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Capitalismo e tradicionalismo PDF

90 Pages·1975·10.079 MB·Portuguese
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Biblioteca Pioneira de Ciências Sociais CAPITALISMO E TRADICIONALISMO (Estudos sobre as contradições da sociedade agraria no Brasil) José de Souza Martins Os ritmos diferenciais de desenvolvimento da sociedade brasileira produzem os seus resultados mais problemáticos no mundo rural. Des- compassado em relação a rapidez e a profundidade das transforma coes que tam ocorrido nos setores mais vitalizados da nossa sociedade, o nosso mundo rural constituiu-se progressivamente no que a consciên- cia burguesa e dominante pode, no limite, classificar como um pro- blema social. A propria sociologia, com certa freqüência, tem incorpo- rado essa perspectiva de classe na análise da sociedade agrária brasi- leira, defrontando-se, por isso, com obstáculos de difícil superação para alcançar uma compreensão verdadeiramente cientifica dos nossos- pro- blemas. Quando, porém, trabalha-se com uma perspectiva critica, como o faz o Amok toma-se possivel ir alem dos limites ideológicos que cer- ceiam o entendimento do assunto para localizar os vinculos do mundo rural com a totalidade concreta que lhe da sentido. Por esse caminho, JOSÉ DE SOUZA MARTINS conduz a sua análise de forma a descobrir o problema historic° que se esconde por trás dos aspectos mais proble- máticos do mundo rural. o que possibilita superar a concepção evolucionista da penetra- ção do capitalismo no campo. Por esse meio o AUTOR desvenda de que mock o tradicionalismo agrário é o produto necessario da própria ex- pansão capitalista. Mas, ao engendrar os vinculas e concepções tradi- cionais e rotineiros o capitalismo engendra e reproduz as suas contradi- ções fazendo emergir formas peculiares de tensões sociais no mundo rural. O que importa descobrir é efetivamente as caracteristicas e di- niensões dos antagonismos da formação capitalista. 0 AUTOR conduz as suas investigações e reflexÕes para apreender esses antagonismos e seus resultados sociais em diferentes niveis e situações. Desse modo, tanto pesquisa e analisa a modernização no campo e as tensões sociais nas frentes de expansão e nas frentes pio- neiras, quanto a problemática escolarização da população rural e a , . . musica sertaneia como eloquente documento sobre as formas de alie- nação das classes subaltemas. Efetivamente, o que a Limn° Pioneira Editora oferece aos seus leitores com esta edição é um livro tenso e provocativo que se consti- tuirá, sem dúvida, num ponto de referência necessário ao estudo da sociedade brasileira. Livraria Pioneira Editora DOAÇÃO Prof. Pulguedo Bittencourt CAPITALISMO E TRADICIONALISMO a?) (00000 80611 Estudos Sobre as Contradições da DOACA0/9A-SOCIAIS APLICADAS Ft eagle-trip No. 597. 598 sictia: 19/09/2013 Sociedade Agrária no Brasil Autor:MARTINS, JOSE DE SOUSA Titulo:CAPITALISMO E TRADICIONALISMO: ESTUDOS SOBRE AS CONTRADIGO Prego:20,00 Doador:PROF. PULQUERIO BITTENCOURT FICHA CATALOGRAFICA (Preparada pelo Centro de Catalogação-na-fonte, Câmara Brasileira do Livro, SP) Martins, José de Sousa, 1938- M343c Capitalismo e tradicionalismo: estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. Sao Paulo. Pioneira, 1975. p. ilust. (Biblioteca Pioneira de ciências sociais. Sociologia). Bibliografia. 1. Brasil - Condições rurais 2. Brasil - Condições sociais 3. Mudança social 4. Sociologia rural I. Titulo. 17. e 18. Cl3D-301.350981 17. e 18. -301.35 17. -301.2 18. -301.24 75-1091 17. e 18. -301.2981 Indices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Mudança social : Sociologia 301.2981 (17. e 18.) 2. Brasil : Sociologia rural 301.350981 (17. e 18.) 