BEATRIZ LEME CURADO NELSON RODRIGUES, MISÉRIA E REDENÇÃO: Uma análise da obra rodriguiana pela perspectiva cristã. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para a obtenção de título de MESTRE em Ciências da Religião, sob a orientação do Prof. Doutor Luiz Felipe Pondé. PONTIFÍCIA UNIVERSDIADE CATÓLICA DE SÃO PAULO São Paulo - 2007 Resumo No presente trabalho procuramos estabelecer um campo de diálogo entre a tradição cristã e o universo do escritor brasileiro Nelson Rodrigues. Escolhemos como referencia dentro da tradição cristã um sistema filosófico religioso do século II – o Gnosticismo –, e a tradição encabeçada por Santo Agostinho, Bispo de Hipona. No primeiro capítulo nos focamos em estabelecer um panorama histórico da dramaturgia brasileira. Depois de traçado esse panorama, nos concentraremos na vida e obra de Nelson Rodrigues, dando ênfase nas influências religiosas que nosso autor pode ter sofrido. No capítulo seguinte, buscaremos um breve panorama histórico do Gnosticismo; a explicitação de sua estrutura, da antropologia proposta pelo sistema e da importância da gnose. As peculiaridades do sistema gnóstico Valentiniano e as possíveis áreas de contato e de divergência entre o sistema e o universo rodriguiano. Já no terceiro capítulo, focalizaremos a tradição agostiniana e a idéia de caritas. Para essa explicitação faz-se necessária uma rápida explanação sobre a natureza humana e a graça. Feito isso, poderemos passar a Nelson Rodrigues e buscar as semelhanças com a tradição de Agostinho. No quarto e último capítulo procuramos estabelecer o paralelo entre as duas tradições religiosas estudadas e a peça Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária de Nelson Rodrigues. 2 Abstract In the present study we try to settle up a dialogue between the Christian tradition and the universe created by the Brazilian writer Nelson Rodrigues. We chose as reference inside the Christian tradition a philosophic religious system from the II century – Gnosticism –, and the tradition lead by Saint Augustine, Bishop of Hippo. In the first chapter, we estabilish a Brazilian’s dramaturgic historic panorama. After that, we focus in Nelson Rodrigues’ life and work, giving emphasis in the religious influences that he may had suffer. In the following chapter we will find a brief historical panorama of Gnosticism; an explicitation of its structure, anthropology and gnosis’ importance. The peculiarities of the Valentinian system and the possible contact and divergence areas between this system and the universe created by Nelson Rodrigues. Then in the third chapter, we stress the Augustine tradition and the idea of caritas. To this it is necessary a concise explanation about human nature and grace. As a consequence we can evaluate the work of Nelson Rodrigues and find its resemblance with the Augustine’s tradition. Finally at the fourth and last chapter we try to estabilish a parallel between the two religious traditions analyzed and the Nelson Rodrigues’ play Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas ordinária. 3 Índice Introdução ................................................................................................................................ 7 Capitulo 1: Panorama ............................................................................................................. 14 Vida ............................................................................................................................ 17 Influências Religiosas ..................................................................................... 21 Obra ............................................................................................................................ 23 Classificação.................................................................................................... 26 Vestido de Noiva.................................................................................. 27 Senhora dos Afogados......................................................................... 29 A Falecida............................................................................................ 32 Capítulo 2: Gnosticismo e miséria.......................................................................................... 38 Estrutura...................................................................................................................... 42 O mito gnóstico............................................................................................... 43 Antropologia.................................................................................................... 45 Gnose.............................................................................................................. 48 Valentinianos.............................................................................................................. 