39 e-scrita ISSN 2177-6288 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda MATIZES SOCIOCULTURAIS NUMA HISTÓRIA DE MATRIZ AFRICANA: HIBISCO ROXO, DE CHIMAMANDA ADICHIE, EM PERSPECTIVA Fernanda Mota1 RESUMO: Neste ensaio, reflete-se sobre o romance Purple hibiscus, de Chimamanda Adichie (2003), enfocando aspectos sociais e culturais que desenham possibilidades outras de leitura de histórias de matriz africana. A escolha do romance de Adichie alinha-se com reflexões de Chinua Achebe e sua declarada busca por um modo não colonial e não homogeneizante de ler a África. Nesse sentido, os sentidos de leitura propostos são variados e flagram ambivalências e configurações identitárias em seus variados matizes, nos quais até mesmo o predomínio de uma cor local já é a mistura de outras cores, plurais. Palavras-chave: África; sociedade; cultura. Tints in social and cultural history of african matrix: Purple hibiscus, by Chimamanda Adichie, in perspective ABSTRACT: This essay reflects on the novel Purple Hibiscus, by Chimamanda Adichie (2003), focusing on social and cultural aspects that outline other possibilities of reading African stories. Choosing this novel by Adichie is in line with reflections by Chinua Achebe and his explicit search for a non-colonial and non-homogenizing way of reading Africa. In this sense, the senses of interpretation proposed are manifold and grasp ambivalences and configurations of identities in its varied colors, in which even the prevalence of a local color is already the mixture of other colors, in a plural connotation. Keywords: Africa; society; culture. 1 Professora Doutora do Departamento de Letras Germânicas da Universidade Federal da Bahia, BA, Brasil. [email protected] e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 40 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda Para começo de outra história: literatura africana de autoria africana “Aquilo é um hibisco, não é, Tia?” Jaja perguntou, olhando fixamente para a planta perto da cerca de arame farpado. “Eu não sabia que havia hibiscos roxos.2” (ADICHIE, 2003, p. 128, tradução nossa) Em Purple hibiscus, de Chimamanda Adichie (2003), o desconhecimento de Jaja, irmão da protagonista Kimibili, sobre a cor dos hibiscos é interpretada como a impossibilidade de apreender, mesmo sob um prisma intradiegético, os matizes de uma sociedade, cultura, nação. No entanto, em se tratando do continente africano, sua diversidade é comumente traduzida em estereótipos, transformados em vias únicas de leitura, como enuncia Chimamanda Adichie em sua emblemática fala intitulada “Os perigos de uma história única”. Textos africanos também advêm de perspectivas e, portanto, consistem em recortes criativos de cenas, temas, sujeitos ficcionais. Nesse sentido, são concebidos como tessituras parciais advindas de um ponto de vista circundado por uma paisagem cultural que atua no seu processo de produção. No entanto, nesses textos, escritos a partir de um local de fala sobre o qual se fala, é possível vislumbrar aspectos que escapam a olhares externos e guiados pelas lentes do pré-conceito e do estereótipo. Entre esses conceitos cristalizados, destaca-se certa prevalência de decalques sombrios empreendidos em narrativas como Coração das trevas, de Joseph Conrad, sobre o continente africano. Em narrativas literárias e fílmicas com histórias ambientadas em países africanos, encontram-se matrizes de tom unilateral atribuído por autores autolegitimados que enfatizaram em suas narrativas aspectos culturais, sociais, naturais interpretados sob um prisma reducionista sobre os povos africanos para justificar práticas coloniais. Essa unilateralidade resulta do não reconhecimento de traços socioculturais que se distinguem de padrões eurocêntricos, através de um olhar interessado que precisava de um (pré)texto para justificar um processo de exploração do continente. Entre as narrativas que desenharam um lado sombrio sobre o continente, destaca-se a já mencionada novela de Joseph Conrad, Coração das trevas, citada pelo autor nigeriano Chinua Achebe (2000), em Home and exile, como exemplo de narrativa que apresenta um painel sombrio sobre o continente. 