ISSN 001l·m8 Revista de Ciências Sociais 2003/ volume 46 Neste número: Pacto Social e Cidadania Eleições e Federalismo IUPERJ ISSN 0011·3258 Neste número Atualidade d~ Raymundo Faoro Simon Schwnrtzmiln Concerlaç~o Sodal, Negociações Co[etivas e Flexibilid~d(': O Caso Italiano (1!1'::12·2002) Jorgf> R. B. Tapia A linguagem do Respeito. A hpf>riência Brasileira c o Sentido da Cidadania nas Democracias ModernH Dominique Vidal A Eleição Visivel: A Rtdt Globo Descobre a Politica cm 2002 Luis Fclipc Mig,,"'""'J,----,-----;,---_-,-~ A Experiência Eleitoral em Campos dos Goylam.es (1870·1889): Freqüência Eleitoral e Perfil da População Volante Neila Ferraz Moreira Nunes federalismo e Conflitos Distributivos: Disputa dos Estados por Rl'cursos Orçamentários Federais Cl'lina Souza Pm ler Jon Elsler: limites t Possibilidades da Explicação por \fmnismos nas Ciências Soci~is José Luil di' Amorim Ratlon Júnior e Jorge Ventura de Morais - - ----- Próximos números Sociedade Civil'"",-G=Jo'ba-'J"iz~aç-"o~-'R',-p-"-5-,"-d'o""-'C"'''-go~,'i'~5- Jean L. Cohen Multiculturalismo, Estado e Modernidade - As Nuanças em Alguns Paísl'S Europeus e o Debate no BusH Livio Sansone O Conteúdo d~ Produçlo lt'gislaliva Brasill'ira: leis Nac!al1ais ou Políticas Paroq-uiais? Paolo Rice! Pari idos Fracos na Arena Eleitoral e Partidos Fortes na Arena legisla!iI'J no Brasil: Conexão Eleitoral no Brasil Carlos Pereira e Bernardo Muellr€ --------------------- Internet, Democracia e Republica José Eisf>nbt:rs liberalismo: O Direito e o Avesso Carlos Este\'am \1artins Atualidade de Raymundo Faoro Simon Schwartzman R aymundo Faoro não foi o primeiro, no Brasil, a fazer uso dos con ("",ilas de Max Weber, mas a publicação de O:, 001105 do Poder, pela Editora Globo, de Porto Alegre, em 1958, teve uma influência que seus iHltecessores não tiveram. Antes dele, Sérgio Buarque de Holan da, que havia estudado na Alem<lnha, fez u$odoconceito de patrimo nialismo em Raízc~ do Bmsil, publicado em 1936, para caracterizar o "homem cordial" brasileiro, que, na \'ida pública, não distinguia o in teresse privado do interesse coletivo. Apesar de tantas intuições bri lhantes e de dezenas de reedições, foi uma tentativa de definir a per sonalid<1dc ou o cartíter do "homem brasileiro", um lipo de sociologia estéril que ele mesmo abandonarin mnis tnrde, como mostra Evaldo Cabral de Melo no posfácio à edição da Companhia das Letrasde 1995 (Holanda, 1995). Nos anos 40, Economia e Sociedade, de Weber, foi tra duzido ao castelhano por José Medina Echavarría (Weber, 1944) e, a partir dessa edição, a análise clássica weberiana sobre a burocracia Ta cionallegal seria apresentada ao leitor brasileiro por Alberto Guerrei· ro R<lmos, em artigo na revista do Departamento Administrativo do Serviço Público - DASP, Revista do St'rl'iço Público, como um texto de teoria administrativa (Ramos, 1946), e nâo teria maior repercussão. DADOS -Rrf!i~!a de Cién:;i,1~ Sociais, Rio de J.lneiro. Vol. 46, n~ 2. 2003, pp. 207 a 213. 207 Simon Schwarlzman A primeira edição de Os DOI/os do Podq também passaria quase des percebida, talvez, diria Faoro depois, pela "perplexidade que alguns leitores da primeira edição demon:;traram, ante Un1il terminologia aparentemente bizarra", que a segunda edição busc<lria atenuar (Fao ro, 1975, "Prefácio à segunda edição"). Neste prefácio, FaofO advertia que "l--.] l'ste livro nào segue, apesar de seu próximo parentesco, a linh!l de pensamento de Max \Veber. Nào raro, as sugestões weberianas se· guem outro rumo, com novo conteúdo e diverso colorido. 