AS POSSIBILIDADES DE UMA SOCIOECOLOGIA EM AMARTYA SEN João Vicente R. B. C. Lima1 2 Resumo. O presente paper debate a noção de sustentabilidade à luz da discussão conduzida por Amartya Sen sobre desenvolvimento humano e qualidade de vida, buscando redimensionar o papel e o valor do humano em meio aos desafios do desenvolvimento. O texto tenta refletir sobre a contribuição para uma socioecologia nas obras de Sen, e do sentido intelectual presu- mido de ser um antídoto às abordagens economicistas que codificaram a natureza como “reino das mercadorias” ao mesmo tempo em que cercaram o componente humano de profunda aridez de significado e valor explicativo. Palavras-chave: sustentabilidade, desenvolvimento, socioecologia. The possibilities of a socioecology in Amarthya Sen Abstract. This paper discusses the notion of sustentability based on Amarthya Sen’s discussion about human development and quality of life, seeking to reorganize the role and the value of the human being among the challenges of development. The text tries to reflect about the contribu- tion for a sociecology in Sen’s works, and of the presumed intelectual sense of being an antidote to the economic approaches that codified nature as “the kingdom of goods” and at the same time surrounded the human component with a profound lack of meaning and explicative value. Key-words: sustentability, development, socioecology. 1 Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor adjunto do Departamento de Sociologia e Ciência Política da Universidade Federal de Santa Maria/RS. 2 O autor, para a concretização deste trabalho, recebeu apoio material e financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq. Pensamento Plural | Pelotas [03]: 121 – 145, julho/dezembro 2008 Pensamento Plural 1 Introdução O conceito de desenvolvimento sustentável (DS) expressa uma equação complexa da organização da vida, como categoria que denota um novo modelo de inserção dos homens no mundo natural com o fim de sua reprodução material. E é uma medida com grande impacto no jogo das identidades e representações das realidades (natural e hu- mana) e das novas condições que orientam as ações dos agentes sociais em relação a essas realidades. Os homens motivados a pensar as políti- cas que permitem a construção de uma sociedade sustentável, enten- dem que esperam por um novo mundo e que este projeto é urgente. Todavia, os caminhos que levam à sustentabilidade são peno- sos, e alguns indicadores mostram os graus de dificuldade para a reali- zação do esforço a ser empreendido. Há uma diversidade de tipos humanos com suas teorias especiais da ordem do mundo, da vida e da natureza, muitas vezes incompatíveis, colocados diante da exigência de um certo nível de contato entre os atores. O início do esforço dialógi- co está na crítica da lógica da ação econômica que, no fazer e no modo de fazer, denuncia o que se é em um sentido não estritamente econô- mico, e que permite uma aproximação do projeto de um mundo novo. Assim, a operação de mecanismos de organização econômica que pre- dam os recursos naturais ultrapassam a capacidade e o tempo de fun- cionamento da realidade biofísica, no intuito de realizar a função econômica, que é intrínseca à vida humana. Os homens modernos e suas mentalidades olharam a natureza e viram-na como algo diferente de si próprios. Isto serviu para tomar viável um curso de ação segundo uma estrutura de sentimentos dirigi- da à natureza tomada como outra coisa, separada. O campo de seus poderes tinha à mostra amplas técnicas de intervenção. Aquela nature- za — respondeu ao chamamento e deu-lhes produtividade. Os senti- mentos iniciais que subsidiaram as ações foram, dessa maneira, refor- çados. Agora, num tempo presente, a natureza como suporte da vida, mostra-se como ente-obstáculo à produção futura da realidade dos sonhos humanos. Há uma paisagem real de uma natureza-objeto que não pode suportar as práticas que exaurem suas reservas e processos gerativos. No caso brasileiro, o difícil mundo dos acordos humanos se atualizara no formato dos desarranjos sociais e econômicos — pobreza, êxodo rural, crescimento descontrolado das metrópoles, proletarização etc. Esse