2 “That’s a hisbuscus, isn’t it, Aunty?” Jaja asked, staring at a plant close to the barbed wire fancing. “I didn’t know there were purple hisbiscuses2.” (ADICHIE, 2003, p. 128) e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 41 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda Como mais um exemplo das máquinas intencionais que engendraram os motivos da exploração empreendida na África, ainda em Home and exile, Chinua Achebe (2000, p. 60) sublinha o papel dos contadores de história – uma indireta alusão à literatura dos colonizadores – cujas narrativas são agenciadas por dominadores em potencial do território de um povo com o objetivo de ilustrar, em suas histórias, a incapacidade desse povo de cuidar de sua própria terra em virtude de uma “inferioridade” inventada. Achebe parte desse exemplo com requintes de parábola para, então, mencionar White Man’s Country, de Elspeth Huxley, no qual destaca um parágrafo em que a autora versa sobre a diferença entre africanos e europeus. Textos como o de Elspeth Huxley erigem-se em um lastro de discursos sobre o qual se sustentou a colonização da África pela Europa com ressonâncias devastadoras no imaginário sobre o continente ainda na contemporaneidade. O desconhecimento de aspectos socioculturais africanos e suas diferenças em relação à Europa foram usados pelos colonizadores como armas simbólicas erigidas em nome da exploração. Desconhecer significava a ausência de saberes sobre o continente e suas peculiaridades em reta linha com o desejo de permanecer à sombra do não entendimento para subjugar os africanos a um modo de conhecimento eurocêntrico. Com esse conhecimento, então, seria possível destituir os africanos de seu direito de colocar em exercício sua própria cultura e permitir aos europeus desbravar o continente, submetendo-o a um sistema colonial, de dominação, sobretudo, cultural, como enuncia Achebe (2012) em There was a country: […] Quando os primeiros europeus vieram para a África, eles conheciam muito pouco sobre a história e a complexidade do povo e do continente. Algumas pessoas daquele grupo se convenceram de que a África não tinha nenhuma cultura, nenhuma religião ou história. Foi uma conclusão conveniente, porque ela abriu caminho para todos os tipos de racionalizações para a exploração que se seguiu3. (ACHEBE, 2012, p. 54, tradução nossa) Apesar da distância temporal em relação aos primeiros colonizadores, ainda prevalece uma impressão sobre o continente que é nublada pelo predomínio de um olhar que enfoca problemas socioeconômicos, conflitos e uma história de subjugação. Nesse sentido, a riqueza cultural e a complexidade de países africanos são desconsideradas como se fosse possível equacionar de forma unívoca a polifonia de sua cultura. Desse modo, ainda há, comumente, leituras que exploram mazelas sociais, guerras civis, entre outras formas de 3 [...] When the first Europeans came to Africa they knew very little of the history and complexity of the people and the continent. Some of that group persuaded themselves that Africa had no culture, no religion, and no history. It was a convenient conclusion, because it opened the door for all sorts of rationalizations for the exploration that followed. (ACHEBE, 2012, p. 54) e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 42 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda violência, como se houvesse apenas histórias de derrotas em torno do continente. Embora essas derrotas existam no plano econômico e social, é preciso descortinar o outro lado das margens dessas histórias e reconhecer, em suas cores peculiares, matizes presentes nas estampas dos mais variados locais da cultura, reconhecendo as diferenças como constituintes da sua complexidade, em harmonia com a noção de pluralidade e, por extensão, riqueza. Muitas dessas cores locais e globais são contempladas ao longo da leitura de Purple hibiscus. A narrativa leva leitores distanciados de padrões recorrentes em textos de matriz europeia a encontrarem em suas páginas tons, sons, texturas e outros sentidos sobre matizes socioculturais africanos numa história de matriz africana, com a qual possam se identificar. Matizes socioculturais em trançados de uma história africana Cores locais misturam-se nos matizes de Purple hibiscus. Entre elas, destacam-se tons presentes em histórias familiares a outros lugares, denotando as marcas locais da narrativa, sem que ela se torne menos universal. Assim, cenas narradas no romance e a tessitura dos personagens permitem que africanos identifiquem-se com os cabelos trançados da protagonista, os choques entre crenças resultantes de variados grupos étnicos e do processo de colonização também em aspectos religiosos, pratos típicos que enunciam uma gramática culinária peculiar. Por outro lado, leitores de nacionalidades diferentes também veem representações do medo à espreita do respeito diante de um pai autoritário e as práticas dolorosas dessa autoridade, o despertar da primeira paixão na adolescência, os contrastes entre primos de