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Asfalto Selvagem II: Engraçadinha, Seus Pecados E Seus Amores (Depois Dos 30) PDF

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k NELSON RODRIGUES ASFALTO SELVAGEM - II ENGRAÇADINHA S E U S A M O R E S E S E U S PECADOS (DEPOIS DOS 30) © 1980 by Nelson Rodrigues Direitos adquiridos para a língua portuguesa pela EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A. Rua Maria Angélica, 168 — Lagoa — CEP: 22.461 — Tel.: 246-8066 Endereço Telegráfico: NEOFRONT Rio de Janeiro — RJ Capa JADER MARQUES FILHO Revisão JORGE URANGA hhttttpp::////ggrroouuppss..ggooooggllee..ccoomm//ggrroouupp//ddiiggiittaallssoouurrccee FICHA CATALOGRÁFICA CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Rodrigues, Nelson, 1913- R614a Asfalto selvagem-II : Engraçadinha : seus amores e seus pecados, depois dos 30 / Nelson Rodrigues. — Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980. 1. Romance brasileiro I. Título II. Título : Engraçadinha : seus amores e seus pecados, depois dos 30. 80-0456 CDD-869.93 CDU-869.0(81)-31 OBRAS DO AUTOR TEATRO Mulher sem Pecado — 1941 Vestido de Noiva — 1943 Álbum de Família — 1945 Anjo Negro — 1946 Dorotéia — 1947 Valsa n.° 6 — 1951 A Falecida — 1953 Senhora dos Afogados — 1954 Perdoa-me por me Traíres — 1957 Os Sete Gatinhos — 1958 Boca de Ouro — 1959 Beijo no Asfalto — 1960 Otto Lara Resende ou Bonitinha, mas Ordinária — 1961 Toda Nudez Será Castigada — 1965 O Anti-Nelson Rodrigues — 1974 A Serpente — 1979 ROMANCES Meu Destino É Pecar — 1944 Minha Vida — 1946 com o pseudônimo de Susana Flag Escravas do Amor — 1945 Núpcias de Fogo — 1947 * A Mulher que Amou Demais — 1949, com o pseudônimo de Mirna ** O Homem Proibido — 1951 * Publicado no Diário da Noite de 18.7.49 a 18.8.49 *** A Mentira — 1953 Asfalto Selvagem (2 volumes) I. Engraçadinha dos 12 aos 18 — 1960/61 II. Engraçadinha depois dos 30 — 1960/61 Elas Gostam de Apanhar — 1964 O Casamento — 1966 CONTOS A Vida Como Ela É (100 contos escolhidos) (2 volumes) — 1961 CRÔNICAS Memórias de Nelson Rodrigues — 1967 O Óbvio Ululante — 1968 A Cabra Vadia — 1970 O Reacionário — 1977 ** Publicado na Última Hora de 31.7.51 *** Publicado no Flan (suplemento da Última Hora) em 1953 CAPÍTULO XXXIX Vinte anos depois, aqui, no Rio, na esquina de Ouvidor com Avenida, um senhor idoso esbarra numa menina, que vinha em sentido contrário. Ela teria o quê? Digamos uns 15, 16 (ou 14). No seu uniforme colegial, meias soquete, saia azul, blusinha creme, tinha um olhar atrevido, um jeito livre e ousado de erguer a cabeça e projetar o perfil e, ao mesmo tempo, uma boca que parecia sempre prestes a beijar. Já o senhor lembrava os velhos nobres da antiga República, com um pouco de Epitácio, de Frontin e um pouco, também, do Adolphe Menjou, dos filmes. Talvez fosse mais Adolphe Menjou do que Frontin, do que Epitácio. Houve o esbarrão ligeiro e acidental e o velho, tocando no chapéu com a sua distinção de República Velha, inclinou-se: — Perdão. A menina sorriu-lhe e ia passar adiante, quando o senhor travou-lhe o braço: — Um momento. A calçada era estreita e os dois, ali, impediam a passagem. O sósia de Adolphe Menjou puxou-a: — Menina, como é seu nome, minha filha? Sem timidez nenhuma, fez um espanto divertido: “Por quê?” O chiclete, que mascava, dava-lhe aos lábios uma mobilidade a um tempo provocante e vagamente cínica. O outro pálido e trêmulo, explicava: — Pelo seguinte, meu anjo: eu conheci, há muito tempo já, uma pessoa que, naquela época, devia ter sua idade e era o seu retrato, igualzinha, ouviu? Igualzinha a você. A menina olhou, de cima para baixo — e sempre mascando chiclete — a mão que ainda segurava o seu braço. Sôfrego, ele baixava a voz: — Se não fosse o tempo, que já passou, eu diria que você era ela... Mas