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Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX PDF

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Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX 3 BERTRAND RUSSELL E A FILOSOFIA ANALÍTICA NO SÉCULO XX: ACTUALIDADE E POSTERIDADE DE RUSSELL (LIÇÃO DE SÍNTESE)1 HENRIQUE JALES RIBEIRO Penso que podemos, ainda que imperfeitamente, espelhar o mundo, como as mónadas de Leibniz; e que é dever do filósofo fazer de si mesmo um espelho tão fiel quanto puder. Mas também é seu dever reconhecer que, devido à nossa própria natu- reza, eventuais distorções são inevitáveis. A mais fundamental é a que vê o mundo do ponto de vista do aqui e agora, não com a ampla imparcialidade que os teístas atribuem a Deus. Alcançar uma tal imparcialidade é impossível para nós, mas podemos viajar até a uma certa distância dela. Mostrar a estrada que conduz a este fim é o dever supremo do filósofo. Bertrand Russell, O Meu Desenvolvimento Filosófico (cap. XVII, “A retirada de Pitágoras”). Introdução Uma visão popperiana dos problemas filosóficos Talvez seja de algum interesse, antes de entrar propriamente no tema desta lição, aludir à visão que sempre tive, desde que fui aluno 1 Este trabalho reproduz de maneira geral a lição de síntese das provas de agregação em filosofia (com o título homónimo) do autor, as quais tiveram lugar em Abril de 2007 na Universidade de Coimbra. Foi o texto dessa lição reformulado para o efeito, em especial com uma pequena ampliação da sua última secção e, sobretudo, com a introdução de notas de rodapé (indispensáveis, em alguns casos, para o leitor não suficientemente versado na filosofia de Russell e/ou na história da filosofia analítica). Contudo, entendeu-se conser- var o estilo essencialmente oral do mesmo. Várias referências, perfeitamente inteligíveis por si mesmas, são feitas ao programa e relatório das aludidas provas (Ribeiro, Henrique Jales 2007 Bertrand Russell e a teoria da significação na filosofia analítica contemporâ- nea, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra: Edição do Autor, 157 pp.). Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) pp. 3-70 4 Henrique Jales Ribeiro nesta prestigiada universidade, dos problemas filosóficos e da for- ma como os devemos encarar quer no âmbito científico, quer di- zer, nas nossas investigações pessoais e nas colegialmente enqua- dradas, quer no âmbito pedagógico, ou seja, no ensino da filoso- fia propriamente dito. A filosofia, considerada destas duas pers- pectivas fundamentais, é essencialmente para mim uma tarefa de argumentação e de resolução de problemas. É disso que se trata quando expomos uma determinada concepção da filosofia aos nossos alunos e, sobretudo, quando nos ocupamos da sua inter- pretação. Se um tema qualquer que em princípio fará parte da história da filosofia não é argumentável, mesmo depois de sujeito a uma reconstrução da parte do comentador, e se, portanto, não é possível apresentar a seu respeito várias interpretações possíveis, sinto-me inclinado a dizer que não terá interesse filosófico. Não estou a dizer apenas -o que é perfeitamente natural- que um texto, para ser filosófico, deve suscitar problemas a argumentar. Digo, outrossim, que, na medida em que levanta verdadeiros problemas filosóficos ele não é susceptível de uma interpretação mais ou menos definitiva, por muito que cada um de nós pretenda justa- mente o contrário quando o comentamos. É pela capacidade de suscitar problemas que requerem diferentes interpretações, mais ou menos conflituosas entre si, que meço, pois, o alcance de um texto qualquer e, em particular, daqueles que se supõe fazerem parte da história da filosofia analítica. A impossibilidade de se chegar a uma interpretação final, decisiva, desses problemas, não deve ser vista como um factor de decepção e, muito menos, como um convite ao relativismo e à suspeição, numa época que está cheia deles (cf. Norris, C. 1997). A forma como me vejo a mim mesmo e aos outros historiadores e comentadores da filosofia, deste ponto de vista, é como residentes num espaço aberto de discussão e argu- mentação centradas sobre uma problemática tão ou mais concreta do que aquela de que se ocupa um físico teórico nas suas inves- tigações mais refinadas. É