3. Brasil : Vida rural 301.350981 (17. e 18.) 4. Mudança social : Sociologia 301.2 (17.) 301.24 (18.) 5. Sociologia rural 301.35 (17. e 18.) 6. Vida rural : Sociologia 301.35 (17. e 18.) BIBLIOTECA PIONEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS JOSÉ DE SOUZA MARTINS SOCIOLOGIA (Universidade de Seio Paulo) Conselho Diretor: Prof. Dr. RUY COELHO Prof. Dr. Lua PEREIRA Prof. Dr. JOSÉ DE SOUZA MARTINS CAPITALISMO E TRADICIIT\ ALISMO ESTUDOS SOBRE AS CONTRADIÇÕES DA SOCIEDADE AGRARIA NO BRASIL DOAÇÃO Prof. Pulquerio Bittencourt LIVRARIA PIONEIRA EDITORA SÃO PAULO ÍNDICE Capa de Introdução XI JAIRO PORARIO I — Modernização agrária e industrialização no Brasil 1 1. 0 problema agrário 1 2. 0 Vale do Paraiba do Sul: um Caso 7 3. Modernização e desenvolvimento 12 II — Modernização e problema agrário no Estado de Sio Paulo 15 Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida 1. A herança econômica, social e cultural 16 sejam quais forem os meios empregados (mimeografia, 2. A ideologia da modernização 23 xerox, datilografia, gravação, reprodução ern disco ou 3. 0 capitalismo no campo 33 em fita), sem a permissão por escrito da Editora. 4. Conclusões 39 Aos infratores se aplicam as sanções previstas nos artigos 122-130 da Lei o.° 5.988 de 14/12/1973. III — Frente pioneira: contribuição para uma caracterização socio- -613- cyome 350-1 lógica 43 1. Implicações do conceito de zona pioneira 43 2. Frente de expansão e frente pioneira 45 3. As tensões constitutivas da frente pioneira 47 IV — A questão agrária no Brasil 51 V — As relações de troca entre o campo e a cidade 57 1 9 7 5 1. Industrialização e descapitalização no campo 58 2. Os ruralistas e colonialismo interno 63 Todos os direitos reservados por 3. 0 associativismo agrário como movimento social 66 ENIO MATHEUS GUAZZELLI & CIA. LTDA. 4. Conclusão 72 01013 — Rua XV de Novembro, 228 — 4.° andar VI — Adoção de práticas agrícolas e tensões sociais 73 Telefone: 33-5096 — Sao Paulo 1. A expropriação sucessiva na economia do algodão 74 Impresso no Brasil 2. A ética do trabalho e as tensões sociais 77 Printed in Brazil 3. Difusão da vocação capitalista e difusão de inovações 80 VII — A valorização da escola e do trabalho no meio rural 83 1. A atividade escolar como "equivalente" de trabalho 85 2. Mudança social e escolarização em tees tipos da bio- grafia 90 3. A escola e a negação do mundo rural 98 VIII — Música sertaneja: a dissimulação na linguagem dos humi- lhados 103 1. Música caipira e música sertaneja 104 2. Moda e circunstância 113 3. 0 conservadorismo urbano e a identidade dos humilhados 128 can 9 contido .... 4 tado e ,T,t 1•,,,•,,•T'llf• tt I 147 Helô. INTRODUÇÃO Reúno neste livro oito estudos que efetuei nos últimos anos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. Orientei-me basicamente pela necessidade de, através da investigação empírica e da reflexão critica, encontrar os liames dos diversos tempos resultantes do desigual desenvolvimento na sociedade brasileira. Trabalhei com quatro noções fundamentais: expropriação sucessiva, economia do excedente, exclusão integrativa e tradicio- nalização. Através delas, como verá o leitor, situo e explico o que ate aqui tem sido tratado como dicotomia, inclusive pelos que a recusam teoricamente. A minha intenção foi a de localizar e situar as contradições pelas quais se determina a diversidade interna da nossa sociedade, seus dilemas e tensões. O tratamento critico que dei às minhas pesquisas permitiram-me ultrapassar o conceito limi- tado e limitante de "rural", de forma que os processos que investigo estão situados tanto no meio rural quanto no urbano. Com exceção das duas últimas partes do Capitulo VIII, todos os trabalhos já foram publicados em