escuta: por acaso, sua família não é do Espírito Santo? — Sim. O homem queria ver, ali, um milagre. Milagre, fatalidade, sei lá. Atarantado, diz, para conquistar-lhe a confiança: “Eu podia ser teu pai. Sou o juiz Odorico Quintela.” E, agora que já se apresentara, pergunta, com uma cintilação no olhar: — Como é o nome de sua mãe? Ele tinha vontade de pedir-lhe: “Minha filha! Cospe isso! É uma vergonha que a menina brasileira ande mascando chiclete! O chiclete dá um jeito de prostituta.” A pequena responde: — Engraçadinha. O juiz recua, ligeiramente. Repete, num deslumbramento: “Engraçadinha?” Balbuciou: — Vamos andando, vamos sair daqui! Você é então filha de Engraçadinha! Oh, meu Deus. E seu pai chama-se Zózimo? Perfeitamente, Zózimo! Que coincidência! Caminhavam pela calçada da Avenida. Chamava atenção aquele senhor, com seu bigode de Adolphe Menjou, uma distinção inatual de Frontin e de Epitácio (e por que não do Manuel Vilaboim?) e aquela menina de graça leve, quadris vibrantes e uma petulância meio perversa. Debaixo do relógio do Jornal do Brasil parou um instante para cumprimentar dois rapazes de Minas, o Wilson Figueiredo e o Oto Lara Resende, ambos jornalistas. O Dr. Odorico, tornando a voz mais cava, e com um jeito quase lúgubre, disse: — Muito calor! — e repetiu — muito calor! E passou adiante, no fundo envaidecido da adolescente companhia. Ele sentia que eram muito olhados e imaginava que os dois rapazes haviam de estar fazendo as deduções mais torpes. Pensava: “Como é que, depois de tantos anos, venho encontrar, na Rua do Ouvidor, a filha da mulher que, ainda hoje...” Sempre segurando o braço da menina, ia dizendo, tumultuosamente: — Seu nome é? Silene? Ah, Silene. Pois olha: minha filha, fui muito amigo, amicíssimo de seu avô e até deu-se uma passagem muito interessante... — Vovô Arnaldo? E ele: — Arnaldo, Dr. Arnaldo. Uma grande figura, um homem de bem! Não há mais homens de bem. Mas a passagem foi a seguinte: quando ele morreu, e moço, morreu muito moço!, eu fiz o discurso do enterro... E dizem que eu fui bem, até muito bem! Em cima do meio-fio, na esquina da Rua Sete, esperando a abertura do sinal, Silene olha o pequeno relógio de pulso. Tem a exclamação: “Tarde!” Ele se precipita: — Eu levo você! De táxi! Onde é que você mora? — Longe. — Mas onde? Suspira, com vergonha, asco de subúrbio: — Vaz Lobo. Desta vez, o espantado foi o juiz. Repetiu: “Vaz Lobo?” Nunca em tal ouvira falar. Cada vez estava mais convencido de que o chiclete é tão deformante que, no fim de certo tempo, uma menina fica com uma boca ambígua de prostituta. “Boca ambígua” pareceu-lhe uma expressão incisiva. Quando o sinal abriu, Dr. Odorico decidiu que, naquele dia, veria, de qualquer maneira, Engraçadinha. Teve um assomo de rapaz: — Levo você. O diabo é descobrir um táxi. Mas arranja-se. Eram cinco horas! Ver, de novo, Engraçadinha, depois de 19 ou 20 anos! Entre parênteses, achava que a verdadeira Engraçadinha não era a própria, mas a filha, aquela menina que, ao andar, punha nos quadris uma palpitação de egüinha fremente. Lado a lado com Silene, tinha vontade de passar-lhe a mão pelos cabelos e de lhe cheirar a nuca que devia estar um pouco úmida de suor. Finalmente, aparece um carro. Silene avisa: “Livre”! Aquele velho (não tão velho assim; uns quarenta, quarenta e poucos, talvez) arremessou-se, com uma elasticidade de rapaz. E mais: na ânsia de segurar aquele táxi único e surpreendente, pôs-se na sua frente. O chofer teve que frear. Dr. Odorico chamava Silene: — Vem. O chofer amarra a cara: — É pra longe, cavalheiro? E o juiz, fazendo a menina entrar, sucinto e inapelável: — Vaz Lobo. O outro pula: — Vaz Lobo? Mas oh nossa amizade! Já o pânico do motorista faz o juiz imaginar que Vaz Lobo era para lá de Campo Grande. O profissional