neste sentido fundamental -e não porque há-de entregar-se a uma reflexão mais ou menos luxuriante no âmbito da metafísica ou, em alternativa, imitar ou transpor para o seu pró- prio domínio os métodos da ciência- que o filósofo -e em particular aquele que se reclama da tradição analítica em filosofia- se aproxima do homem de ciência. Creio ter sido esta a mensagem fundamental do livro de Karl Popper intitulado A Lógica da Descoberta Científica, sobre o qual comecei por publicar os meus primeiros trabalhos filo- sóficos já lá vão quase vinte anos (Popper, K. 1974; Ribeiro, H. Jales pp. 3-70 Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX 5 1986-1987).2 Na verdade, se a filosofia analítica existe como modo essencialmente distinto dos de outras tradições filosóficas -coisa que, como tenho argumentado nos últimos anos, não é pacífica ou incon- troversa (Idem 2007)-,3 é na argumentação suscitada por autênticos problemas filosóficos que veria a sua caracterização essencial, não em qualquer critério substantivo e discriminatório assente numa teo- ria da significação, como o da demarcação entre ciência e metafísica foi para os positivistas lógicos vienenses ou o da rejeição da teoria do conhecimento ainda é para muitos filósofos analíticos contempo- râneos (Idem 1999a, 1999c). Identificando deste modo os problemas filosóficos a problemas que são essencialmente argumentáveis, não estou simplesmente a apre- sentar uma visão pedagógica da filosofia. Estou a defender uma con- cepção da racionalidade no sentido mais amplo da expressão, como se poderia exemplificar, se tempo houvesse, apelando para a refle- xão produzida na matéria por parte da filosofia contemporânea de modo geral.4 Em todo o caso, dizer que o domínio da filosofia é, 2 É essa a mensagem que me interessa e não, por exemplo, a epistemologia falsificacionista de Popper onde filosoficamente se enquadra. É irrelevante também o facto desse filósofo, como é sabido, nunca ter tido relações cordiais com a chamada “filosofia analítica” nem nunca se ter considerado a ele próprio um “filósofo analítico”. 3 No trabalho referido (“Não há método nem métodos da filosofia analítica: Não há ‘filo- sofia analítica’”) forneci um conjunto decisivo de razões para justificar a tese segundo a qual, na perspectiva da historiografia anglo-saxónica contemporânea, a filosofia analítica não existe como entidade substantiva e distinta da chamada “filosofia continental”, ou vice-versa (se se preferir). (Na verdade, a própria ideia de uma “filosofia continental” foi criada, em grande parte, pelos filósofos analíticos eles mesmos.) O que não significará que para a expressão “filosofia analítica”, no sentido histórico, social e cultural não se possa em certa medida apelar. (A tese poderia ser algo chocante quando escrevi o livro Para compreen- der a história da filosofia analítica [Ribeiro, H. Jales 2001b]. Nos dias de hoje está em vias de tornar-se um lugar comum.) É deste último ponto de vista que se deve compreen- der o uso dessa expressão no presente trabalho. 4 Nesta perspectiva, mais uma vez, “filosofia continental” (onde a imponente filosofia de J. Habermas claramente sobressai) e “filosofia analítica” chegam, por vias diferentes, aos mesmos resultados fundamentais. Para uma caracterização da filosofia analítica na pers- pectiva da argumentação e contra, por exemplo, a ideia de que ela poderia ser definida geneticamente como modo de pensamento essencialmente distinto do “continental”, veja-se o clássico L. J. Cohen, The Dialogue of Reason: An Analysis of Analytic Philosophy (Cohen, L. J. 1986); para uma abordagem dessa e de outras perspectivas sobre o assunto, veja-se D. Follesdal “Analytic Philosophy: What Is It and Why Should We Engage in It?” (Follesdal, D. 1996). Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) pp. 3-70 6 Henrique Jales Ribeiro grosso modo falando, o domínio daquilo que pode ser argumentado, é dizer também que é por aí, fundamentalmente, que passa o seu ensino. Quando ensinamos Russell, Wittgenstein, Quine ou qualquer outro filósofo nos nossos cursos académicos, o que estamos a fazer não é propriamente ensinar as filosofias respectivas como se estas fossem virgens ou imunes às nossas interpretações, mas, de facto, a ensinar esta ou aquela teoria a respeito de cada um desse filósofos, a qual, obviamente, é susceptível de crítica e de argumentação. Como já sugeri, isto não significa, muito pelo contrário, que abracemos o relativismo e tenhamos abandonado a procura pela verdade, e até de uma verdade mais ou menos definitiva como horizonte das nossas interpretações. Quer dizer, antes, que não podemos chegar sequer a perspectivar a possibilidade da mesma a não ser mediante um conflito de interpretações levado tão longe quanto possível através da argumen- tação. É essencial, científica e pedagogicamente falando, que os alunos tenham consciência dessa relatividade essencial das nossas interpre- tações, por forma a que possam vir eles próprios a participar activa- mente na discussão filosófica. Foi nesta perspectiva fundamental que desenvolvi as minhas próprias investigações sobre Russell, Wittgenstein e a filosofia analítica de modo geral, e, por isso, me permiti falar sobre ela antes de entrar no tema propriamente dito desta lição. 1. Actualidade e posteridade da filosofia de Russell: a proble- mática do holismo na história da filosofia analítica O tema desta lição de síntese é baseado no programa e relatório que apresentei para um seminário de lógica e filosofia analítica subor- dinado ao tema Bertrand Russell e a teoria da significação na filosofia analítica contemporânea. Tomei aí como directriz a interpretação do impacto do pensamento do filósofo inglês (na perspectiva dessa teo- ria) na filosofia analítica contemporânea a partir dos anos vinte do século passado, e, em particular, nas filosofias de Ludwig Wittgenstein, do “Círculo de Viena” e de Willard Van Quine. Embora esse programa e o respectivo relatório constituam a primeira vez que me ocupo da teoria da significação de Russell e da sua influência na época referida, há quase uma década que tenho vindo a investigar os temas filosófi- cos de maneira geral que se relacionam com o autor em questão e a sugerir, quanto aos mesmos, um conjunto de teses que reputo como fundamentais para aquilo a que chamei, contra a “imagem oficial” pp. 3-70 Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX 7 da filosofia de Russell, “a reabilitação” da importância desta para a filosofia analítica contemporânea (Idem 1999).5 Eu não teria trans- posto para o ensino as minhas investigações sobre esse filósofo nem, portanto, feito delas o tema desta lição, se não pensasse que há efec- tivamente ainda muito a dizer, hoje em dia, quanto a uma tal reabili- tação. Na verdade, apesar de ter procurado dar o meu modesto con- tributo nos fóruns apropriados para a discussão das teses a que aludi, é minha convicção que a historiografia analítica continua a cultivar e a partilhar, de forma geral, um conjunto de interpretações claramente erróneas a propósito da filosofia de Russell e do seu lugar na filoso- fia contemporânea. Algumas dessas interpretações passam por uma visão completamente inadequada da história da filosofia analítica propriamente dita; outras, resultam da atribuição ao filósofo de teo- rias que claramente não são as suas e que ele próprio rejeitou expres- samente num momento ou noutro; outras ainda, finalmente, pressu- põem à partida e independentemente muitas vezes do que Russell disse ou deixou de dizer, certas concepções meta-filosóficas clara- mente desvalorizadores da importância do seu pensamento que se tomam como mais ou menos evidentes por si mesmas. Em qualquer destes casos, do que se trata, evidentemente, não é de um problema de competência filosófica das interpretações mas, fundamentalmente, da projecção na filosofia de Russell de concepções estranhas e alheias à mesma e que são provenientes dos contextos próprios da evolução da filosofia analítica desde os começos do século XX (Idem 2001b). São estes, fundamentalmente, que devem ser atentamente considera- dos quando se trata de analisar e criticar as interpretações erróneas da filosofia de Russell a que aludi anteriormente. A tese geral dessas interpretações não é outra a não ser esta: sendo certo que Russel foi um dos fundadores e iniciadores da tradição analítica em filosofia, o facto é que a sua filosofia terá entrado em bancarrota na sequência do impacto do Tractatus Lógico-Philosophicus 5 Mais à frente (secção 2) apresentarei algumas razões explicativas, filosófica e epistemologicamente falando, do conceito de “imagem oficial”. Por ele se deve entender “a leitura padrão e mais ou menos estandardizada de Russell”, especialmente nas Univer- sidades (no caso, nas Universidades de língua inglesa). Tem, obviamente, conotações e implicações do ponto de vista sociológico, que não me interessam aqui. É utilizado, com alguma frequência, na historiografia filosófica. Veja-se um exemplo (relacionado com a chamada “tradição do empirismo britânico em filosofia”) na introdução a Ayers, Michael 1993, que discuti em Ribeiro, H. Jales 2005. Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) pp. 3-70 8 Henrique Jales Ribeiro de Ludwig Wittgenstein dos anos vinte em diante, e, depois, disso, tudo o que ele tinha a dizer, filosoficamente falando, consistiu sobretudo em apresentar em novos termos o que autor desse livro já tinha mos- trado ser completamente inaceitável e não susceptível de qualquer reformulação (Iglesias, T. 1977, 1981; Eames, E. R. 1989; Hylton, P. 1990; Griffin, N. 1991a; Shanker, S. 1993; Hacker, P. 1996; Monk, R. 1997; etc.). Em particular, a concepção segundo a qual investiga- ção filosófica implica uma estreita relação entre a lógica, a psicologia e a epistemologia, que o Tractatus derrubou e que Russell retomou posteriormente, não tinha mais qualquer viabilidade do ponto de vista filosófico, entre outras razões porque a filosofia analítica contempo- rânea, de modo geral, está longe de a subscrever. Em consequência, nada de inteiramente novo ou original defendeu Russell na evolução do movimento analítico até aos anos cinquenta do século passado (quer dizer, até à altura em que abandonou a filosofia), quer quanto à formação e constituição do “Círculo de Viena” numa primeira etapa, quer quanto à emergência e desenvolvimento da chamada “filosofia inglesa da linguagem corrente”, numa segunda, quer, por fim, quanto à problemática introduzida em filosofia por Quine, Wittgenstein e outros em matéria de teoria da significação a partir da altura referida. No que diz respeito a esta última etapa, sobretudo, as teorias de Russell, que têm como cerne justamente essa relação entre a lógica, a psicologia e epistemologia a que me referi anteriormente, é vista como um exemplo paradigmático de uma concepção clássica ou tra- dicional, fundacionalista, em matéria de teoria da significação, que seria constitucionalmente alheia às novas perspectivas behavioristas e naturalistas a respeito da mesma. No conjunto, pois, a filosofia de Russell de modo geral pertenceria ao passado e só teria algum inte- resse, no fundo, como termo negativo de comparação com as novas filosofias. Foi esta representação da filosofia de Russell que os próprios estudiosos especializados nesse filósofo cultivaram e divulgaram nos últimos vinte e cinco anos, mesmo já depois de terem sido criados os chamados “Arquivos de Bertrand Russell” na Universidade McMaster (Ontário, Canadá), que constituem um importante contributo para o conhecimento do seu pensamento (o qual está ainda muito longe de poder ser dado como encerrado). Na verdade, foi uma tal represen- tação que Elizabeth R. Eames, uma conhecida e consagrada investi- gadora de Russell, apresentou no livro O Diálogo de Bertrand Russell com os seus Contemporâneos (Eames, E. R. 1989), a respeito do qual tive um dia a oportunidade de ironizar respeitosamente, aquando da pp. 3-70 Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX 9 minha participação num Congresso nos Estados Unidos, dizendo que melhor teria sido intitulá-lo “O Monólogo de Bertrand Russell com os seus Contemporâneos” (Ribeiro, H. Jales 1999b). Na verdade, a mensagem essencial do livro é justamente essa que sintetizei mais acima: o filósofo não tinha nada a dizer de novo depois das críticas de Wittgenstein no começo dos anos vinte; e, portanto, não se pode falar, a não ser numa perspectiva histórico-filosófica propriamente dita, de actualidade e, muito menos, de posteridade da sua filoso- fia. Deste ponto de vista, a autora insiste na incapacidade por parte de Russell a partir dessa época em acompanhar a transformação da filosofia que ele próprio ajudou a criar, em especial, a que diz res- peito aos desenvolvimentos mais recentes protagonizados por Quine e pelo Wittgenstein das Investigações Filosóficas. Mas