zoinho, pelas muitas experiências e ensinamentos compartilhados ao longo desses anos. A todos os amigos do samba e da boemia, pelo companheirismo e parceria que enriquecem nossa experiência com as coisas simples e belas da vida. 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO................................................................................................. 08 CAPÍTULO I – PROCESSOS GLOBALIZANTES E CULTURA POPULAR: O DEBATE NO CAMPO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS.................................... .. 16 1.1.O descentramento dos sujeitos e a questão da identidade.................... 16 1.2. Problematizando o conceito de cultura ................................................ 23 1.3. Cultura Popular: um conceito em evolução ........................................ 28 1.3.1. Cultura Popular e o romantismo da década de 60...................... 28 1.3.2. Cultura Popular e as transformações das décadas de 70 e 80.... 33 1.3.3. Cultura Popular: novas possibilidades de abordagens............... 37 1.3.4.1.Capoeira Angola: primeiras aproximações.............................. 42 1.3.4.2. Samba: algumas considerações sobre cultura popular e aprendizagem social..................................................................................... 45 1.3.4. Cultura Popular, indústria cultural e a retomada das tradições. 51 CAPÍTULO II - OS DIVERSOS SENTIDOS DA CULTURA POPULAR E AS POSSIBILIDADES DE SUA INTERPRETAÇÃO: O MUNDO DA CAPOEIRA ............................................................................................................................. 57 2.1. Breves considerações sobre a racionalidade moderna.......................... 58 2.2. Cultura Popular e sua lógica diferenciada ............................................ 60 2.2.1. Memória, oralidade e ritualidade .................................................... 60 2.2.2. A perspectiva da temporalidade não-linear ................................... 72 2.3. Por uma nova racionalidade em gestação.............................................. 78 CAPÍTULO III – ENTRE CAPOEIRAS: O JOGO NA “RODA DA VIDA”..89 3.1. Origens de uma tradição ........................................................................... 92 3.1.1. A capoeira e os escravos no Rio de Janeiro do séc. XIX .................. 97 3.1.2. A capoeira baiana: a África que vem se mostrar ............................. 103 3.2. Vadios, desordeiros e valentões: a luta social .......................................... 117 CAPÍTULO IV – CAPOEIRA ANGOLA: UM JEITO DE ENSINAR E APRENDER... A VIDA ........................................................................................ 126 4.1. Da roda de capoeira ao aprendizado da vida ........................................... 127 4.2. A mandinga e seu componente mítico-religioso ....................................... 138 4.3. A estética da capoeira angola e outras formas de aprendizagem............ 144 4.4. Cultura Popular, escola e educação .......................................................... 149 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 160 BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 163 7 INTRODUÇÃO Uma sensação nos aflora ao iniciarmos a escrita desse trabalho: a tentativa de tocar o intangível. Explico. Ao buscarmos penetrar o universo da cultura popular, aproximando- nos da ancestralidade que rege os modos de ser e estar no mundo, de pessoas simples, humildes, na maioria das vezes marginalizadas, analfabetas ou quase, em boa parte pessoas expropriadas de seus direitos fundamentais, mas que trazem consigo a força de seu passado, como um elixir que permite que a ritualidade, a simbologia e a alegria da vida cotidiana sejam sua característica mais marcante, sentimo-nos diante de um enorme desafio, que percebemos apontar desde já, para os possíveis limites de um trabalho acadêmico no qual a escrita e a racionalidade devem ocupar um lugar privilegiado. Nossa trajetória pessoal sempre foi marcada por profundas ligações com o universo da cultura popular, pois crescemos ouvindo os tambores das congadas e moçambiques e acompanhando os cortejos da Festa do Divino com suas folias e bandeiras. Temos buscado ao longo dos anos, nos aproximar de personagens sábios que criam e recriam essa cultura nas mais variadas regiões de nosso país, e com eles temos aprendido muitos dos mais significativos ensinamentos que guardamos conosco. Nos últimos anos, temos nos envolvido mais organicamente com a capoeira angola e com o samba, o que tem nos propiciado ampliar nosso entendimento sobre as formas como esses sujeitos lidam com seu cotidiano, seu passado e suas tradições, bem como suas estratégias de resistência ao manterem vivas duas dessas mais importantes manifestações da nossa cultura popular. O samba sempre fez parte de nossa experiência com a cultura popular, pois desde cedo, ouvíamos Noel, Cartola, Ataulpho, Adoniram, e mais tarde, já em companhia do violão, fomos nos aprofundando nesse fantástico mundo de ritmo e poesia, e nos nutrindo do contato com sambistas de boa cepa, que muito têm enriquecido nossa experiência pessoal, vinda de parcerias que frutificaram em algumas composições espalhadas pelo mundo, e de memoráveis rodas de samba regadas à boa cachaça, pelos botequins desse