projeto de intervenção na natureza logo apresentou traços declinantes, mesmo na parte do projeto de intervenção que parecia 122 Pelotas [03]: 121 - 145, julho/dezembro 2008 invencível: são conhecidos os fenômenos da deterioração dos solos produtivos, devastação das florestas, desertificação dos solos, contami- nação das vertentes híbridas, para mencionar alguns indicadores liga- dos à agricultura e à qualidade vida das populações urbanas. Os desafios são enormes quanto ao esforço de harmonização dos princípios da ação econômica, da diversidade cultural, das forma- ções políticas e do delicado tema dos limites do mundo biofísico. No entendimento de alguns, uma teoria do desenvolvimento sustentável encontra-se ainda num estágio precário, permeado por grandes preten- sões, mas com pouca força analítica. O conceito de desenvolvimento sustentável apresenta um grau de convergência e consenso, menos pela força analítica que reúne e mais pela ausência de marcos teóricos sufi- cientes (BRÜSEKE, 1997). Há uma grande lacuna que abriga a todos num movimento cujas aspirações são simpaticíssimas, mas ainda inci- piente. As barreiras que se opõem à instalação de práticas sustentáveis estão em boa medida em uma racionalidade econômica convencional firmada no princípio de que nos interesses e nas ações individuais se obtêm ganhos máximos para o conjunto. O modelo neoclássico da economia, baseado no crescimento infinito e sem limitações ecológi- cas, criou nos cidadãos comuns expectativas impossíveis quanto ao consumo. Na teoria econômica dominante, o produto nacional de uma sociedade é o resultado da combinação trabalho e capital. A natu- reza e os serviços naturais são negligenciados como fatores essenciais para a produção porque, a despeito da certeza de que qualquer produ- to advém da matéria da natureza, no processo do consumo, o valor de uso dos bens é consumido e destruído. Todo o resíduo de matéria não consumido retorna à natureza como lixo e emissões. Em boa medida, esse tratamento teórico que toma a natureza como custo zero, pode ser atribuído ao modelo da economia pré-industrial, baseada no uso de recursos renováveis, numa escala sem maiores prejuízos para o meio ambiente. O lixo daquele tempo podia ser renovado pelos fluxos circu- lares da ecologia e convertido em novos recursos produtivos. É dessa realidade que se retirou o dito popular de que a natureza “trabalha de graça”, porque cabe a ela a responsabilidade pela velocidade e pelos ciclos de regeneração (BISWANGER, 1997). A escala de produção, o consumo e a motivação da “maximiza- ção dos lucros” não dão tempo aos processos biofísicos, e o uso de uma racionalidade sustentável pretende redefinir os meios físicos, criticando a máxima de que o valor das coisas da natureza coincida com a realidade dos preços. O que a natureza é não pode caber nesse 123 Pensamento Plural jogo de correspondências. As exigências cada vez maiores de capital natural causam desequilíbrios no meio ambiente, e para este dado os preços de mercado não apreendem estas perturbações, postas de lado no cálculo econômico. Para Cavalcanti (1997), é oportuno que o Estado lidere o mer- cado em lugar de segui-lo, como atualmente, propondo ações de geren- ciamento racional da natureza. O Estado parece ser o agente apto para impor medidas atenuadoras — através dos instrumentos disponíveis, do direito e do dinheiro. Por outro lado, a discussão ecológica parece demonstrar o fato de que o arranjo institucional do Estado nacional- territorial não está à altura das necessidades mundiais. A camada de ozônio tem pouco a ver com as fronteiras que existem somente no imaginário humano. Como diz Brüseke (1997), “os problemas ecológi- cos são maiores que o Estado territorial”. Os defensores do desenvolvimento sustentável deparam-se com o desafio de um desenvolvimento atento às metas de eliminação da pobreza e de desconcentração da renda. E, para complicar esta equa- ção, são conhecidos os fatores globais do crescimento sem empregos, incrementando as desigualdades e misérias. Esse dado da realidade contrasta com as noções de desenvolvimento e progresso que, para além das pretensões de uma visão objetiva da realidade, mostram-se