1k outro lado, o cns~ io se afasta do marxismo ortodoxo, sobretudo ao sustenta r a autonomia de tlma camada de poder, nào diluída numa in· fra-estrutura esqtlemMica, que da ria conteúdo económico ii fatores de outra índole" (illidrm). o que tornou o livro obscuro dos ilnos 50 umil referência obrigatória a partir dos anos 70 foi que ele ajudou a questionar o marxismo conven cional que, sobretudo a partir dos trabalhos do famoso grupo de leitu ra de O Capilal da Universidade de São Paulo dos anos 50, e dos traba lhos de Cnio Prado Jr., dominou as ciências sociais brasileiras nos anos seguintes (Sorj, 2001, cap. 11:13-29). Simplificando. segundo ii versão milrxista, o Brasil havia sido, em sua origem, uma sociedade rural, "semifeudal", que ainda n50 havia conseguido criar uma bur guesia nacional capaz de desenvoh'er a economia do país, criando um capitalismo moderno que trouxesse consigo uma classe operária também moderna, que eventualmente implantasse no país o socialis mo. Na luta entre o latifúndio tradicional e a burguesia moderna, no contexto da Guerra Fria, o latifúndio $erÍ<l um aliado do imperialis mo, mantendo o país dominado e subdesenvolvido, incapaz de ser superado por uma burguesia nacional que não se assumia, um prole tariado incipiente e um campesinato subjugado. Tudo deveria acon tecer e se explicar pela lula de classes, e o Estado não seria mais do que o executor e defensor dos interesses das classes dominantes. O pro blema, no Brasil, era que as classes nunca se organizavam nem agiam como deveriam .. Faoro colocoll em xeque essa interpretação em dois pontos funda mentais. Não é verdade, mostrou ele, que o Brasil tenha tido um pas sado feudal, ou semifeudaL com o predomínio do campo sobre as ci dades; ao contrário, o que sempre predominou foi a forçil do poder central. N50 há dúvida que as grandes distâncias, o isolamento das 208 Alualidade de Raymundn Fanro propriedades rurais, os recursos produzidos pela posse da terra e pe las plnl1tntiol1s d(.' élçücar, tudo isto levava ao fortalecimento do poder local. Estes eram, no C!ll,mto, "Efeitos inevitávcis. dc<offentes do isolamento geográfico. da cxten sdoda Ct):,ta, capa7..e~ rle St'rJr nüdcos de ilutoridade sodJ I. scm quc a admimstração real permitisse a consolidação da autonomia política [. .. 1. Tudo está longe do feudalismo, d,l aristocracia territorial, dos m(marca~ latifundi,irw~, Oltw~ visilantes, dCSC(lnfi~d()s cuid,l\'am para queo mundo americano não esquecesse () cordão umbilical, que lhe transmitia a força de trabalhoe lhe absorl'ia ,1 riqueza O rei estJva att'nto ao St'u nt'sôcio" (F,l()m, 1975, \'01 1: 133)_ Essa é a sitl1açi'lo criada desde o inicio, com as capitani<ls hereditárias, e que continuaria pelo período imperial, (om uma forte presença dos centros urbanos, onde se instalava o podt'r do Estado, de cujo bene pl,ícito ú poder dos donos da terra dependia A segunda tese de Faoro, associad,\ a esta, é que o poder político ni'lo era exercido nem para ater1der aos interesses das classes agrári'ls, ou latifundiárias, nem à'lueles das classes burguesas, que mal se haviam constituído como tal. O poder polítko era exercido em causO! própria, por um grupo social cuja característica era, exatamente, a de dominar a máquina política e administrativa do pais, através da qual fazia de rivar seus bem.'(icios de poder, prestigio e riqueza. Era, em termos de Weber, Q "estamento burocrático", que tinha se originado na forma ção do Estado português dos tempos dos descobrimentos, senão an tes, e que se reencarnaria depois naquilo que ele (hamaria de o "pa tronato político brasileiro". O estamento burocrático tinha tido sua origem no que Weber denomimlva de "patrimoniéllismo", uma form<l de dominação política tradicional tipica de iOiiOtemilS cenlralizados que, na ausência de um contmpl'so de descenlralizélçiio politica, evo luiria para formas modernas de patrimonialismo burocráti co-autoritário, em contraposição às formas de dominação racio nal-legal que predominaram nos países capitalistas da Europa Oci dental. A contribuição de faoro aqui vai além da utilização dos con ceitos weber ia nos e da interprctaç<'io que deu do sistema político bra sileiro: ela consiste, fundamentalmente, em chamar