status econômico desigual e os sentimentos engendrados por tais desigualdades, concebidos com trançados universais. No romance, Kambili é a protagonista e narradora – uma adolescente nascida em uma família abastada, tendo como patriarca um católico convertido de princípios radicais, chamado Eugene. A cena inicial do romance assinala um declínio na harmonia na família, simbolizado pela imagem de um missal sendo projetado pelo seu pai contra estatuetas de sua mãe, que estavam numa estante, porque Jaja havia faltado com atividades religiosas. Nela, o missal e as estatuetas partidas são metáforas do peso da violência de uma conversão religiosa radical, engendrada pela máquina da colonização, projetada contra as frágeis estruturas femininas, que anunciam as dores emocionais e físicas a que a protagonista e sua mãe serão submetidas. A violência de Eugene contra sua família estende-se a outras investidas agressivas contra a esposa e Kambili, culminando numa cena de espancamento, que leva a e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 43 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda protagonista ao hospital. Jaja, na cena descrita e ao longo do romance, pode ser interpretado como a representação de uma nova geração de homens contrários a práticas autoritárias e extremistas, pois não compactua com as atitudes do pai e mostra-se contrário ao exercício de sua autoridade contra a família. Na família, a reverência e o elevado respeito por Eugene são cultivados por Kambili, que segue, de forma passiva, as designações de seu pai e cadencia as suas ações de acordo com o grau de aceitação dessa proeminente figura paterna, resultando em um cerceamento de traços de sua própria identidade. Há diversas cenas em que os pensamentos da jovem adolescente são atravessados pelo desejo de aprovação paterna, como se ele fosse, em termos psicanalíticos, uma estrutura de superego imbuído do poder de avaliar e orientar todas as suas atitudes. As vias de liberdade da figura opressora do pai são abertas quando a personagem passa um período na casa de sua tia, Ifeoma – irmã de seu pai –, e, então, se apaixonou por um jovem padre, chamado Amadi, e teve a possibilidade de contemplar um ambiente familiar em que prevalece o apreço ao diálogo e a um modo de lidar com o outro marcado pelo respeito e o afeto, como define o tratamento de Ifeoma com seus filhos. Esses modos de convívio figuram, entre outras cenas e temas do romance, como as diferentes cores dos hibiscos que Jaja afirmou desconhecer em analogia às cores diferentes que podem ser contemplados em famílias, mesmo quando advindas de uma mesma matriz. Em contato com a tia e sua família, Kamibili e seu irmão convivem com padrões que escapam ao seu próprio contexto familiar, não apenas no tocante à liberdade que podem experimentar, mas, também, no que se refere a um diferente status econômico e social. Expõe-se, nas cenas na casa de Ifeoma, as contenções de despesas, devido à escassez de recursos financeiros, perfazendo um painel de pobreza que contrasta com a fartura da família de Kambili. No entanto, a narrativa demonstra que, mesmo diante de condições adversas, a união e o exercício de uma poética de afeto podem atenuar seus efeitos, ao passo que uma condição abastada não garante que a mesma harmonia e tessitura de amor componham o enredo de uma família. Nessas duas famílias, identificam-se, ainda, pontos fulcrais para refletir sobre o papel social da mulher na sociedade nigeriana contemporânea. O papel central exercido por Ifeoma e sua ocupação como professora universitária contrastam com a postura dependente da mãe de Kambili. Apesar de sua postura passiva em relação às tiranias do marido, em um momento e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 44 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda surpreendente da trama, nas partes finais da narrativa, Beatrice toma um rumo libertador quando decide envenenar o marido, levando-o à morte. Os variados matizes apresentados no romance são extensivos a aspectos linguísticos, como sugere a presença de palavras em igbo que denotam a coexistência dessa língua com o inglês e ilustra a diversidade étnica encontrada no país. De acordo com Achebe (2012), a variedade de grupos étnicos está além de duzentos e cinquenta e, em textos literários africanos em língua inglesa, essa diversidade é enunciada no uso de expressões regionais e palavras do igbo. O caráter profícuo dessa diversidade, por vezes, esbarra na intolerância ou em uma forma dicotômica de interpretá-la. Como desdobramento, debates em torno da África engendram polêmicas até