51 Nelson Rodrigues........................................................................................................ 55 Humor.............................................................................................................. 61 Capítulo 3: Santo Agostinho e redenção................................................................................. 65 Natureza humana e graça............................................................................................ 67 Nelson Rodrigues, graça e amor................................................................................. 72 Dorotéia........................................................................................................... 75 Anti-Nelson Rodrigues..................................................................................... 78 O beijo no asfalto............................................................................................ 81 Capítulo 4: O mineiro só é solidário no câncer....................................................................... 84 Conclusão............................................................................................................................... 101 Bibliografia............................................................................................................................. 106 Apêndices 4 Introdução Não há virtude sem imortalidade.1 1 DOSTOIEVSKI, Fiodor. Os irmãos Karamazov, página 81. 5 Pretendemos, com o presente trabalho, estabelecer um diálogo entre o universo criado pelo dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues – universo em que ele delimita uma antropologia pessimista – e o universo proposto pelo sistema filosófico-religioso Gnóstico – usando como referência teórica a cosmo visão desse sistema, que desemboca na antropologia – e, entre o universo do dramaturgo e a tradição cristã encabeçada por Santo Agostinho – partindo da idéia de caritas-agape. Buscamos analisar a antropologia pessimista e a existência da possibilidade do ser humano redimir-se na obra de Nelson Rodrigues, utilizando especificamente a Tragédia Carioca Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária. Aspiramos, ao estabelecer tal diálogo, o entendimento da miséria humana a partir da obra rodriguiana, usando a dramaturgia como fonte de questões filosóficas, como vem sendo feito há muitos anos. Durante todo o percurso, uma questão nos foi feita recorrentemente: o que Nelson Rodrigues tem a ver com Gnosticismo ou com Agostinho? Para aqueles que não conhecem sua obra a fundo e sabem apenas o que é dito pelo senso comum, a resposta é: nada. Mas, para tantos outros que têm curiosidade em desvendar esse magnífico autor, pretendemos que, caso o nosso trabalho não ache uma resposta específica, que ele abra caminhos para novas pesquisas e estabeleça um campo de discussão entre os autores escolhidos. Nelson nunca escreveu teorias ou tratados sobre antropologia ou ontologia. Nunca falou sobre o sistema Gnóstico e não podemos afirmar se ele o conhecia; já em relação a Agostinho, não temos conhecimento, até agora, pela leitura de suas obras, de nenhuma citação sobre o santo2. Entretanto, algumas declarações sobre o humano nos abrem possibilidades para essa pesquisa. Em alguns de seus depoimentos, nos deparamos com um discurso sobre uma natureza humana hedionda, que só pode se redimir caso reconheça sua condição ou, até mesmo, um homem que é “um caso perdido”3. A dramaturgia de Nelson Rodrigues foi o ponto de partida da pesquisa. A aproximação com o autor aconteceu durante a graduação em Artes Cênicas – nada mais natural, tendo em vista a importância de Nelson Rodrigues para o teatro brasileiro – ele seria o nosso Willian Shakespeare, o “criador do humano”4 em terras tupiniquins. Posteriormente veio o interesse pelos outros estilos literários: crônicas, contos e romances. Os temas, que se repetem obsessivamente, nos mostram um autor que consegue delimitar personagens em poucas 2 O único Santo que Nelson Rodrigues se refere, pelo que pudemos averiguar, é São Francisco de Assis, em O óbvio ululante. 3 Frase de Nelson em “Nelson Rodrigues, personagem de si mesmo”, de FONSECA, Cristina. 4 Título de livro escrito por BLOOM, Harold, sobre a obra de Shakespeare. 6 linhas; seres humanos fictícios que não devem em nada aos reais, com suas chagas e venturas expostas àqueles que os assistem. A observação que Nelson faz do humano chama atenção: como jornalista, sua percepção foi se aguçando ao ponto dele criar uma linguagem crua, direta e prosaica, que nos aproxima e nos repele logo em seguida por não querermos nos identificar com um ser tão semelhante: A vantagem dessa interpretação naturalista do dia-a-dia carioca, uma interpretação cujo objetivo declarado e implícito é mostrar a vida como ela é, transpondo para o teatro algo da crônica dos jornais, a vantagem dessa interpretação é a comunicação imediata que estabelece com o publico. 