diversas revistas, geral- irente de circulação restrita aos meios acadêmicos e especializados: América Latina (Centro Latino-Americano de Pesquisas em,Ciên- cias Sociais), Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (Univer- sidade de Sao Paulo), Estudos Históricos (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Marilia, SP), Revista Mexicana de Sociolo- gia, Cadernos (Centro de Estudos Rurais e Urbanos — Sao Paulo, SP), Revista de Administração de Empresas (Fundação Getúlio Vargas), Revista de Ciências Sociais (Universidade Federal do Ceará), Ciência e Cultura (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e Debate & Critica. 0 Capitulo V foi publicado origi- nalmente com o titulo de "0 Sentido do Associativismo Empresa- rial no Brasil Agrário" no livro organizado por Tamás Szmrecsányi e Oriowaldo Queda, Vida Rural e Mudança Social. As duas primeiras partes do Capitulo VIII foram publicadas em Debate & Critica com o titulo de "Viola Quebrada", nome que Mário de Andrade e Ary Kerner deram a uma moda de sua autoria. Todos os trabalhos foram revistos sem, no entanto, terem sido alterados na sua essência. Apenas modifiquei-os onde podia deixá-los mais claros. No final de cada capitulo indico o ano em que o trabalho CAPÍTULO foi escrito, para que o leitor o situe melhor. Sou •agradecido, mais uma vez, h Fundação de Amparo Pesquisa do Estado de Sao Paulo — FAPESP, por auxílios que me concedeu para realização de investigações sociológicas no meio rural, com base nas quais escrevi a maior parte dos trabalhos aqui contidos. Os meus agradecimentos são extensivos aos diversos amigos que comentaram comigo diferentes capítulos deste livro em Modernização Agrária diferentes ocasiões. e Industrialização no Brasil Jog DE SOUZA MARTINS Julho de 1975 PROPONHO-ME a refletir, neste tra- balho, sobre as relações entre a industrialização e a constituição da economia nacional, de um lado, e as suas repercussões na sociedade e na economia agrária de outro. Tomei como personagem principal o "empresário" (as aspas vão por conta da variedade de tipos que, neste caso, ocorrem sob a mesma designação). 0 que se justifica, em primeiro lugar, pela circunstância de que só a compreensão do sentido da atividade no estabelecimento agrário, pode conduzir a uma posterior compreen- são de outros tipos humanos que ocorrem na sociedade agrária. Em segundo lugar, porque os estabelecimentos rurais absorvem principalmente os proprietários e suas famílias, como empreendi- mentos familiares. 0 censo de 1960 registra que, respectivamente em São Paulo e no Brasil, 64,7% e 67,8% dos estabelecimentos rurais absorviam exclusivamente a mão-de-obra familiar. E 26,6% e 23,6% utilizavam empregados. Entre ambos os tipos, localizavam- se os estabelecimentos empregadores de formas de salariado não plenamente ou claramente formuladas em termos de compra e venda de força de trabalho.' Espero demonstrar tanto que o agrarismo rústico e o caipira como tipo humano correspondente estão contidos nos alicerces do processo de constituição da economia nacional e, por conseqüên- cia, de industrialização, como ele se dá no Brasil, quanto que a modernização agrária constitui uma impossibilidade própria dessa situação. 1. 0 PROBLEMA AGRÁRIO 0 crescimento industrial do Brasil e o concomitante cresci- mento da população urbana, nas últimas décadas, redefiniram as 1 Anuário Estatístico do Brasil — 1967. Rio de Janeiro: Fundação IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 1967, pp. 95-6. 