ebook img

BOITO JR., Armando. Indicações para estudo do marxismo de Althusser. Novos Temas Arquivo PDF

29 Pages·2014·0.24 MB·Portuguese
by  
Save to my drive
Quick download
Download
Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.

Preview BOITO JR., Armando. Indicações para estudo do marxismo de Althusser. Novos Temas Arquivo

Indicações para o estudo do marxismo de Althusser1 Armando Boito Jr.2 Resumo O texto apresenta conceitos e teses fundamentais do marxismo estrutural de Louis Althusser, indicando polêmicas suscitadas pela obra do autor. Apresenta três fases da produção althusseriana, expõe sua concepção do marxismo como ciência social, a renovação do conceito de modo de produção por Althusser e seus discípulos, o papel determinante das estruturas sociais, a questão do sujeito na história e a tese da ruptura epistemológica que separa os escritos juvenis da obra de maturidade de Marx. Palavras chave Althusser, marxismo estrutural, modo de produção, jovem Marx Abstract The text presents concepts and principles of structural Marxism of Louis Althusser, indicating controversies raised by the work of this author. It indicates three stages of Althusser’s work, exposes his conception of Marxism as a social science, the renewal of the concept of mode of production by Althusser and his followers, the role of social structures, the question of the subject in the history and the thesis of epistemological break that separates the juveniles writings of the mature work of Marx. Keywords Althusser, structural Marxism, mode of production, young Marx O tema deste texto é o marxismo estrutural inaugurado por Louis Althusser e o seu objetivo é o de fornecer ao leitor algumas breves indicações para o conhecimento e para o estudo da obra desse filósofo marxista e de alguns dos seus seguidores. Trataremos das teses e conceitos althusserianos referentes às ciências sociais, isto é, ao materialismo histórico, e não à filosofia. Da multiplicidade de teses e conceitos que 1 Texto publicado na revista Novos Temas, no 9, segundo semestre de 2013. São Paulo, Edição do Instituto Caio Prado Jr., pp. 153-182. 2 Professor de Ciência Política da Unicamp e editor da revista Crítica Marxista. É autor do livro Estado, política e classes sociais. São Paulo: Editora Unesp, 2007. Email: [email protected] Althusser desenvolveu ao discutir o materialismo histórico, reteremos apenas aqueles mais gerais que, a nosso ver, particularizam a escola althusseriana no campo amplo e diversificado que é o campo do marxismo. 1. Três fases da obra de Althusser A obra de Althusser é ampla e aborda problemas e temas muito variados. Ela passa, ademais, por fases que apresentam características teóricas distintas. De uma maneira simplificada, e deixando de lado os seus escritos de juventude anteriores à sua adesão ao marxismo, podemos dizer que sua obra possui, no que diz respeito às ciências sociais, pelo menos três fases. Em primeiro lugar, aquela representada pelos trabalhos dos anos 1960, na qual Althusser desenvolve a noção marxista de estrutura e que foi, de longe, a obra de maior repercussão no mundo intelectual. São dessa fase a coletânea de ensaios intitulada Pour Marx (Althusser, [1965], 1996), traduzida no Brasil com o título A favor de Marx (1979), e a obra Lire le Capital (Althuser, [1965],1996), traduzida entre nós com o título Ler o Capital e publicada em dois volumes (Althusser, 1979 e 1980) e que conta com a participação do próprio Althusser e de alguns dos jovens filósofos que trabalhavam com ele na época – Etienne Balibar, Roger Establet, Pierre Macherey e Jacques Rancière. Em segundo lugar, temos a fase que, grosso modo, compreende a década de 1970, em que Althusser, pressionado pelas críticas que lhe foram dirigidas, nas quais era acusado de teoricista e estruturalista, tratou de destacar o lugar da luta de classes na sua teoria, de repensar algumas de suas teses filosóficas e a relação entre filosofia e ciência. São dessa fase ensaios como Elementos de autocrítica, Sustentação de tese em Amiens, Marxismo e luta de classes, Resposta a John Lews e outros reunidos no livro Positions (1976). No Brasil, esses ensaios foram publicados em duas coletâneas editadas pela Graal intituladas Posições – 1 e Posições – 2 (Althusser, 1978 e 1980). São dessa fase também alguns ensaios que fazem um balanço crítico dos limites do marxismo, dos problemas políticos do socialismo da antiga URSS e do movimento comunista internacional: o pequeno livro, publicado inicialmente em partes pelo jornal Le