continuava: — Está na minha hora! Meu chapa, tenho que entregar o carro! — e repetia: — Está na minha hora! Dr. Odorico sentara-se, maciçamente, como se fosse, não um juiz isolado, mas todo o Poder Judiciário. Depois de piscar o olho para a menina, puxa uma carteirinha e só falta enfiá-la na cara do chofer: — Meu amigo, o senhor vai me levar, sim! O senhor está falando com uma autoridade! — e pergunta, com sarcasmo: — Sabe ler? Então, lê! Lê, rapaz! Juiz, compreendeu? Podia lhe prender! E nem mais uma palavra! Vira-se para a menina (cada vez mais parecida com a Engraçadinha de 20 anos atrás, ou seja: a Engraçadinha do cemitério, a Engraçadinha de vestido molhado e os dois pequeninos seios de sonho). O chofer arrancando para o longínquo Vaz Lobo, quis justificar-se, mas o Dr. Odorico varreu-lhe as desculpas: — Não quero conversa! Exagerava a autoridade para deslumbrar a pequena. O motorista calou-se. E, então, depois de ter exercido o Poder Judiciário, o ex-promotor de Vale das Almas vira-se para Silene e faz- lhe perguntas. Com uma naturalidade muito terna de avô tomou-lhe a mão. Ao saber que a menina tinha apenas 14 anos (aparentava mais), virou-se com uma surpresa delicada. Pensou que, na mulher, certas idades constituem, digamos assim, um afrodisíaco eficacíssimo. Quatorze anos! Fez para si mesmo um comentário que ele próprio achou irrisório, extravagante: “Todas as mulheres deviam ter 14 anos!” Ao mesmo tempo, lembrou-se dos jornalistas que cumprimentara, na porta do Jornal do Brasil, o Oto Lara e o Wilson. Este era apenas jornalista e poeta. Mas o Oto fazia uns romances, isto é, uns contos um tanto livres e, mesmo, excitantes. Talvez ao vê-lo com uma colegial (e tão linda), o rapaz resolvesse metê-lo na sua ficção irreverente. O Dr. Odorico já se via na pele de um personagem que, sob a proteção da toga, caçava menores à porta dos colégios — assim consumando os seus miseráveis apetites. “Bom rapaz, o Oto, mas um tanto desorientado”, concluiu. No fundo, a idéia de se ver retratado como um sátiro do Judiciário (e com a Engraçadinha por vítima) fez-lhe um grande bem. Houve um momento em que o Dr. Odorico desesperou-se. Perguntou a si mesmo, de olho no taxímetro: “Mas será que não chegamos nunca?” O preço da corrida devia ser uma dessas coisas astronômicas. Finalmente, Silene apontou: — Ali. O relógio marcava 150 cruzeiros (ladrões!). E, por um momento, enquanto o chofer reduzia a marcha, e já corria junto ao meio-fio, ele esqueceu-se do taxímetro. Deus, o destino, o diabo, ou que nome tenha, colocara novamente Engraçadinha (e a filha) na sua frente. Naqueles 20 anos, tinha acontecido tudo. Ele se casara duas vezes. A primeira mulher, que morrera, era uma débil mental; e a segunda, professora pública, parecia-lhe, textualmente, uma víbora de túmulo de faraó. Dr. Odorico desceu na frente e oferecia a mão à Silene. Baixa a voz: — Espera. Quero entrar contigo — e completa: — vou fazer uma surpresa. Dirige-se ao chofer com uma surda irritação de pagador: — Rapaz, podia ter te metido na cadeia! — pausa e faz menção de puxar a carteira: — Quanto é? O outro, com as orelhas incendiadas, fez um gesto: — Doutor, paga quanto quiser! Dr. Odorico larga a carteira no bolso: — Obrigado, amigo! Até a vista! E olha: não faça mais isso! Desgovernado, o chofer arrancou, sem levar-lhe um tostão. A casa pareceu ao juiz um ‘pardieiro imundo’. Entra com Silene que, de minuto a minuto, parecia ficar mais linda. Na porta da sala, Dr. Odorico estaca: via D. Engraçadinha ligando um pequeno aparelho de rádio; e, sentado, num canto, de camisa rubro-negra, sem mangas, chinelos, Zózimo. E, então, da porta, Dr. Odorico Quintela ergue o braço e declama, como, há 20 anos, no cemitério: — Amantes? Nunca as teve!

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