2 JOSE DE SOUZA MARTINS CAPITALISMD TRADICIONALISMD 3 relações de predomínio entre o mundo rural e o mundo urbano. Não descortinou ele, nos eventos, os resultados que persistiriam De um lado, expandiu-se o mercado local de produtos agrários. De historicamente pela reformulação das oportunidades econômicas. outro, ampliaram-se as oportunidades de investimento, especifica- Para ele, a história se fazia em termos dos personagens e não do mente no setor urbano. 0 setor rural deixou de ser o que apresen- produto histórico das ações individuais. A concepção dos fenô- tava maiores (e, talvez, melhores) oportunidades de investimento. menos em termos das pessoas indicia a comunidade que se esconde Durante as últimas décadas do século passado e as primeiras deste por detrás do seu pensamento de homem da situação ameaçada, século, observou-se uma nítida urbanização dos investimentos, que já que na comunidade as relações sociais não se produzem através se refletiu na expansão da atividade comercial, bancária e industrial. de categorias abstratas, mas diretamente entre sujeitos "totais".4 A economia urbana passou a oferecer iguais ou melhores remu- Mais complexo e rico, o trabalho de Alberto Tôrres busca nerações ao capital, do que a rural, mesmo a do setor de exporta- explicar o que ele entendia como incoerência entre a base carac- ção (ainda que nele apoiada); este, a partir de 1896, envolvido terística da economia e da sociedade brasileiras e o "anômalo" por crises sucessivas, particularmente no tocante ao café. desenvolvimento urbano do começo do século. "... Porque o Ocorreu não apenas um rápido crescimento de cidades e popu- hábito da vida em desordem nos está varrendo dos espíritos os lações urbanas — observou-se, também, a rápida elaboração de critérios que formavam a base da nossa consciência social e, com uma ideologia urbana, em função dos problemas que o processo eles, a própria sinceridade — virtude profunda e ingênita em suscitava, sublinhadora dos valores concebidos, então, como típicos nossos maiores".5 "Os que conhecem, por observação direta, os das cidades e a elas inerentes. 0 aumento da densidade demográ- nossos antigos costumes, sabem que, na raga, entre os que lá se fica nos meios urbanos ou em urbanização, estimulado pela imi- conservavam, e, nas cidades, entre os que mantinham os hábitos gração nacional e estrangeira de pessoas com ou sem tradição ali adquiridos, a vida doméstica era ocupada, e os homens esforça- urbana, promoveu ou incentivou a quebra da solidariedade mecâ- vam-se por produzir." "Onde o nosso caso mostra as causas espe- nica, a dissolução ou enfraquecimento dos caracteres comunitários cificas da futura dissolução, é nos contatos da vida urbana com a do sistema social. Esse processo, associado A. redefinição das do campo, na interpenetração da civilização, que íamos fazendo, funções manifestas das cidades, apoiou-se nos próprios fundamen- com a economia que possuíamos: na fusão dos costumes das tos novos, econômicos, da existência citadina. Referiu-se tanto ao cidades, com os costumes da roga." "As praias, os portos, as fron- funcionamento de um mercado livre de trabalho, como à "liberdade teiras, as cidades 6. beira-mar e cosmopolitas, os povoados de enriquecimento", de alcançar o "êxito", que marcou a ideologia margem das grandes vias de comunicação (...) são em toda a das populações adventícias especialmente em Sao Paulo.2 parte, zonas mistas de difusão e desagregação social, áreas de Essa ameaça de dissolução de concepções tradicionalmente invasão de costumes fáceis e perversão dos caracteres".6 Implicita- aceitas, denotando uma situação anômica sobre a qual o sistema mente, o autor ressalta a industrialização e a urbanização como se reintegraria nas décadas seguintes, produziu, por seu turno, uma eventos associados na dissolução dos valores nucleares da socie- contra-ideologia. A contra-ideologia pode ser apreendida em obras dade brasileira de então. De