Monde, intitulado Ce qui ne peut plus durer dans le Parti Communiste Français (Althusser, 1978), salvo engano sem tradução no Brasil, e Il marxismo come teoria finita publicado originalmente na Itália em 1978 e cuja tradução brasileira apareceu no número 2 da revista Outubro (Althusser, 1998). Por último, temos a fase marcada por uma reviravolta na produção de Althusser, na qual ele irá desenvolver a ideia de um “materialismo do encontro” ou “materialismo aleatório”. Aqui, predominam os seus escritos da década de 1980, que aparecem no primeiro volume da publicação póstuma Écrits philosophiques et politiques, volumes I e II (1994), não publicados no Brasil. Desde o seu início, a corrente althusseriana tinha como preocupação central desenvolver o materialismo histórico, isto é, o conjunto de teses e conceitos elaborados pela tradição marxista para explicar a tanto reprodução e quanto a transformação das sociedades humanas. Acontece que nesta terceira fase da produção de Althusser, a ambição do materialismo histórico de apresentar o processo histórico como um processo ordenado e regido por leis e relações de causalidade, ainda que leis e relações de causalidade concebidas de maneira específica, essa ambição foi substituída pela ideia de que na história das sociedades humanas reina a contingência. O texto mais importante dessa fase é o ensaio Le courant souterrain du matérialisme de la rencontre, de 1982, publicado no Brasil com o título A corrente subterrânea do materialismo do encontro no número 20 da revista Crítica Marxista (Althusser, 2005). Na nossa avaliação, essa nova fase instaura uma ruptura epistemológica na obra de Althusser – conceito esse de ruptura epistemológica que, como se sabe, Althusser elaborou para caracterizar a ruptura da obra de maturidade de Marx com os seus escritos juvenis. Falamos em ruptura epistemológica para indicar uma descontinuidade profunda, já que Althusser retira-se do campo do materialismo histórico ao abandonar a pergunta sobre as leis e relações de causalidade da história, concebida como um processo, e adota a tese que apresenta a história como o reino da contingência. Nossas indicações sobre a obra de Louis Althusser irão considerar apenas a primeira fase apresentada acima, aquela que tem como obras magnas Pour Marx e Lire le Capital, e que foi, conforme já indicamos, a fase da produção de Althusser que logrou obter maior repercussão no mundo intelectual. 2. O marxismo como ciência social Althusser concebe o marxismo como uma ciência da sociedade. Sua produção concentra-se na tarefa de desenvolver essa ciência que, seguindo a tradição, ele denomina materialismo histórico. Essa tarefa tinha sido abandonada por outras tradições marxistas que concebiam o marxismo, não como uma ciência da sociedade, mas simplesmente como uma “filosofia crítica” ou como um “guia para a ação”. Na concepção de Althusser, diferentemente, Marx descobriu um continente científico novo, o continente da história, de modo semelhante ao de cientistas anteriores que tinham descoberto os continentes da física, da matemática ou o da mente humana. Do novo continente, Marx teria desbravado apenas algumas áreas, cabendo aos marxistas prosseguir sua exploração. Ora, se o materialismo histórico é uma ciência da sociedade ele deve, como toda ciência, ser desenvolvido, submetido à prova e renovado. O althusserianismo é avesso ao dogmatismo e é aberto, sem cair no ceticismo, à dúvida, ao questionamento e às contribuições vindas de pesquisas realizadas fora do campo do marxismo. Nicos Poulantzas, o cientista político marxista que, partindo das concepções da obra de Althusser, escreveu o clássico Poder político e classes sociais (Poulantzas, [1968] 1977), o mais ambicioso tratado marxista de ciência política escrito nas últimas décadas, produziu essa sua obra retificando e incorporando teses e conceitos provenientes da análise política de clássicos como Max Weber, que Poulantzas utiliza para analisar a burocracia de Estado, e de autores modernos não marxistas, como o institucionalista Maurice Duverger, de cujos trabalhos Poulantzas se apropria, após retificação, para analisar os regimes e os partidos políticos. Embora esse procedimento mais aberto não fosse original na história do marxismo, a escola althusseriana recuperava, com ele, uma maneira de praticar o marxismo que tinha sido abandonada pelo dogmatismo que impregnou grande parte do marxismo do século XX. Cabe lembrar que Engels se apropriou amplamente da obra do antropólogo Lewis Henry Morgan para analisar a história