a atençi'lo sobre a necessidade de examinar o sistema político nele mesmo, e não como simples manifestação dos interesses de classe, como no marxismo convencional_ 209 Simon S~hwartzman Assim, Faoro foi o precursor do uso da abordagem weberiana para entender o Brasil, que se tornou cada vez mai~ importante, na medida em que as limitações das explicações marxistas foram se tornando ób vias. b curioso no entanto que, apesar do grande uso que fazia da his tória, Faoro tivesse uma visão totalmente a-histórica do fenômeno que estudava, e talvez seja nisto que ele se afastava, como ele mesmo dizia, do que seria uma interpretação propriamente \. ..· eberiana da história política brasileira. "De D.1oão I a Getulio Vargas, numa via gem de seis séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações fundamentais. aos desafios mais profundos. à traves sia do oceano largo", diz ele no capitulo final de sua obra (idelll, vaI. 2:733).1\0 longo dos séculos, o país transformou-se, novas tecnologi as surgiram, o mundo mudou, mas o estamento burocrático mante ve-se imutável: "Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelha mento político - uma camada social, comunitária embora nem sem pre articulada, amorfa muitas vezes - impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeá\'el de comando" (idem:737). "Deitou-se remendo de pano novo em vestido velho, vinho novo em odres velhos, sem que o vestido se rompesse nem o odre rebt"ntasse" (idem:748). Para Faoro, portanto, a história servia para entender a genese de uma enteléquia que resiste a tudo, uma essência que jamais se apaga. Para Weber, ao contrário, estudar a história não servia somente para iden tificar a origem de determinados conceitos, mas sobretudo para en tender como diferentes sociedades e grupos humanos buscam seus caminhos, resolvendo dilemas e tensões, e optando por distintas for mas e estilos de vida no 5mbitodc um conjunto relativamente restrito de alternativas. Na experiência brasileira, as análises de Faoro sobre o papd histórico da tradição patrimonial-burocrática portuguesa e seus prolongamentos no pais abrem caminhos importantes de pes quisa, em termos de suas transformações, choques e conflitos com ou tras tendências também presentes, como as docapitalismo moderno€' as derivadas da política de massas (Schwartzman, 1988). Se existem alternativas, cabe ao pesquisador, como cidadão, identifi car as diversas tendências e tratar de ajudar a abrir os caminhos que estejam de acordo com seus valores. Na vida política, diria Weber, há uma ética da responsabilidade, em que não valem somente as inten ções, mas também a c<lpacidade do indivíduo de entender o mundo em sua complexidade e de assumir a responsabilidade pelas conse- 210 Alualidade de Raymundo Faoro qüências dos seus próprios atos. Por outro lado, se a realidade é imu tável, só existem duas opções, o conformismo ou a postura ética de princípios, de oposição ao que seja percebido como o mal, indepen dentemente do sucesso que se possa ter. A segunda edição de Os Do lias do Poder veio à luz em pleno período de dominação política autori tária no Brasil,em que as duas éticas se confundiam. Deste então, e até o fim de seus dias, Raymundo Faoro assumiu e manteve a ética de ° princípios, ao combater autoritarismo em todas as suas formas, evi dentes ou ocultas, mesmo acreditando, como acreditava, que não ha veria como mudar cinco séculos de história. Os problemas do Brasil de hoje não são mais, no entanto, os do poder absoluto do estamento burocrático, mas sim, em boa parte pelo me nos, decorrentes da incapacidade de o Estado exercer o poder que lhe é delegado, democraticamente, para governar em benefício de todos. O estamento burocrático continua existindo, mas não é o mesmo dos tempos de D. João VI, D. Pedro II, Getulio Vargas, Ernesto Geisel e José Sarney. Nesse sentido, a cruzada de Faoro contra o