um lado, a civilização "que íamos como a do Visconde de Taunay e a de Alberto Tôrres. Taunay3 fazendo, com a economia que possuíamos" era corroída pelas lamenta, no seu conhecido romance histórico, a afoiteza do período "zonas mistas de difusão e desagregação social" e, de outro, "o do "Ensilhamento", fenômeno por ele descrito a partir do prisma hábito da vida em desordem nos está varrendo dos espíritos os das ruínas pessoais, das falências, das falaciosas operações finan- critérios que formavam a base da nossa consciência social", etc. ceiras, do oportunismo que se produziu com a ativação da econo- Nem escapou à lucidez do autor o protecionismo alfandegário, mia brasileira no período imediato à proclamação da República. como um dos tragos do fenômeno, sobre o qual apoiava-se a indús- tria nascente, então, por isso mesmo, denominada de "artificial". 2 Sobre a mudança social na cidade de Sao Paulo, nessa fase, cf. Florestan Fernandes. "A integração do Negro à Sociedade de Classes", Sao Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 4 Uma discussão deste processo, relativamente ao século XIX e ao Vale do 1964, cap. 1. Para a persistência atual dos valores sociais indicados, cf. Paraiba do Sul, encontra-se em Maria Sylvia Franco Moreira. Os Ho- Marialice M. Foracchi. "A Valorização do Trabalho na Ascensão Social mens Livres na Velha Civilização do Café. Sao Paulo: F.F.C.L.-USP, dos Imigrantes". Separata da Revista do Museu Paulista, São Paulo. edição mimeografada, 1964. Nova Série, volume XIV, 1963. 5 Alberto Vines. 0 Problema Nacional Brasileiro. Rio de Janeiro: Impren- 3 Visconde de Taunay. O Encilhamento, Edições Melhoramentos, edição s/1, sa Nacional, 1914, p. XV. std. 6 Op. cit., p. 12. 4 JOSE DE SOUZA MARTINS CAPITALISMO E TRADICIONALISMO 5 Exprimem-se ai os valores em crise, as normas sociais inefi- Embora, extensa, essa exposição é indispensável para com- cientes, a perda do controle social em face da estrutura social preender-se o sentido da inserção do meio rural na economia e na anterior. Os diagnósticos buscam na industrialização e na urbani- sociedade brasileiras de hoje. Tanto os técnicos e os órgãos de zação a causa da mudança observada e, tácita ou explicitamente, opinião, quanto os grupos politicos, em particular as esquerdas, apontam a reafirmação da estrutura fundamentada na vida rural partem de suposto fundamentalmente igual para avaliar as condi- como solução para os problemas da mudança social. ções sociais, econômicas e culturais do homem rural. Supõem a A contrapartida, a redefinição cultural ligada à constituição sociedade agrária como mundo à parte, esdrúxulo, no "todo" que é definido pela perspectiva urbana e cujos significados fundamentais de uma sociedade centrada nos valores urbanos, levou rapidamente distinção valorativa, também, entre o rural e o urbano. A afirma- se opõem aos desta última (dai algumas especulações sobre "econo- gdo da existência urbana, ainda que anômica, exprimiu-se cultural- mia natural" ou sobre um "feudalismo brasileiro"). Pressupõem, mente na construção de estereótipos, alguns negativos, do homem pois, uma unilateral dependência do rural em relação ao urbano, rura1.7 A figura do caipira tem reafirmadas e atualizadas, nessa que se "moderniza" e neste se integra apenas na medida em que fase, as suas conotações fundamentais: ingênuo, preguiçoso, desnu- consome os produtos e os estilos de vida da sociedade urbana. A trido, doente, maltrapilho, rústico, desambicioso, etc. relação e a dependência reciprocas estão ai negadas. Mesmo quando se pensa numa dependência contrária, do urbano em relação ao O estereótipo, por sua vez, conduziu a duas atitudes básicas: rural, tem-se em mente o estrangulamento da oferta de