da família, assim como Lênin e Hilferding utilizaram a obra de John A. Robson para analisar o imperialismo e o capital financeiro. O que a escola althusseriana talvez tenha apresentado de original nessa matéria foi a sua reflexão teórica sobre como os marxistas devem realizar a apropriação de descobertas e inovações que são obtidas fora do campo do marxismo. A ideia central aqui é a de retificação. O novo, surgido fora do campo do marxismo, pode ser incorporado a esse campo desde que retificado para não originar inconsistência, incongruência ou contradições teóricas. E, em se tratando do trabalho de produção de ciência, o cientista marxista não pode descartar a hipótese de uma nova descoberta impor retificações na teoria marxista e, no limite, o seu abandono. É exatamente isso que significa afirmar que a concepção do marxismo como ciência social é incompatível com o dogmatismo. Ao conceber o marxismo como ciência, Althusser retoma a postura epistemológica que informa a principal obra de maturidade de Marx, O Capital, e reata com a tradição amplamente predominante no marxismo da qual fazem parte autores e dirigentes socialistas de orientações políticas tão diversas como Engels, Kautsky, George Plekhanov, Lênin, Eduard Bernstein, Trotsky, Max Adler, Nicolai Bukarin, os austro-marxistas e outros que, cada qual a seu modo, pensava o marxismo como uma ciência social – economia, sociologia, ciência política, história e estudos culturais. (Bottomore, 1976). Tal concepção afasta-o, contudo, da Escola de Frankfurt, que concebe o marxismo como uma mera crítica (politicamente resignada) da sociedade capitalista e também do Lukács de História e consciência de classe, que funde num só corpo o marxismo e aquilo que Lukács denominou na obra citada a consciência verdadeira da classe operária. A concepção do marxismo como ciência da sociedade e da história, isto é, como materialismo histórico, afasta-o também de um autor que o próprio Althusser admirava muito e no qual ele se inspirou para escrever seu conhecido ensaio Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado (Althusser, 1974). De fato, tal concepção afasta Althusser de Antonio Gramsci. O contraste com o marxista italiano, mesmo que rápido, pode ser instrutivo para o leitor. Para Gramsci, o marxismo seria, no fundamental e simultaneamente, um “guia para a ação”, isto é, a “filosofia da práxis” (o marxismo como política), uma “nova concepção de mundo” (o marxismo como filosofia) e, na análise social e histórica, um simples “método de análise”, e não também uma teoria. Para Gramsci, não caberia, no campo do marxismo, qualquer tentativa de elaborar uma teoria científica da sociedade. A esse respeito, é conhecido o longo texto crítico que Gramsci escreveu contra a tentativa de N. Bukarin de sistematizar a teoria marxista das sociedades. Nesse texto de crítica e polêmica, Gramsci sustenta que o marxismo seria um historicismo absoluto, historicismo significando nesse caso que cada conceito e tese estão irremediavelmente colados ao período histórico no qual foram produzidos e que, por isso, o marxismo não comportaria formulações gerais que pudessem se aplicar ao estudo de diferentes períodos históricos. (Gramsci, 1999.) Tomemos, para ilustração, três breves passagens de Gramsci nesse ensaio. “A experiência sobre a qual se baseia a filosofia da práxis não pode ser esquematizada; ela é a própria história em sua infinita variedade e multiplicidade, cujo estudo pode dar lugar ao nascimento da “filologia” como método de erudição na verificação dos fatos particulares e ao nascimento da filosofia entendida como metodologia geral da história.” (Op. cit. p. 146) “(...) metafísica (...) (é) qualquer formulação sistemática que se afirme como verdade extra-histórica, como um universal abstrato fora do tempo e do espaço.” (Op. cit., p. 121) “A filosofia da práxis é o historicismo absoluto, a mundanização e terrenalidade absoluta do pensamento, um humanismo absoluto da história. Nesta linha é que deve ser buscado o filão da nova concepção de mundo.