como ideologia capaz de agressões simbólicas e justificadoras de uma ordem de realidade excludente, em um formato do agir histórico pre- conizado, entre os “virtuosos” e “não virtuosos”, independente da estrutura de oportunidades disponibilizada ao conjunto. Para além dos pieguismos que se vão espalhando em torno do tema do desenvolvimento sustentável, os debates na esfera pública atualizam a complexidade da função primária da reprodução material. Os valores ecológicos dão à função econômica um simbolismo reno- vado. E, do ponto de vista da realidade conhecida, os obstáculos são incomensuráveis, pois se reportam à psicologia dos agentes, de seus hábitos de consumo e estilos de vida, porque os fluxos de contenta- mento se conectam aos excessos consumistas e às dissipações impru- dentes. É nesse contexto de questões e impasses teóricos que emerge o pensamento de Amartya Sen que, apesar de estar no campo disciplinar da economia, realiza o tempo inteiro a viagem inversa — buscar nas dinâmicas societárias e políticas a chave operatória para o projeto de sustentabilidade da vida no sentido mais amplo. 124 Pelotas [03]: 121 - 145, julho/dezembro 2008 2 Demarcando problema sob a perspectiva de Amartya Sen Com a publicação do “Relatório Brundtland”, Sen identifica um novo marco na discussão sobre desenvolvimento, sintetizado na máxima de que se deve atender “às necessidades do presente sem com- prometer a capacidade das gerações futuras para atender às suas neces- sidades”. O debate que se seguiu foi profícuo, no sentido de agregar e expandir mais aspectos e dimensões da realidade e particularidades disciplinares, e tomou a componente humana e suas questões derivadas como problema secundário em face das abordagens conservacionistas dominantes no debate ambientalista, porque defensoras de um ente- natureza distinto do homem e, por isso, indiferentes à complexidade das dinâmicas societárias. Simultaneamente vigorava um modelo econômico sedimentado na noção de crescimento, do qual Sen proporá um afastamento. Como a economia lida com questões relativas aos desafios adaptativos e às dinâmicas próprias das associações e cooperação dos homens entre si para promover o intercâmbio à natureza com o fim da satisfação de necessidades, então é preciso enriquecê-la até o limite de, em saindo da realidade básica material, se poder alcançar um novo parâmetro de apreciação da vida. Sen reconhece a riqueza e oportunidade que o conceito de des- envolvimento sustentável originariamente gerou, e não almeja ignorar os ganhos intelectuais e políticos globais que o movimento em torno da noção de desenvolvimento sustentável trouxe. Contudo, indaga “se a idéia de ser humano que o conceito abarca é suficientemente abran- gente” (SEN, 2004). A dimensão real das “necessidades” e seus proces- sos e mecanismos intrínsecos estão dados. Todavia, as dimensões que Sen valoriza e buscará incorporar são exatamente aquelas que estão para além dos limites disciplinares das abordagens materialistas. Ganha relevo um estatuto de humanidade baseado nas premissas do homem como tendo crenças e valores, e da capacidade para a discussão e avali- ação públicas. O autor recupera a noção de “agente” para pensar a natureza e as possibilidades de ação humana como entidade que tem liberdade para agir reflexivamente, atribuindo valor às coisas em uma ordem da realidade que ultrapassa a esfera do atendimento das necessidades prementes. Dessa maneira, a pergunta fundamental deve ser com res- peito à natureza das prioridades ambientais e de sua conexão com o delicado tema do desenvolvimento como expansão das liberdades mais 125 Pensamento Plural amplas dos indivíduos. A indagação original posta no “Relatório Brundtland” sofre sutil mais significativo acréscimo: “será que não deveríamos nos preocupar em preservar — e talvez até expandir — as liberdades substantivas de que as pessoas hoje desfrutam ‘sem com- prometer a capacidade das futuras gerações’ para desfrutar de liberdade semelhante, ou maior?” (SEN, 2004). Emerge, assim, a noção de “liber- dades sustentáveis” como possibilidade a ser incrementada na teoria do “desenvolvimento como liberdade” do autor. A aproximação