5 Seu olhar foi esculpido à crueldade: feroz e perspicaz, sua visão não traz nenhuma comiseração. Ele não poupa seus personagens, exibindo sua enfermidade ao colocá-los em situações limítrofes onde eles buscam a transgressão – quase sempre frustrada. Nelson percebe, de forma singular, a condição humana, a mediocridade da vida e a relata não para compactuar com a miséria, e sim para escancará-la com intuito de distanciar-se para conseqüentemente distanciar-nos. E esses relatos desembocam numa antropologia pessimista e miserável. A escolha pela dramaturgia veio por dois motivos: a intimidade com os textos, conhecidos meus de alguns anos, e a convicção de que há na dramartugia uma unidade de pensamento que não se perde em tramas secundárias – como, por exemplo, num romance – e que os textos têm personagens e conflitos delineados o bastante para que se abra a possibilidade do estudo e da pesquisa. A opção da peça a ser analisada, entre as dezessete obras, baseou-se em uma afirmação de Sábato Magaldi: na peça escolhida, Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária, uma Tragédia Carioca – classificação feita pelo mesmo Sábato – existiria um tipo de redenção6 – essa seria a exceção –, o que a diferencia das outras Tragédias. Todavia, não deixamos de abordar outras obras – neste caso, tanto dramatúrgicas como jornalísticas – conforme foi necessário durante o nosso trabalho. Em Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária, os personagens fazem uma escolha que define sua posição e, conseqüentemente, se acolhem ou não a redenção: aceitar ou não a frase proposta por Edgar, que seria de autoria de Otto Lara – daí o título da peça –: “O mineiro só é solidário no câncer”. A frase, que postula um ser humano refratário, tão 5 LINS, Ronaldo L. O Teatro de Nelson Rodrigues: uma realidade em agonia. Página 86. Grifo nosso. 6 Há outra peça de Nelson, Anti-Nelson Rodrigues, que termina no que podemos chamar de “happy-end”. Essa obra é classificada por Sábato Magaldi como Peça Psicológica e falamos sobre ela no capítulo 3. 7 defendido por Agostinho, acaba por ser maior do que o enredo no nosso recorte: aceitar a frase é aceitar o não-amor ao próximo, é aceitar o não-amar a si mesmo – “ama ao próximo como a ti mesmo” –, o não amar a Deus, já que o homem só se mostraria solidário, caridoso, em situações limítrofes: no câncer. O posicionamento em relação à frase trás a cada pessoa a condição de perder-se ou não, por inteiro, no mundo: Desde logo o seu cumprimento depende da graça de Deus; poder amar ao próximo depende do amor de Deus (dilectio Dei). Aceitando o amor divino, a criatura denega-se a si própria, ama e odeia como Deus. Renunciando a si, ela renuncia ao mesmo tempo a todas as relações mundanas.7 Estabelecida a trajetória a seguir, passamos a busca de referências que pudessem nos guiar durante o percurso: muito já foi dito e escrito sobre Nelson Rodrigues. Autor polêmico, ele chocou a sociedade brasileira durante décadas e ficou famoso por sua escrita e, posteriormente, por um programa na Rede Globo de Televisão - A Cabra Vadia. É impossível entendê-lo sem conhecer sua biografia – tema que trataremos no primeiro capítulo. Sua vida foi cheia de tragédias e de acontecimentos que influenciariam direta e indiretamente suas obras, como o assassinato de seu irmão Roberto – desenhista de talento, era querido por toda família – que Nelson presenciou e levou a derrocada, financeira e sentimental, da família Rodrigues. Nelson chegou a dizer que a bala que matou Roberto, também matou seu pai, Mário. Mesmo com tantos trabalhos publicados sobre o dramaturgo, não há um que analise especificamente a influência do Cristianismo na obra de Nelson Rodrigues – o que torna a nossa pesquisa inédita. Os diretores teatrais que montam suas peças não se cansam de dizer que há muita miséria no universo rodriguiano, que ele mistura o profano e o sagrado, deixando clara a presença religiosa nas obras mas, nem sempre, chegam a abordar a redenção – já que ela é uma exceção – e, na grande maioria das vezes, não produzem material acadêmico. Não obstante, os acadêmicos Sábato Magaldi, Verônica Fabrini Machado Almeida, Eudinyr Fraga e Ronaldo Lima Lins produziram rico material – onde a antropologia pessimista, mesmo que indiretamente, é colocada de diferentes maneiras e de diferentes pontos de vista – que nos serviram de referencial teórico para maior compreensão do universo rodriguiano. Esse universo dilacerado mostrado pelos comentadores de Nelson nos levou ao Gnosticismo e a idéia proposta por este sistema: o mundo como prisão cósmica de onde o ser 7 ARENDT, Hanna. O conceito de amor em Santo Agostinho. Página 113. 