“ (Op. cit. p. 155). O contraste é marcante. Para Althusser, o marxismo não é um mero guia para a ação e tampouco uma “concepção de mundo”. O marxismo é uma teoria científica cujas pedras fundamentais foram assentadas por Marx. É uma teoria da sociedade e da história e, como tal, produz conceitos gerais e conceitos específicos, situados em diferentes níveis de abstração, que compõem uma teoria que busca ser sistemática, distingue-se da análise empírica concreta e é instrumento, sujeito a retificações, para a realização dessa análise. Dessa perspectiva, a história pode sim ser analisada a partir de conceitos abstratos e muito gerais que transcendem diferentes e prolongados períodos históricos situados em áreas geográficas as mais variadas. Podemos, como faz Althusser no seu ensaio intitulado Sobre o trabalho teórico: dificuldades e recursos – tradução portuguesa da Editorial Presença – hierarquizar os conceitos segundo seu nível de abstração. Num nível mais abstrato, teríamos os conceitos supramodais (Estado em geral, economia em geral, modo de produção, ideologia etc.), que se referem a qualquer modo de produção, a qualquer Estado, economia ou ideologia existentes em qualquer época ou lugar, seja no modo de produção escravista da Antiguidade Greco-Romana, seja no modo de produção capitalista do século XXI ou outro. Marx e Engels concebiam a ideia de economia em geral para caracterizar a atividade produtiva em qualquer período histórico, atividade que reuniria, sempre e invariavelmente, o trabalhador, os instrumentos e o objeto de trabalho. Podemos falar também do Estado em geral, independentemente de ser um Estado escravista, feudal ou capitalista. Engels, no A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1974), caracteriza o Estado em geral como a instituição dotada de um aparelho repressivo que é o centro organizador da dominação de classe. Esses “universais abstratos fora do tempo e do espaço”, no sentido que cobrem milhares de anos de história humana nos diferentes continentes, são, embora muito pobres em determinações, imprescindíveis para a análise histórica, ao contrário do que sustenta Gramsci na sua crítica a Bukarin. De resto, é exatamente desses universais que necessitamos partir para poder caracterizar as particularidades, essas sim ricas em determinações, de economias e de Estados específicos. O historicismo proposto na passagem citada de Gramsci, segundo o qual os conceitos gerais, necessariamente abstratos e simples, seriam uma esquematização arbitrária, tal historicismo apenas na sua aparência valoriza a especificidade histórica pois, sem conceitos gerais, a história só poderá ser percebida como um fluxo contínuo e indiferenciado de acontecimentos indeterminados. Num segundo nível de abstração, teríamos, ainda segundo Althusser no citado ensaio em que trata do trabalho teórico, os conceitos modais (modo de produção capitalista, modo de produção feudal, Estado capitalista, Estado escravista, economia capitalista, economia socialista, ideologia burguesa etc.). Esses conceitos, situados num nível de abstração inferior, têm um âmbito de aplicação mais restrito, mas, ainda assim, são abstratos. É claro que encontraremos grandes diferenças, mesmo nos restringindo ao período atual, entre o capitalismo estadunidense e o capitalismo brasileiro ou grego, e, no entanto, utilizamos o mesmo conceito de capitalismo para os três países porque todos eles são dotados de um tipo de economia e de um tipo de Estado característicos. No modo de produção capitalista, a economia reúne proprietários dos meios de produção que exploram trabalho livre assalariado num processo de acumulação cujo fim encontra-se em si mesmo e o Estado, instituição que organiza a dominação da classe burguesa, adquire a forma de uma instituição aparentemente universalista que se apresenta como representante de toda a sociedade. O Estado capitalista, como todo Estado, seja ele feudal ou escravista, é o centro organizador da dominação de classe, mas, diferentemente de desses outros tipos de Estado, organiza a dominação de classe de uma maneira particular, qual seja, de maneira a ocultar o seu caráter de classe, enquanto o Estado feudal e o Estado escravista traziam inscritos nas suas normas jurídicas e nas suas instituições o seu particularismo de classe. Partindo portanto do Estado em geral, falamos agora, de tipos de Estado correspondentes a modos de produção específicos – escravista, feudal, capitalista. Nesse nível, poderíamos falar também do Estado socialista, ainda que esse Estado seja, na teoria marxista, um Estado de tipo muito particular. Num terceiro nível, esse o mais concreto e determinado, a escola althusseriana trabalha com o conceito de formação social: o capitalismo agromercantil dependente brasileiro do período da Primeira República (1889-1930), o capitalismo neoliberal e imperialista francês do século XXI etc. O conceito de formação social trata da maneira como um determinado modo de produção vigora numa sociedade historicamente determinada, podendo, como