mesmo entre autores de origem africana, a exemplo de Ngugi Wa Thiong’o, ao demandar uma literatura escrita em língua africana, em Decolonising the mind, e criticar autores como Achebe, que escrevem em inglês, reforçando, com isso, o imperialismo. Publicado em 1986, Decolonising the mind: the politics of language in African literature, Ngugi wa Thiong’o (2011) tece uma ampla discussão sobre o papel fulcral da imposição da língua do colonizador no processo de dominação, sobretudo cultural, dos países africanos. Para o autor, a língua não é apenas um veículo de expressão, ela traz em seu bojo a cultura, arraigada à história de seus falantes nativos, e uma das formas de colonização se firma por dominação cultural que é reforçada pela substituição da língua falada por um povo por outra imposta pelo colonizador. Nesse sentido, escrever em língua africana figura como uma estratégia de resistência contra processos colonialistas. De acordo com Ngugi, “[t]he domination of people’s language by the languages of the colonising nations was crucial to the domination of the mental universe of the colonised.” (THIONG’O, 2011, p. 16) Para respaldar esse processo de dominação através da língua, enuncia que países africanos (neo)colonizados foram categorizados de acordo com línguas europeias, a saber: países de língua inglesa, francesa e portuguesa (THIONG’O, 2011, p. 5), indicando o apagamento simbólico de um mapa linguístico delineado por três categorias pautadas nas línguas dos colonizadores. Com pesar, o autor constata que autores africanos, que não deveriam atuar no contorno desse mapa linguístico imperialista, se colocam a serviço dele ao inserirem-se nessas categorias voluntariamente. Entre esses autores, menciona Chinua Achebe. Em resposta a essa nota, Achebe (2009) escreve em The education of a British- Protected child, no capítulo “Politics and politicians of language in African literature” – uma alusão direta ao subtítulo do livro de Ngugi wa Thiong’o –, que, enquanto para o autor e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 45 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda queniano a questão das línguas europeias e nativas traduz-se num “either/or” (ACHEBE, 2009, p. 97), isto é, ou/ou (Tradução livre), que denota uma dicotomia entre usar ou não línguas africanas, para Achebe trata-se de uma questão de “both”, que significa “ambos”, ou seja, sem binarismos. O escritor nigeriano admite o impasse de ver-se diante da dualidade entre a língua usada para escrever e a língua materna, reconhecendo, contudo, que esse dilema não é peculiar aos africanos e acomete até mesmo sujeitos de outras nacionalidades, como os irlandeses. Entre outras consistentes argumentações, afirma que o inglês é usado na Nigéria em uma considerável parte de suas atividades e tem um papel central no país, não havendo motivos, portanto, para considerá-la como elemento alheio à cultura do seu país. Além disso, a sua língua nativa, igbo, é uma das três línguas mais faladas no país e não passa por riscos de tornar-se uma língua morta. Embora se reconheça que a língua traz em seu bojo aspectos culturais, deve-se considerar a forte presença de matizes nigerianos em textos de escritores como Achebe e Adichie, que não estariam possivelmente disponíveis para leitores em todo o mundo se fossem escritos em igbo. Deve-se considerar ainda que, em narrativas como Purple hibiscus, há muitas palavras do igbo, sobretudo quando usadas em contextos que indicam uma conotação afetiva, e, na sua leitura, identifica-se uma tessitura discursiva que substancia uma língua inglesa africana, sugerida por um modo de falar que traduz traços culturais. As pretensas marcas de um imperialismo linguístico atenuam-se, assim, através desses elementos e podem ser corroboradas pelo uso recorrente de expressões em igbo, a exemplo de “biko” (ADICHIE, 2003, p. 8), “nne” (ADICHIE, 2003, p. 10), entrecruzadas ao longo de todo o enredo. É ainda pertinente enfatizar que, mesmo escritos em uma língua mundial – o inglês–, ainda não há muitas versões de textos africanos em português ou outras línguas que permitiriam uma maior difusão das literaturas africanas em outros continentes, por exemplo, e, certamente, o leque de traduções disponíveis seria menor se os autores optassem por escrever nas várias línguas existentes na África. Prevalece na política sobre a língua ou, como afirma Achebe (2009, p. 101), “com a língua”, a noção de que, independentemente da língua em que se escreva, o continente precisa ter suas histórias contadas em linhas escritas por autores africanos, que possam trazer à