o mesmo tipo de representação de Russell prolifera de maneira geral na historiografia analítica contemporânea, de tal maneira que seria fas- tidioso aqui estar a referir todos os exemplos (cf. Griffin, N. 2003; Hacker, P. M. S. 2005; Baker, G. P. e Hacker, P. M. S. 2005; Monk, R. 2005; etc.).6 No programa e relatório do meu seminário de lógica e filosofia analítica proponho, de forma provocadora, uma interpretação da fi- losofia de Russell desde os anos vinte do século passado até, em última análise, aos nossos dias, que contrasta claramente com uma tal representação. A minha perspectiva aí é completamente oposta à de Eames e de outros: defendo, e avanço com argumentos exaustivos histórico-filosóficamente falando, não só que não é verdade que a filosofia de Russell teria sido derrubada pelas críticas de Wittgenstein antes e depois do Tractatus mas também que a teoria segundo a qual essa filosofia não teria acompanhado o desenvolvimento do pensa- mento filosófico ao longo do século XX, e particularmente na primeira metade do mesmo, é completamente errónea. Um dos aspectos essen- ciais da teoria que proponho, na sequência das minhas investigações anteriores e no que à relação entre Russell e o primeiro Wittgenstein 6 Depois da edição de N. Griffin nada de verdadeiramente novo apareceu em relação à historiografia conhecida na matéria que aqui me ocupa. Mas o próprio livro em questão de algum modo representa uma certa mudança, no sentido positivo, quanto a essa historiografia, renunciando de maneira geral à aplicação à filosofia de Russell na história da filosofia analítica das teses meta-filosóficas características do passado, particularmente quanto ao impacto do Tractatus (“bancarrota”, etc.). Confronte-se, deste ponto de vista, Tully R. E. 1993-1994, e Idem 2003, pp. 302-370. Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) pp. 3-70 10 Henrique Jales Ribeiro diz respeito, é que a filosofia do primeiro autor no começo dos anos vinte do século passado, ao contrário do que dizem as conhecidas e estafadas interpretações da historiografia analítica contemporânea, não é verificacionista e reducionista em matéria de teoria da significação (Ribeiro, H. Jales 2002).7 É sabido que pela via de Quine, Putnam e outros esta associação e identificação entre Russell e uma concepção tradicional, fundacionalista, dessa teoria, em contraste com a qual deveríamos medir o alcance das suas (deles) próprias concepções, se tornou um lugar comum na historiografia analítica contemporânea8 Sugiro que decididamente rejeitemos quer uma tal associação e iden- tificação quer o pressuposto da novidade e originalidade absolutas em matéria de significação das concepções desses autores (Idem 2004).9 O que de facto nós encontramos nos trabalhos de Russell na altura da publicação do célebre livro de Wittgenstein (Russell, B. 1988, Part III, pp. 79 e ss.; Russell, B. 1971), surpreendente- mente, é uma primeira versão da teoria, histórica e filosoficamente falando, segundo a qual a significação tem como base o uso da linguagem, e não simplesmente ou fundamentalmente, como pre- tendem os filósofos americanos mencionados, uma relação de cor- respondência psicológica entre representações que existiriam na mente do sujeito de conhecimento e o mundo exterior (Ribeiro, 7 O uso vulgarizado das expressões no seu conjunto (bem como da de “naturalismo”) e a teoria a respeito da sua relação deve-se fundamentalmente a Quine na sua crítica sis- temática das concepções do positivismo lógico vienense e americano (e, sobretudo, de Carnap) a partir dos anos cinquenta em “Two Dogmas of Empiricism” (Quine, W. V. O. 1994a, pp. 20-46). 8 Quanto a Quine, o estabelecimento da referida identificação é feito, de modo geral, indirectamente, através, designadamente, das filiações russellianas das concepções de Carnap em Der logishe Aufbau der Welt. (Veja-se, neste sentido, Quine, W. V. O. 1994a, pp. 32-33; e Idem 1977, pp. 88-89.) Putnam parece ter seguido nesta materia as teorias de Quine. Veja-se o conjunto de trabalhos reunidos em Putnam, H. 1986. 9 Independentemente das minhas investigações, a tese que fundamenta essa rejeição, e a qual subscrevo, foi defendida por Lackey, D. 1975, e O’Grady, P. 1995. Mas nunca teve, de facto, grande impacto na historiografia analitica contemporânea. 