8 humano não tem saída. Para filosofia Gnóstica, que tem uma visão do mundo material como criação de um poder inferior ou, um desequilíbrio do universo superior, o homem seria resultado de um mal dia de Deus – um vômito de Deus –, não um Deus bom e condescendente, mas um Deus mal, o Demiurgo, e, portanto, a raça humana estaria fadada a viver em um sofrimento eterno; enfim, estaria predestinada a viver em miséria e, apenas pelo reconhecimento da sua condição inferior, seria possível algum tipo de redenção, só alcançada pela gnose. Todavia, a gnose, além de ser solitária, chegando quase ao solipsismo, não seria para todos, apenas os escolhidos, a elite que possui a centelha divina, a atingiriam, fazendo com que, a grande maioria, continue penando neste reino de desgraça, escuridão e sofrimento. Essa estrutura deixa de lado o amor – caritas – sentimento extremamente importante na obra de Nelson. Assim como para Dostoievski – autor pelo qual Nelson tinha paixão8 –, o amor é o único meio de o ser humano não ser esmagado: O único modo de Deus não se transformar numa contingência insuportável é a idéia de caritas, expressa por Agostinho: o amor é que dá, de alguma maneira, uma certa substância que faz com que a pessoa não se dissolva. Evdokimov diz que, para Dostoievski, o ser humano só se constitui quando ama e é amado; senão ele não é 9 ninguém, ele se desmancha e não existe. Esperamos, com a nossa pesquisa, descobrir os canais “subterrâneos”10 pelos quais o Gnosticismo chegou até a Modernidade e de que maneira podemos estabelecer um diálogo entre o sistema e a obra rodriguiana – tema do nosso segundo capítulo. A bibliografia sobre o Gnosticismo e a gnose é farta; nossas principais referências são as obras de Kurt Rudolph e Hans Jonas, além das Escrituras Gnósticas, dos escritos do Colóquio de Messina e ainda bibliografia sobre as heresias do início da Cristandade. O nosso outro referencial teórico, a possibilidade de redenção, aparece nos textos rodriguianos como exceção. Seus personagens, após longo caminho de tentativas frustradas de mudança, percebem sua impotência diante da vida que lhe é determinada, independente da 8 Em “Uma banana como merenda” Nelson escreve: “Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: ‘O que você leu?’. Respondi: ‘Dostoievski’. Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: ‘Que mais?’. E eu: ‘Dostoievski’. Teimou: ‘Só?’. Repeti: ‘Dostoievski’. O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema de não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.” RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante, página 43. 9 PONDÉ, L. Felipe Crítica e Profecia, página 138. 10 Em Gnosis, Kurth Rudolph usa esse termo: “É difícil provar a continuidade, em detalhes, já que as ligações de conexão são freqüentemente ‘canais subterrâneos’, ou ainda as relações são baseadas em reconstruções da historia das idéias que têm sido retiradas especialmente no domínio da historia da filosofia.” Página 368. 9 classe social ou do gênero, e rumam, em sua grande maioria, ao desenlace trágico, ou a única saída digna: a morte – neste estado em que nada mais os afligiria, e talvez até exista algum apaziguamento da angústia. Fugindo à regra encontramos o amor que traz um novo significado à vida humana, e a sua falta sendo o motivo das desventuras humanas: “Tudo é falta de amor. O câncer no seio ou qualquer outra forma de câncer. É falta de amor. As lesões do sentimento. A crueldade. Tudo, tudo falta de amor.”11 Partirmos, pois, principalmente da bibliografia agostiniana para estabelecer o conceito de caritas-agape. Portanto, nossa pesquisa vai em direção ao conceito de amor proposto pelo Cristianismo ortodoxo: “a caridade é uma das três viturdes chamadas ‘teologais’ (junto com a fé e a esperança)”12. Amar está ligado a Deus e é por Deus: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros. Porque a caridade vem de Deus. E todo o que ama, é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama, não conhece a Deus: porque Deus é caridade. 13 Aspiramos, também através do estabelecimento de um dialogo, demonstrar que a redenção presente na obra de Nelson está ligada ao amor. Apenas o amor ao próximo como a si mesmo pode trazer uma nova significação à vida terrena e torná-la suportável nesse mundo de sombras. E pela dificuldade em amar-se, acabamos nos deparando com poucos personagens que passam pela dolorosa travessia até chegarem à redenção. Citamos aqui Fraternidade, poema de Germain Nouveau que ilustra delicadamente esse amor do qual falamos: Irmão, ó doce mendigo que cantas em pleno vento, Ama-te como o ar do céu ama o vento. Irmão, que empurras os bois pelos montes de terra, Ama-te como nos campos a gleba ama a terra. Irmão, que fazes vinho do sangue das uvas de ouro, Ama-te como uma cepa que ama seus cachos de ouro. Irmão, que fazes pão, casca dourada e miolo, Ama-te como no forno a casca ama o miolo. Irmão, que fazes o hábito, alegre tecelão de pano, Ama-te, como em si a lã ama o pano. 11 RODRIGUES, Nelson. O óbvio ululante, página 81. 12 MORA, J. Ferrater. Diccionario de Filosofia Tomo III, página 124. Tradução nossa. 13 I João, 4, 7 até 9. 10
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