possível entre as noções de desenvolvimento sustentável e desenvolvimento como liberdade está em que elas lidam com a temática da mudança dos modos de vida (na formulação da crítica e na proposição de novos estilos), da reinvenção das instituições (de novos objetivos e novas políticas públicas), e que invariavelmente tragam à arena pública as discussões sobre justiça social, pobreza etc. Dessa maneira, medidas típicas de regulamentação econômica — como o estabelecimento de uma política de juros e multas para empreendi- mentos que não respeitem os limites objetivos dos processos naturais e quaisquer outras iniciativas estritamente coercitivas de caráter econô- mico — têm alcance limitado comparativamente à noção de um proje- to baseado em normas e responsabilidades cívicas. Uma distinção fundamental separa o cerne do argumento de Sen da elaboração da idéia de desenvolvimento que tem como substra- to apenas o agir egoísta: é a compreensão da ação humana e de sua capacidade para agir reflexiva e ativamente, instigado e sensibilizado pelos dilemas do mundo circundante. A sustentabilidade possível do meio biofísico e dos projetos humanos, tem mais a ver com um senti- do de cidadania ambiental em que o agente é capaz de agir levando em consideração os interesses e bem-estar dos outros do que simplesmente movido pelo auto-interesse, como é típico e está pressuposto em pro- gramas e políticas baseados em incentivos financeiros – paliativo neo- clássico conhecido. Mas, a relação entre sustentabilidade e ativismo cívico ou, mais precisamente, de uma cidadania ecológica, precisa ser mais elaborada, para que a cidadania não tenha um papel estritamente instrumental, apenas como meio para conservar o ambiente, mas como um funda- mento constitutivo de um estado final de um modo de vida sustentá- vel. O enfoque de Sen promove um deslocamento conceitual marcante: a fórmula do desenvolvimento sustentável não pode servir simples- mente como garantia às condições para o atendimento de necessidades econômicas no futuro, mas de um novo padrão comportamental que denota comprometimentos com a preservação ambiental, porque está 126 Pelotas [03]: 121 - 145, julho/dezembro 2008 estruturado no plano da motivação que envolve outros aspectos da vida, inclusive o econômico, redimensionado. E é nesse nível onde são discutidas e formuladas às normas para o agir comprometido e com implicações mais amplas que a satisfação de necessidades materiais. Para o autor de Desenvolvimento como liberdade, que conexão de sentido há entre a causa “abstrata” da conservação de uma espécie ameaçada de extinção e a esfera primária do atendimento às necessida- des materiais? Entretanto, sob o ângulo de um modo de vida e de um senso de responsabilidade intrínseco à natureza da ação humana — reflexiva e mutuamente relacionadas aos destinos da comunidade — trata-se de um ato profundo vinculado aos valores partilhados, inclusi- ve o de justiça social. O ponto de vista de Sen é desconfortável aos olhares unilaterais que margeiam a noção de desenvolvimento sustentável; seja em seu viés por demais biologizante que recai nos projetos práticos que concebem uma natureza intocável ou dos olhares economicistas redutores — ambas as perspectivas incapazes de problematizar a contento determi- nados aspectos humanos, como a pobreza. Entre os dois modelos definidores da sustentabilidade, Sen demonstra que há muitas realida- des e ordenações legítimas. Assim, faz referência à área protegida e hábitat do tigre de Bengala na Índia (o Sunderban), para problematizar o fim anunciado dos mais de 50 homens desesperadamente pobres que morrem todos os anos comidos pelos tigres, em razão da busca em que se lançam aos milhares à captura do precioso mel do lugar. Uma or- dem de prioridades é instituída: “enquanto os tigres são protegidos, nada protege os miseráveis seres humanos que tentam ganhar a vida trabalhando naquela floresta” (SEN, 2000, p. 173). A miséria humana aqui não harmoniza com os objetivos preservacionistas e a pobreza é tornada variável secundária. Dessa maneira, torna-se imperioso a refle- xão acerca do lugar do homem no estatuto presumido do desenvolvi- mento sustentável. Em