produtos o seu uso para reforçar as características urbanas da existência dos agrícolas ao mercado urbano, ante uma demanda desproporcional- que o utilizavam (e que, ao que parece, não se distanciavam dema- mente maior, atuando de modo inflacionário. O diagnóstico no siado dele, transformando-o numa afirmação verbal e ideal) e sua manipulação para advogar a "intervenção" das instituições urbanas caso, mecanicamente estabelecido, é o de que se está diante de um regime de baixa produtividade que se modificaria pela injeção na vida rural, dinamizá-la e propiciar as condições para trans- de 'crédito oficial e pela "modernização" dos empreendimentos formar o caipira do estereotipo no cidadão das concepções urbanas. agrários. Mais uma vez, pois, define-se o problema agrário a Um documento exemplar a esse respeito é a historia do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato.8 O caipira preguiçoso (porque doente), partir de uma segmentação, a •ser superada, entre o rural e o urbano. Em conseqüência, só com a submissão da sociedade agrá- metamorfoseia-se no rico fazendeiro cercado de múltiplas como- ria às mercadorias, aos estilos e As concepções urbanos é que os didades urbanas (como a televisão de circuito fechado, meio de problemas urbanos decorrentes da sua ligação a um sistema (rural) comunicação que •não existia no Brasil quando a história foi anômalo seriam resolvidos. escrita), graças à intervenção de dois agentes urbanos: o médico e os remédios de laboratório. Essa história, que expressa limpi- Na verdade, só existe o problema agrário na medida em que o damente os componentes ideológicos fundamentais da consciência mundo urbano está na dependência do mundo rural, seja quanto urbana recente sobre o mundo rural, denuncia os vínculos reais As necessidades crescentes de mercado, seja quanta As necessidades entre o rural e o urbano. Note-se a "incapacidade" da sociedade de pregos baixos no item de alimentação, para ampliar a faixa das agrária, através da sua população, desenvolver-se social, cultural suas disponibilidades financeiras, que condiciona a sua participa- e economicamente, presa de inércia "doentia". E a "terapêutica" ção no consuma dos itens •de origem industrial. Assim, o mundo fundada na ideologia indicada, de ação exterior ao meio rural, de rural só se configura historicamente como integrante do mercado preeminência do meio e das concepções urbanas na definição do nacional e apenas na medida ern que é capaz de suportar a consti- modo como a sociedade agrária deve integrar a totalidade do tuição real e ideal do mundo urbano ou de não perturbá-la. sistema social: como compradora e consumidora de mercadorias, Como se ye, procuro demonstrar que, como ficard claro mais como mercado. adiante, os estereótipos e diagnósticos assinalados são unilaterais e parciais, carentes, pois, de objetividade. São, por isso mesmo, ideológicos, com um sentido explicito que pode ser notado tanto na 7 Antônio Cândido. "L'Êtat Actuei et les Problemes les plus Importants divisão da economia, da sociedade, etc., em rural e urbana, quanto des ktudes sur les Sociét6s Rurales du Bresil". Symposium Etno-Socio- na dependência que se estabelece da primeira em relação à segunda. lógico sobre Comunidades Humanas no Brasil, organizado por Florestan Fernandes. Separata dos Anais do XXXI Congr. Internacional de Ameri- Na prática, esses diagnósticos e concepções exprimem-se em canistas, Sao Paulo, 1955, pp. 321-22. programas de extensão rural em que "ignorância" e "baixa produ- 8 Monteiro Lobato. Jeca-Tatuzinho. Instituto Medicamenta Fontoura, 33.a tividade" são variáveis freqüentemente apresentadas como depen- edição, s/l, 1966.

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