foi o caso do capitalismo brasileiro da Primeira República, comportar elementos econômicos, políticos e sociais de modos de produção anteriores ao capitalismo. É nesse nível mais concreto que um número maior de particularidades históricas da sociedade em questão pode ser considerado: as características específicas da sua economia e do seu Estado, o regime político vigente, sua inserção na divisão internacional do trabalho, a composição de classes existente nessa sociedade, suas tradições políticas etc. O conceito de formação social, que se inspira muito na análise que Lênin fez do desenvolvimento do capitalismo na Rússia, na qual o futuro dirigente bolchevique mostrou a existência de quatro ou cinco modos de produção convivendo de maneira complexa e articulada na Rússia czarista do final do século XIX (Lenin, 1974), tal conceito procura se aproximar o mais possível do conjunto de determinações e particularidades de uma dada sociedade. O Brasil, tal qual a França, apresenta um Estado capitalista, mas um Estado capitalista dependente e não imperialista. Ademais, a dependência, no modelo neoliberal de capitalismo, é fundamentalmente financeira e – nova particularidade – desde a formação dos governos do PT, tem sido objeto de um processo de reformas. Nessa hierarquia de três níveis de conceitos desenhada por Althusser, o processo de conhecimento corresponde ao método que Maurice Dobb, inspirando nas ciências da natureza, denominou “método das aproximações sucessivas”, no qual o conhecimento, como uma curva assintótica, aproxima-se indefinidamente da realidade sem nunca encontrar-se com ela. Temos assim uma diferença entre Althusser e Gramsci que se refere a um elemento fundamental na compreensão do que é o marxismo e torna as concepções gerais desses dois autores inconciliáveis. Contudo, e apesar disso, a distância entre o conjunto da obra de Gramsci e a obra de Althusser, embora importante, é menor do que essas concepções gerais inconciliáveis poderiam sugerir. Isso porque Gramsci nem sempre foi consequente com os seus próprios enunciados epistemológicos mais gerais. Tal inconsequência se, lamentavelmente, introduziu inconsistências nos Cadernos do Cárcere, foi, em compensação, benéfica para o desenvolvimento do marxismo. De fato, as análises inovadoras que Gramsci faz da política resultam da mobilização de conceitos que transcendem situações históricas particulares. Suas considerações sobre o cesarismo abarcam, na formulação mais geral que ele próprio apresenta, tanto a Antiguidade Romana quanto a Europa dos séculos XX. E isso não é um exercício de metafísica, ao contrário do que acreditaríamos se concordássemos com o que o próprio Gramsci afirma no seu texto contra Bukarin. Também as suas análises sobre a unificação italiana recorrem a conceitos gerais, muitos dos quais elaborados pelo próprio Gramsci, que transcendem períodos históricos os mais variados: conceito como bloco histórico, revolução passiva, classe social, alianças de classe, intelectuais orgânicos e tradicionais, etc. Novamente abandonando seus próprios conselhos epistemológicos, Gramsci opera aqui com conceitos que “esquematizam” sim a experiência histórica e, ao fazê-lo, Gramsci supera a impotência teórica à qual a sua formulação sobre a história como “infinita variedade” poderia condenar os marxistas. O historicismo é um dos principais alvos da crítica de Althusser. No plano da epistemologia da ciência, o motivo dessa crítica é a concepção que a corrente historicista oferece da produção de conhecimento. Se tal produção fosse inseparável do período histórico no qual ela se dá, seria impossível pensar o marxismo como ciência da história, posto que a ciência, seus conceitos e teses têm de transcender o momento e as condições, fortuitas ou necessárias, de sua própria produção. 3. Renovação e importância do conceito de modo de produção Como já sugerimos acima, o conceito de modo de produção é de grande relevância nas análises históricas, econômicas, políticas e sociais de Althusser e de seus seguidores. Althusser, tal qual fizera Marx em sua obra O capital, colocou o conceito de modo de produção no centro da teoria da história e das sociedades – o materialismo histórico – e, em acréscimo, deu a esse conceito um desenvolvimento novo. Tal desenvolvimento pretende sistematizar aquilo que já está contido, embora em estado prático, isto é, não formulado de maneira explícita e sistemática, na própria obra de Marx. O conceito de modo de produção não deve, para Althusser, ficar restrito à economia. Assim