outro extremo, estão aqueles para quem se deve dar prioridade à satisfação de necessidades econômicas, fazendo da liberdade política e liberdades substantivas um luxo dispensável. São posições políticas de exclusão típicas do Terceiro Mundo, férteis na difusão de regimes de opressão. Neste caso, uma dimensão imprescin- dível e característica intrínseca da vida humana (a ação política) e constitutiva do desenvolvimento individual e do corpo social é ampu- tada, fazendo com que projetos de desenvolvimento humano e susten- tável expressem práticas unilaterais e simplificadoras incapazes de articular todos os elementos envolvidos em suas complexidades. Na visão de Sen, o arcabouço intelectual e ético que dá contor- nos à noção de desenvolvimento sustentável precisa coadunar-se com a 127 Pensamento Plural máxima do desenvolvimento como expansão das capacidades huma- nas. E não é o caso de inverter-se à condição dos tigres em benefício dos homens miseráveis de forma direta. Uma medida metodológica inicial é evitar os unilateralismos e reducionismos de todo tipo, seja o de natureza política, científica ou de outro viés. 3 A democracia como base para o desenvolvimento Sen postula que o desenvolvimento pode ser visto como “um processo de expansão das liberdades reais que as pessoas desfrutam” — e não mais pelo enfoque do crescimento do PNB, industrialização, avanço tecnológico etc. — pelo reconhecimento de que há uma disso- nância entre renda per capita e certas liberdades como vida longa e tranqüila, explicitados em casos de países ricos em PNB per capita (Gabão e Brasil) mas com baixa expectativa de vida da população comparativamente a outros países bem mais pobres. Tomar a institui- ção da liberdade como o núcleo duro do conceito de desenvolvimento faz que elementos não econômicos ganhem uma importância antes ignorada ou tratados como fatores explicativos externos ao desenvol- vimento. Assim, a democracia, os direitos civis (a liberdade de partici- par de discussões e deliberações públicas), e disposições sociais como educação e sistema de saúde são elementos constitutivos e intrínsecos ao processo de desenvolvimento.3 O sistema econômico passa a ser avaliado segundo o progresso e aumento das liberdades das pessoas, o que pressupõe um indivíduo devidamente educado e saudável, ou seja, em melhores condições de livremente assumir o papel de agente. Efeti- vamente a avaliação do sistema exige a análise das instituições que empiricamente servem aos objetivos da expansão das liberdades e para se aferir até que ponto é proporcionado ao indivíduo, no final do processo, os recursos requeridos à geração do indivíduo livre e compe- tente. O agente livre e competente retorna às esferas de sociabilidade e com sua ação competente pode aperfeiçoar as instituições que, por sua vez, se colocarão novamente como meio para sustentar a vida dos indivíduos. O que as pessoas conseguem positivamente realizar é influenciado por oportunidades econômicas, liberda- des políticas, poderes sociais e por condições habilita- 3 Na economia correlaciona-se crescimento econômico à capacitação das pessoas, circunscrita somente ao campo do agir econômico e não no sentido substantivo e amplo que preconiza Sen. 128 Pelotas [03]: 121 - 145, julho/dezembro 2008 doras como boa saúde, educação básica, etc. As dispo- sições institucionais que proporcionam essas oportu- nidades são ainda influenciadas pelo exercício das li- berdades das pessoas, mediante a liberdade para parti- cipar da escolha social e da tomada de decisões públi- cas que impelem o progresso dessas oportunidades (SEN, 2000, p. 19). Sen postula sobre a responsabilidade do agir humano no mun- do, pela condição de que o viver junto denota a condição de que os acontecimentos ao redor se constituem em problemas de todos. E, por isso mesmo, a realidade invoca a competência humana para julgar e projetar o agir. A despeito dos excessos egoístas alimentadores da ação, é fato o envolvimento do comportamento individual em um contexto maior, independente se o indivíduo reconhece ou não esta sua condi- ção. De um ponto de vista ético, vingou o preceito de que uma pes- soa é responsável pelo que lhe acontece (esforço pessoal), de que não deve depender da influência da ação de outros, “porque isto enfraque- ceria a iniciativa e os esforços individuais, e até mesmo o respeito próprio”. Para Sen, colocar o interesse de uma pessoa sobre os ombros de outra pode afetar a motivação, envolvimento e autoconhecimento da pessoa. Qualquer afirmação de responsabilidade social que substitua a responsabilidade individual é contraproducente. Não existe substitu- to para a responsabilidade individual. Contudo, as liberdades substantivas que desfrutamos para exer- cer nossas responsabilidades são extremamente dependentes das cir- cunstâncias pessoais, sociais e ambientais. Uma criança a quem é nega- da a oportunidade do aprendizado escolar básico é desfavorecida por toda a vida. O adulto sem os recursos para receber tratamento médico para curar uma doença é vítima de morbidez evitável e da morte pos- sivelmente escapável. Os indivíduos (a criança e o adulto) são privados não só do bem-estar, mas do potencial para levar uma vida responsá- vel, pois esta depende do gozo de certas liberdades básicas. Responsabi- lidade requer liberdade. Assim, o argumento do apoio social para expandir a liberdade das pessoas é um argumento em favor da liberdade individual e não contra ela. O caminho entre liberdade e responsabilidade é de mão dupla. Sem a liberdade substantiva e a capacidade para realizar alguma coisa, a pessoa não pode ser responsável por fazê-la. Mas ter efetiva- mente a liberdade e a capacidade para fazer alguma coisa impõe à pessoa o dever de refletir sobre fazê-la ou não, e isso envolve responsa- 129 Pensamento Plural bilidade individual. Nesse sentido, a liberdade é necessária e suficiente para a responsabilidade. O comprometimento social com a liberdade individual não precisa atuar apenas por meio do Estado; deve envolver outras institui- ções: organizações políticas e sociais, disposições de bases comunitári- as, instituições governamentais, a mídia e outros meios de comunica- ção e entendimento público, bem como as instituições que permitem o funcionamento de mercados e relações contratuais. 4 Sobre democracia A importância do sistema democrático como suporte de todo o processo não é algo para Sen localizado romanticamente na esfera da idealização coletiva em um formato ingênuo. Há um fundo histórico e motivação pragmática para demonstrar os interesses dos grupos mais fracos, e quantitativamente mais representativos, para priorizar, avaliar e decidir por soluções e instituições democráticas, no intuito da conse- cução de seus objetivos. As evoluções conhecidas nas democracias contemporâneas reforçam a hipótese de que o público dará maior apoio aos programas e projetos de governo que proponham a articula- ção de várias disposições sociais em um arranjo universalista. Porém, esses projetos não têm apenas o combustível do auto-interesse, senão que o sistema também está aberto às motivações segundo os interesses conectados ao bem-estar dos outros. As liberdades políticas são constitutivas dos projetos e relações econômicas, e influenciam na compreensão e satisfação de necessidades econômicas: “nossa conceituação de necessidades econômicas depende crucialmente de discussões e debates públicos abertos (...). A intensida- de das necessidades econômicas aumenta — e não diminui — a urgência das liberdades políticas” (SEN, 2000, p. 175). A democracia e as liberdades políticas impactam sobre a vida e as capacidades dos cidadãos, porque os direitos políticos dão às pessoas a oportunidade de chamar a atenção para necessidades gerais e exigir a ação pública apropriada. A resposta do governo ao sofrimento do povo depende freqüentemente da pressão exercida sobre esse governo e é nisso que o exercício dos direitos políticos (votar, criticar, protestar etc.) pode realmente fazer diferença, tornando possível a prevenção de catástrofes, como as fomes coletivas, por exemplo. A liberdade política é um instrumento útil sobre os que detêm o poder e que se submetem as eleições regulares, bem como aos partidos de oposição e a imprensa livre, quando questionam à “sabedoria das políticas governamentais”. 130
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