10 A toria de que a significação na linguagem corrente tem como base fundamental o uso da própria linguagem em contexto, emerge em Russell, independentemente de qualquer influência por parte de Wittgenstein, por volta de 1919 e aparece pela primeira vez no ensaio “On Propositions” (Russell, B. 1986b). Ela integra um enquadramento filosófico inteira- mente novo da filosofia de Russell, que passa pela adopção do que se tornou hoje em dia corrente designar como “theory-ladenness of observation”, pela aceitação de um behaviorismo e naturalismo modificados (em relação aos da tradição filosófica e, particularmente, aos de W. James e J. Dewey) e, neste âmbito, da tese do monismo neutral, arrastando consigo pp. 3-70 Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) Bertrand Russell e a Filosofia Analítica no Século XX 11 H. Jales 1999, 2002, 2004; Russell, B. 1971, pp. 178 e ss.).10 Esta concepção mentalista, cartesiana, da significação, a que acabo de aludir, é, como se sabe, a teoria que é geralmente atribuída a Russell, mas que ele nunca chegou a defender efectivamente nesses termos. Argumento pois, no que à conexão entre o filósofo inglês e o vienense concerne, que é ao primeiro logo, não ao segundo, que devemos atribuir a primeira formulação de uma tal teoria logo no primeiro quartel do século XX, quer dizer, muitos anos antes que o pró- prio Wittgenstein tenha interpretado o uso da linguagem na pers- pectiva do behaviorismo e naturalismo (Ribeiro, H. Jales 2002).11 Mas mais do que isso: defendo que o conhecido embate entre os dois filósofos aquando da primeira edição do Tractatus cons- transformações filosoficamente profundas, como sejam a rejeição da ideia de um conheci- mento directo e imediato (“acquaintance”). Entre os factores principais que estiveram na origem desse enquadramento (que o filósofo ele mesmo sugere e, em alguns casos, expressamente tematiza em My Philosophical Development, e que estudei detalhadamente em Ribeiro, H. Jales 1999) estão (a)) a leitura dos behavioristas americanos em psicologia, como J. Watson, (b)) uma reflexão mais aprofundada, por parte do filósofo, sobre as teorias dos pragmatistas americanos (a que já aludi), (c)) uma reflexão similar sobre o enquadramento filosófico pos- sível de teorias como a da relatividade, e obviamente (d)) a tentativa de superação de certas dificuldades incontornáveis da própria filosofia de Russell, como sejam as que dizem respei- to à justificação da teoria do conhecimento directo e imediato (“acquaintance”). Russell, no livro referido, refere-se a 1918 como o ano de uma viragem fundamental no seu pensamento filosófico, que tenho vindo a designar como a “viragem linguística de Russell” e que impli- cou da sua parte o reconhecimento da importância fundamental da filosofia da linguagem e, aí, da problemática da significação (veja-se mais adiante nota 21). O primeiro desenvolvimento sistemático das teorias de Russell, deste ponto de vista, é feito em The Analysis of Mind (1921), em particular na “Lecture X”. Aí afirma Russell: “Understanding language is more like understanding cricket: it is a matter of habits, acquired in oneself and rightly presumed in others. To say that a word has a meaning is not to say that those who use the word correctly have ever thought out what the meaning is: the use of the word comes first, and the meaning is to be distilled out of it by observation and analysis.” (Idem 1971, p. 197, s. m.) 11 Sobre uma tal interpretação veja-se Haller, R. 1992.-Mais uma vez (cf. nota 7) , o uso vulgarizado das expressões no seu conjunto e a teoria a respeito da sua relação deve-se fundamentalmente a Quine em Ontological Relativity and Other Essays (Quine, W. V. O. 1977), e, sobretudo, à interpretação que o filósofo americano faz nesse livro sobre a ifluência do pragmatismo de John Dewey na sua própria filosofia. Significativamente, como sugeri na nota anterior, foi justamente uma tal influência no pensamento do próprio Russell entre 1913 e 1919, entre outros factores, que o conduziu à teoria segundo a qual a signi- ficação na linguagem corrente tem como base o uso da própria linguagem, sem renunciar completamente à teoria tradicional (mentalista, cartesiana), que subscreveu até aí, e com a qual é geral e exclusivamente creditado. Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007) pp. 3-70 12 Henrique Jales Ribeiro tituiu, na perspectiva da filosofia de Russell pelo menos, uma das primeiras colocações da problemática holismo versus atomismo (ou holismo versus verificacionismo e reducionismo)12 que é suposto ter 12 É uma tese que tenho vindo a defender em vários trabalhos nestes últimos anos (sobretudo no mencionado no texto) e que importa sintetizar rapidamente (para o leitor comum), sob pena de ininteligibilidade de várias outras ideias fundamentais nesta lição. A aceitação da “theory-ladenness of observation” (numa tradução literal: “observação permeada pela teoria”), por parte de Russell, conduziu-o a interrogar-se sobre a questão de saber em que medida o objecto ou matéria de uma tal observação (designemo-lo por “dado” para simplificar) existe ou não independentemente da própria teoria. Posta em termos de filo- sofia da linguagem, a aceitação dessa teoria implicou a questão de saber em que medida a significação e a referência nos remetem para fora do âmbito da própria linguagem ou para o mundo, quer dizer, para um “dado” que existirá aí como constituinte último (qualquer que seja a natureza que revestirá e a forma como o nomeamos) e independemente, portanto, da própria linguagem. A problemática de uma tal questão mais não é do que a do holismo, ou a do holismo versus atomismo; e é ela que, a partir de 1919, guiou grande parte das investigações de Russell. A resposta do filósofo passa por reconhecer a importância fun- damental da ideia de mediação semântica e retirar daí as devidas implicações (é o que ele fará a propósito do conceito de “vago” [Russell, B. 1988a]), e, por outro lado, em rejeitar decididamente aquelas concepções que, de uma maneira ou de outra, conduzem à negação da ideia de “dado”. O filósofo adopta pois, no âmbito da sua teoria da significação, o que podemos chamar um “holismo semântico parcial”, com o qual ele julgava salvaguardar o próprio estatuto da filosofia como investigação sistemática a respeito do mundo. Na sua perspectiva, exposta na “Introdução” ao Tractatus, era a negação da ideia de “dado” que se podia concluir da teoria do mostrar e da teoria do solipsismo defendida por Wittgenstein nesse livro (Russell, B. 1933, pp. 7 e ss.). A versão da problemática do holismo, a que acabo de aludir, é essencialmente semântica. Mas o holismo não se reduz a ela. Pode ser lógico ou (no caso, mais uma vez, de Wittgenstein no Tractatus) lógico-sintáctico. Assume esta forma quando a lógica ela mesma é considerada não apenas como um sistema de signos (com as suas regras próprias) mas também (como acontece nesse livro) como um “sistema de representação“ cujas categorias e propriedades fundamentais hão-de explicar as de qualquer outro sistema (como a linguagem corrente, mas não só). Também deste ponto de vista, como se verá ao longo da presente lição, o holismo (lógico) pode ser mais ou menos forte ou moderado. O holismo semântico de certas teorias do Tractatus (teoria do mostrar e teoria do solipsismo, principalmente) é ele mesmo parte essencial do holismo lógico ou lógico-sintáctico nesse livro, como se mostra em Ribeiro, H. Jales 2002. Na inter- pretação de Russell, na “Introdução“ ao Tractatus, Wittgenstein subscreverá um holismo lógico radical, que se prende estreitamente com essa versão do holismo semântico a que aludi e conduz à tese do fim da filosofia (no caso, à da sua ilegitimidade como discurso) [Id. ib.]. É um assunto que constitui matéria de reflexão aprofundada ao longo desta lição. Um dos raros trabalhos sobre a problemática do holismo na filosofia de Russell e suas implicações é “Russell’s Perilous Journey from Atomism to Holism” (Rodriguez-Consuegra, F. 1996). Mas, como o próprio título desse trabalho sugere, o comentador espanhol vê na emergência dessa problemática um “perigo” para Russell, no sentido em que, como acaba pp. 3-70 Revista Filosófica de Coimbra – n.º 31 (2007)

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1 Este trabalho reproduz de maneira geral a lição de síntese das provas de .. teorias de Russell, deste ponto de vista, é feito em The Analysis of Mind (1921), .. 21 Russell observa de forma surpreendente em My Philosophical
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