baila, ao lado de seus problemas sociais, cenas do cotidiano que aproximem os africanos de sujeitos de outras nacionalidades ou abarquem as estampas de matizes peculiares de sua rica diversidade, como afirma Adichie em “Os perigos de uma história única”. e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 46 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda Pelo exposto, assinala-se que o objetivo de ler a literatura africana de língua inglesa é uma escolha política em reta linha com o que Chinua Achebe (2012) define como político, ou seja, promover estratégias que melhorem uma determinada situação. A atitude política nessa escolha reside em colocar a literatura africana em destaque e promover o diálogo com textos de autores africanos com o intuito de ampliar o espaço ainda limitado reservado a essa literatura no âmbito dos estudos literários. Apesar de já existir uma quantidade representativa de escritores africanos cujas vozes têm ressonância mundial, os espaços abertos para que ecoem ainda são reservados a uma literatura canônica, da qual esses escritores não fazem parte, predominante em estudos literários nas universidades, mesmo em países como Brasil, cuja identidade é trançada com matizes e matrizes africanos. Ao refletir sobre a importância da abertura de espaços para literaturas mantidas fora do retrato das instituições, estudos sobre a produção literária africana emergem como uma demanda em tons de necessária reparação de séculos de silêncio e de cristalização de imagens que escondem, atrás de suas névoas e terror, o colorido das cenas cotidianas de histórias familiares, de amor, luta, solidariedade, honra, cultivo de tradições, fé e sonhos – tons que compõem, por exemplo, a mistura de cores em Purple hibiscus. No romance de Adichie, as tensões, contradições e binarismos deflagram conflitos, mas, também, denotam a riqueza cultural do seu país. Por haver um equilíbrio de temas nas histórias narradas, Achebe e Adichie advogam a favor de uma literatura africana de matriz africana, mediante a qual seja possível redesenhar uma história sobre o continente em sua pluralidade, escapando, assim, de uma versão unilateral e monocolor sobre a África. É válido notar que, por vezes, em estudos literários sobre produções de escritores de outros continentes, sublinham-se contradições e uma dinâmica de reconfigurações identitárias que substanciam reflexões em torno de questões pós-modernas. Todavia, ao se tratar de literatura africana, ainda existe uma busca por desconstruir imagens estereotipadas atreladas ao continente, erigidas em discursos como os engendrados pelo cientificismo do século XIX, tendo como objetivo subjacente atenuar vias únicas de leitura. Entre os plurais caminhos descortinados por Adichie, lê-se, nas páginas do romance em foco, uma poética da escritora que (d)enuncia problemas sociais e econômicos de seu país, representados na parcimônia com que Ifeoma compartilha os alimentos, e, ao lado de cenas como essa, apresenta a contrastante fartura da casa de Eugene, que, entretanto, não garante a felicidade em sua família. Esses pontos e contrapontos são decalcados pelo olhar de Kambili quando, ao retornar da casa da tia, reflete sobre o jantar em sua casa: “o jantar era feijão e e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 47 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda arroz com grandes pedaços de frango. Enquanto eu comia, pensava em como cada pedaço de frango no meu prato seria cortado em três pedaços na casa de Tia Ifeoma4” (ADICHIE, 2003, p. 191, tradução nossa). O contraste retratado pelo olhar da adolescente revela duas faces de um contexto socioeconômico. Com isso, identifica-se um dos traços da poética de Adichie que faz parte de seu projeto ético e estético, como evidenciam outras narrativas e seus depoimentos, falas, entrevistas: demonstrar as diferentes Nigérias presentes nesse país. Assim, nota-se, ao longo do romance, que, se são representadas cenas de intolerância, violência doméstica, dificuldades financeiras, preconceito religioso, entre outras, há, também, afeto, respeito a tradições, esperança e alegrias. Nesse sentido, os sentidos se tornam plurais e constituem enredos que apresentam outros lados de uma história sobre o continente africano. Esses matizes ganham maior destaque em desenhos de narrativas de autores quando estes pertencem a ele. A necessidade de ler textos que tenham o continente como cenário e sejam escritos por africanos é abordada por Adichie em sua já mencionada fala no TED, nomeada “Os perigos de uma história única”. Nele, Chimamanda Adichie inicia suas