modificado, tal conceito se desprende da terminologia original – a terminologia “modo de produção” sugere, tão somente, a “maneira de produzir”, isto é a economia – e passa a abarcar além da economia, a política e a ideologia. Chega-se a um conceito ampliado de modo de produção. Essa ampliação tem pressupostos e consequências teóricas muito importantes. De um lado, ela fornece um novo instrumento para a análise do conjunto da totalidade social, pensada, agora, como articulação necessária da economia, da política e da ideologia, e, de outro lado, essa ampliação é também um instrumento de crítica ao economicismo e ao voluntarismo que foram, juntamente com o historicismo, tendências muito presentes no marxismo do século XX. Podemos nos perguntar se a expressão “modo de produção” não se torna imprópria para o novo conceito que abarca, agora, a totalidade social. A verdade é que embora Althusser tenha mantido a terminologia, ele altera o conteúdo do conceito. Maria Turchetto avalia que Althusser, atuando num campo intelectual hegemonizado pelo marxismo do Partido Comunista Francês, tinha de manter a terminologia marxista tradicional para não perder seus interlocutores; para avançar, sustenta a professora da Universidade de Florença, Althusser precisaria, como no carnaval fiorentino, “avançar mascarado”. (Turchetto, 2006) Althusser e seus seguidores concebem a sociedade como uma totalidade que articula três instâncias principais: economia, política e ideologia. Concebem cada uma dessas instâncias como estruturas particulares e articuladas num todo que eles denominaram todo complexo a dominante para indicar que uma das instâncias ou estruturas sempre domina na articulação do todo. É nessa reflexão que Althusser elabora os conceitos de determinação em última instância e sobredeterminação. (Motta, 2012). A instância econômica determinaria em última instância a totalidade social, não por ocupar, em qualquer modo de produção, o papel dominante, mas por ser ela que, em cada modo de produção, designaria qual instância ocuparia a posição dominante. No feudalismo, por exemplo, e Althusser se inspira numa famosa nota de rodapé de Marx em O capital, o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas e a união do produtor direto aos meios de produção – vinculação do servo à gleba – resultaria no fato de a instância ideológica, representada fundamentalmente pela religião, ser a instância dominante; já no capitalismo, a instância econômica seria simultaneamente determinante e dominante. Até aqui, estamos no nível dos enunciados. Porém, a situação muda quando examinamos a maneira como Althusser e os althusserianos utilizam o conceito de modo de produção. Nesse caso, muitos autores e trabalhos acabam se afastando da ideia de determinação em última instância pela economia e praticando uma análise que estabelece uma causação recíproca entre economia, política e ideologia sem determinação fundamental de nenhuma delas (Saes, 1998). Consideremos a análise que Poulantzas faz do Estado no seu já citado livro Poder político e classes sociais. O Estado capitalista é apresentado como condição para a reprodução das relações de produção capitalistas. Ou seja, o conceito de modo de produção não pode se restringir à economia porque essa depende, para se reproduzir, da existência da superestrutura jurídico-política. Embora o Estado capitalista e a sua função não sejam objeto de uma análise sistemática de Marx em sua obra O Capital, temos, em estado prático, algumas teses fundamentais que, se desenvolvidas, permitem que cheguemos a tal. De fato, Marx mostra no Livro I de O Capital, mais exatamente na passagem da segunda seção (A transformação do dinheiro em capital) para a terceira seção (A produção da mais-valia absoluta), que as relações entre o operário e o capitalista como relações entre vendedor e comprador de mercadoria, só podem se reproduzir no tempo de maneira relativamente pacífica devido ao papel que desempenha o Estado burguês, particularmente o direito formalmente igualitário típico desse tipo de Estado. No direito burguês, os proprietários de mercadorias, inclusive o trabalhador que vende a sua força de trabalho, aparecem, todos, como homens livres, iguais e trocando

Description:
Indicações para o estudo do marxismo de Althusser1. Armando Boito Jr.2. Resumo. O texto apresenta conceitos e teses fundamentais do marxismo
See more

The list of books you might like

Most books are stored in the elastic cloud where traffic is expensive. For this reason, we have a limit on daily download.