autoritarismo perdeu muito de seu apelo ede sua atualidade. Mas ele teve, sem dú vida, seu momento e seu papel. (Recebido para publicação em maio de 20(3) 211 Simon Schwartzman REfERENCIAS BIBLIOGRÁfiCAS I'AORO. R,lymundo. (1':151:». O,; 00110; do p(lJ. .... Forlllnçd".ln rol/relia/o l'riíliw fjr.1~jlri",. Rio de J~nc'iro /Porto Al<'gr(> /São Paulu, I:::uilur~ Glubu. _ . (1975). Os D('II(>s dr flod"" FDrm<1ç~n .ln P,,'rOI/91(lI'<'!ftia) Bm • .'ll'lro (21! ('do f('"ist;l f' numf'ntad.l). Porto Ak'gre/SJo I'Julo, EditorJ Clobv/Editora d~ L.:ni\'l:~idJde lte %0 PJulu. HOLANDA. Sérgio Buarqu{' de. (1995), Raizej do /jm~lf. RiodE' Jaol.'iw, CompanhiJ d,l~ Lctra.~, RAMOS, Alberto Gucrrf'lro. (19~6), "A Su..:iologia u. .. Ma)( \Vcbcr _ sua lmponill1ciil paro. I> Tcon~ e n Pr.!!;." d" Adl11;n;~\,,'çâo"_ Re,';,I" ,1" S,.,.,'i~" I'Iit>/in., n!!~. pp. 129·1."9. SCH\VArnZMAN, S,mon. (1988), B./,.'s .ft' ;'\'I!(lnlariSIIlD Dmsi/rim. Rio dt' Janeiro, Edi· tura Cilml'u~ (htlp:! /www.schwart7m.ln.org.br/silllon/bases/bascs.htm). SORJ, IJ.crnardo. (20m l, 1\ COl/)cln;çiio jllf"f,'(,'1I1l1 dll Jlr~"i/ ClII!CIIIII(>r;ille(l. Rio de Janeiro, Z.lhar Editor. \VF.JlFR, 'lax. (19~~), C(iP'OIIll;l.1I SOf/,',ia,1 (TrJdu7ido por Jo~é II.kdll1J EchJ\'nrria, J. Rour~-r.lrdl,l. E. GarcíJ Má)'I1E!7., E. Im;Jz c J. rerratC'r "IIH,'). i\léx,C<.l, I'ondo de Cultur<l [<.:onÓmiról. 212 Atu.llidade de Raymundo F.loro ABSTRACT Tlu' Curmlf Rdl'{J(!/Iír Of Rlly/Jllllldo Fnoro's Work Rilyn1t1ndu Filum, d ... n~il:-.t!d in 2003, WilS une uf the piOlwcr~ i n the use of M<lx \Veber's sociology for intcrprcting the formation af th., Brazilian poliliC<l! system. ln O~ DOllos do Pod.., (Tlle OWl1ers ofPOlfer), fir~t publbhed in 1958, Faoro Jallnchl'd lhe Ihesis Ihat e\'cr since ils colonial pcriod Brazil has ai ways been dominilted b)'" "bllTt',lucratic str,Hum" with its origins in lhe peculiar characlcristics of Ih/.' I'ortllguese state, Ihus contradicting lhe prcviously dominanl vicw Ih,ll BTa ,ii hdd cxpcricnccd a felld,lJ p,l~1 dominaled by Irllditiono! ruwl powl'r. H ... th,,>o opcned lhe- ",a)" for lhe Hrazilian polllkal system lo be studied and inlerprell'd in terms of its o\\"n polllical and institutional ~',Hiablcs and no longer merel)' in lerms of elass intcrcsts and conflicts. However. according lo FaOTo, thls domination by the bUTcilucriltic slrdlum was ii perenni,ll, immlllable chara<:terislic oE [3razll, a v;cw lha I cndcd up limiting his an<llr:;c~, cvell as hc bt!c,\me an activist against ali iorms oí Brazili,ln authoritMi:mi::.m. Key words: Ra}"mundo Famn; burcauaatic stratum; O~ D01IO~ do Poder RÉS UM É RIlyll1l11l1fo FaoTu, 1/!! PCIlSI'UT Arlucl R<lymundo Faom, décédJ cn 2003, fui 1\111 des prcmicTs à se ~t:'r\'ir de la sociolo!;ie de MilX Wt'bcr pOUT interprélcr la forma tion du systemc plllitiq ue br6i1kn. Dal\s son ou\'ragc 05 DOlros do poa,., (L,.~ Ma/Ires a/l PO/lvoir), paru ('n 195H. Famn avançail la thcse selon laqlldle II.' Br(\sil avait toujours dé, d\'Pui~ sa périodt: coloniale. sous remprisc d'un ca:.lc bllTeaucraliquc qui pu i~e ~cs origines dans lc <"a raclere pa rtiCLllicr dI' I"t::tat port ugai::., cc qui csl i'I l"oppo:.é do: ridéc dominanle jusqu'a!ors, que Ic Brésil aur,lit eu un pilssé félld,ll dominé p.n un pou\'oir rurill trild itionneL Famo il ainsi oU~'ert la \'oie ii une IIltcrprétation du s)'stemc pol itique brê"ilicn $01.1$ Llngle de ses proprc$ \'ari<lbles p"litiques ct institutionm'lIIl's p!ulôt que d,ms une optiq~le axêc exclusivcmenl sur lcs intérêt:. l!! conflits de classe. Pour Faoro, la prJdominance du C<lste burciltlCTiltique n'esl qu'unc caractéristiquc brésiliennl' éternellc ct immutablc, ilffirmiltion qui a rétréci son pou\'oir d'<lnalyse et I'a trilll$formé cn militant acharné CQntre l'alltoritilTism(' brésihl'n sous toutes ses formes. Mols-clé: R ... ym lindo Faoro; Cilstc nu reaucralique; O~ DOI/O!' do Porli'r 213