reflexões com notas de cunho autobiográfico nas quais assinala a ausência de personagens representativas de seu lugar de origem, Nigéria, nas histórias que lia quando criança. A ausência de personagens com cabelos crespos, encaracolados, comidas típicas e hábitos de sua região estende-se ao imaginário de outros leitores, em cujos repertórios predominam textos de matriz e representações europeias sobre a África, delineando personagens com os quais leitores não se identificam. Franquear a autoria de histórias àqueles que fazem parte do território sobre o qual elas são contadas auxilia a desconstruir estereótipos e redesenhar o imaginário restrito acerca desse lugar. Através de um olhar sobre o país a que pertence, é possível flagrar cenas que desenham uma cartografia não alcançável àqueles que percorrem seus mapas pelas superfícies de conceitos conjecturados por leituras interessadas e pela não familiaridade. É válido ponderar que essa mesma não familiaridade é erigida por narradores que a acentuam ao privilegiarem imagens de princesas e príncipes de cabelos loiros e histórias com maçãs e neve, enunciando, disfarçada, porém veementemente, o lugar central destinado a um tipo de cabelo, clima, costumes, que em nada se afinam com traços de sujeitos nigerianos, por exemplo. 4 “Dinner was beans and rice with chunks of chicken. As I ate, I thought how each chunk of chicken on my plate would be cut into three pieces in Aunty Ifeoma’s house.” (ADICHIE, 2003, p. 191) e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014 48 V. 5 – 2014.1 –MOTA, Fernanda Diante das inúmeras narrativas em que são descritas personagens com tranças de mel, ao ler páginas de Purple hibiscus, uma leitora que nunca houvera encontrado uma personagem de cabelos afro em condição central na narrativa terá imediata projeção com Kambili e seus cabelos encrespados, em desalinho com as mechas sempre perfeitamente lisas das protagonistas dos contos de fadas. No romance de Adichie, lê-se uma cena emblemática na qual a autora expõe uma questão declaradamente política para a autora: “[...] Mamãe trançava meu cabelo. Ela sentava numa poltrona perto da porta da cozinha e eu no chão com minha cabeça encostada entre suas coxas5” (ADICHIE, 2003, p. 10, tradução nossa). Os cabelos trançados de Kambili sinalizam um hábito recorrente entre as mães de garotas em contexto africano ou afrodescendente – quando escapam às estratégias mercadológicas do alisamento. Essa cena poderia ser lida como um detalhe diante de outros que compõem o bordado de um texto literário, entretanto, ao assistir entrevistas como a concedida ao Channel 4 news, aprende-se que, para Adichie, o cabelo é uma questão política, associada a conceitos e a padrões de beleza difundidos pela mídia, que enaltecem o cabelo liso. Quando se pensa sobre tantas representações distanciadas de traços encontrados entre africanos ou afrodescendentes, concorda-se com a importância de haver mais personagens com as características de Kambili, incluindo, sobretudo, seus cabelos trançados. Ao lado de representações de traços físicos, a variedade de hábitos e costumes nigerianos no romance contempla aspectos socioculturais do país que apresentam uma Nigéria ainda pouco conhecida por leitores de outras nacionalidades. Entre esses aspectos, mencionam-se o “love sip” (ADICHIE, 2004, p. 8), ou seja, o gole de amor (tradução nossa), um hábito que consiste em compartilhar com pessoas com quem se tem intimidade um pouco do que se ama; e a dança “atilogu” (ADICHIE, 2004, p. 9), na qual as pessoas dão cambalhotas para caírem nos ombros do próximo dançarino; o almoço composto por “fufu” e sopa de “onugbu” (ADICHIE, 2004, p. 11), que circulam em torno de costumes como a sesta vespertina e o hábito de colher flores para decorar o altar de uma igreja. Os tons trazidos por Adichie em sua narrativa atuam na composição da aquarela de paisagens, temas, sujeitos, ações, que foge a uma ênfase em elementos exóticos e que estereotipam o continente. Na contramão dos estereótipos, a escritora dissolve os matizes mais locais em estampas associáveis a outras culturas, enredando na história de Kambili temas com os quais sujeitos dos mais diversos locais podem se identificar, sem deixar de refletir aspectos socioculturais do lugar onde a história se passa. 5 Mama plaited my hair. She would sit on an armchair near the kitchen door and I on the floor with my head cradled between her thighs5” (ADICHIE, 2003, p. 10) e-scrita Revista do Curso de Letras da UNIABEU Nilópolis, v.5, Número 1, janeiro-abril, 2014
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