nosso país, um dos mais ricos espaços de aprendizagem social e talvez um dos locais mais representativos de nossa identidade brasileira, se é que podemos falar de uma. 8 Em nossa trajetória pessoal, há um momento de transição muito importante, que é quando deixamos Mogi das Cruzes, no Estado de São Paulo, lugar onde nascemos, em direção à Bahia de todos os santos e orixás, e lá nos fixamos. Lá tomamos contato com todo o universo da cultura afro-brasileira, e mais precisamente com a capoeira angola do mestre João Pequeno de Pastinha, um velho senhor analfabeto, hoje com 86 anos de idade, referenciado como o maior símbolo vivo da capoeira, e que muito tem nos ensinado nesses dez anos de convívio e aprendizado humano. Alguém disse, uma vez, que a capoeira “entra no sangue da gente”, e depois disso, “ela nunca mais sai de sua vida”. Somos levados a concordar ! Nesses anos de “capoeiragem”, temos sido aprendizes de ensinamentos tão significativos e profundos, quanto recheados de simplicidade e beleza, característica dos personagens populares que são os protagonistas maiores dessa manifestação cultural. Colocamo-nos, nós próprios, como frutos de um rico processo de educação levado a cabo pela cultura popular, dentro de sua forma muito peculiar de lidar com os saberes que remetem à tradição e à ancestralidade de um povo. Somos eternos aprendizes daquilo que a cultura popular tem a nos ensinar. E disso, muito nos orgulhamos. Em nossa trajetória acadêmica, temos buscado através das aulas que ministramos e das produções científicas realizadas num período mais recente, estabelecer um diálogo entre o saber popular e o saber proveniente da academia, a partir de algumas experiências e aproximações iniciais. Partindo dessa perspectiva é que buscamos situar para o leitor, a tarefa a que esse investigação se propõe, ou seja, a tentativa de ampliar e aprofundar as possibilidades desse diálogo entre saberes de diferentes tradições – a acadêmica e a popular –, como uma premente necessidade das abordagens que incluem os temas relacionados à educação em nosso país. O universo da cultura popular sempre nos exerceu um fascínio muito grande, através dos ritos, festas, crenças, enfim, toda a simbologia que compõe a cotidianidade do povo simples do nosso país. Esse longo processo de escuta sensível e aprendizado que temos levado a cabo nos últimos anos, vem nos propiciando realizar algumas reflexões sobre esse universo, tão rico em diversidade, tão ligado à tradição e ao passado, que vem resistindo às transformações impostas pela modernidade, sem no entanto, deixar de também 9 se transformar. Um universo muitas vezes hermético aos não “iniciados” porque guarda mistérios e segredos. Essas reflexões têm nos permitido ficar atentos e intuir a existência de uma outra lógica, diferente da lógica determinada pela racionalidade moderna, mas que parece prevalecer nesse universo da cultura popular, cada vez que um caboclo de lança do Maracatu de Baque Solto sacode suas pesadas vestimentas, no ritmo contagiante que vem dos rurais de Pernambuco; cada vez que o estampido agudo das matracas do Bumba-Meu-Boi, restitui o passado indígena e escravo em terras maranhenses; cada vez que os versos de inspiração medieval dos Repentistas Nordestinos revelam a poesia e a sagacidade do homem sertanejo; cada vez que os sulcos esculpidos pelo tempo nos rostos das centenárias Baianas vestidas de negro na Festa de N.S. da Boa Morte, trazem os mistérios ancestrais do Recôncavo Baiano; cada vez que os passos lépidos dos dançarinos do Jongo presentificam as origens africanas no samba do Rio de Janeiro; cada vez que o ponteado de uma Viola Caipira traz a dolência matreira do caboclo do interior paulista, ou cada vez que os acordes de um berimbau ecoam como navalha cortando o ar, durante o cantar da ladainha numa Roda de Capoeira. O próprio conceito de cultura popular sofreu um significativo desgaste nas últimas décadas, em função das modificações no contexto teórico, a partir de um predomínio de abordagens que desestabilizaram as noções de identidade e cultura. Na linha dessa crítica, pretendemos nessa investigação, analisar os contextos que influenciaram a concepção de cultura popular a partir da década de 60 no Brasil, e por conseguinte, tentar restabelecer a discussão sobre o tema no atual contexto da sociedade brasileira, procurando evitar anacronismos e buscando uma abordagem sobre cultura popular, que leve em conta os novos pressupostos teóricos presentes no debate no campo das ciências sociais. Entendemos que o conceito de cultura popular traz consigo toda uma carga de subjetividade, traduzida pelas festas, crenças, ritos e sonhos, em torno dos quais se organiza a vida do povo simples de nosso país. Por isso acreditamos que ele ainda deva ser significativo no contexto em que pretendemos utilizá-lo, o que, em nossa opinião, justifica o empenho de reformulá-lo e atualizá-lo, como uma das tarefas a ser empreendida por essa investigação. A lógica que parece prevalecer no universo da cultura popular se caracteriza por uma outra concepção de tempo, que difere da concepção linear inaugurada pela metafísica, pois concebe passado, presente e futuro dentro de uma unidade temporal, aquilo que o filósofo 10
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