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Aquilino Ribeiro and D. Sebastião PDF

18 Pages·2016·0.2 MB·Portuguese
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Revista Letras, Uma polêmica, dois prefácios, um romance: Curitiba, ufpr, n. 94 jun./dez. Aquilino Ribeiro e D. Sebastião 2016. issn 2236- 0999 A controversy, two forewords, one novel: Aquilino Ribeiro and D. Sebastião Anamaria Filizola1* Resumo: Este artigo aborda o romance de Aquilino Ribeiro (1885-1963) Aventura maravilhosa de D. Sebastião, rei de Portugal, depois da batalha com o Miramolim (1936) no contexto da polêmica sebástica que envolveu Carlos Malheiro Dias (1875-1941) e António Sérgio (1883-1969), acontecida em 1924-25, desencadeada pela publicação do opúsculo Exortação à mocidade (1924), de autoria do primeiro. Aquilino Ribeiro foi amigo dos dois polemistas : Terras do demo (1919), é dedicado a Malheiro Dias, e Aventura maravilhosa, a António Sérgio. Palavras-chave : Aquilino Ribeiro, Aventura maravilhosa, polêmica sebástica, Carlos Mal- 51 heiro Dias, António Sérgio. Abstract: This paper studies Aquilino Ribeiro’s (1885-1963) novel Aventura maravilhosa de D. Sebastião, rei de Portugal, depois da batalha com o Miramolim (1936) in the context of the sebastianistic (sebástica) controversy between Carlos Malheiro Dias (1875-1941) and António Sérgio (1883-1969), which occurred in 1924-25. The controversy was triggered by Carlos Malheiro Dias’ Exortação à mocidade (1924). Aquilino Ribeiro was a friend of both polemists: he dedicated his Terras do Demo (1918) to Malheiro Dias and Aventura maravilhosa to António Sérgio. Keywords : Aquilino Ribeiro, Aventura maravilhosa; “sebastianistic” (sebástica) controversy, Carlos Malheiro Dias, António Sérgio. * Professora aposentada de literatura portuguesa da ufpr. Para a Marilene, com amizade e admiração Mas o intruso, aproveitando-se da perplexidade, fazia o relato de sua aventura maravilhosa. (…) Segundo os testemunhos mais fidedignos, vós tínheis caído na batalha. A boa lógica não autorizava outra versão. (…) Pois, não senhor! Na opinião de quase todo o Portugal, escapastes à batalha e fostes para o mar dos Sargaços aprestar a frota que havia de derrotar o turco, o inglês, e, claro, fazer morder o pó ao detestado leão de Castela, representado pela minha pessoa, herdeiro do trono de Portugal conforme as leis divinas e humanas, desde que Vossa Majestade não deixara sucessores directos. Mas vedes o desconchavo duma crendice que tomou foros de lenda e, se nos não deu água pela barba, não deixou de causar os seus engulhos, suscitando-nos uns impostores que se fizeram passar por Vossa Majestade e criando nas turbas um estado de espirito lunático, sombrio e avesso às realidades, sobre que poderão enxertar-se dum momento para o outro as mais imoderadas rebeldias. (Aventura maravilhosa de D. Sebastião, p. 217; 221) Filizola, A. Uma polêmica, dois prefácios, um romance: Aquilino Ribeiro e D. Sebastião O tema sebástico exige ponderação na abordagem. Por um lado, por- 53 que a literatura a respeito da matéria – que se estende por cerca de quatro séculos –, é imensa; por outro, porque a sua origem mesma é controversa, o que em parte explica a abundância de escritos em torno do assunto. Grosso modo, podemos resumi-la numa interrogação: na infausta ba- talha de Alcácer Quibir, D. Sebastião teria morrido ou desaparecido? Tal dú- vida, dadas as circunstâncias da derrota no Marrocos e os seus desdobramentos em Portugal, teria gerado a expectativa do seu regresso. Por algum tempo, tal espera é aceitável, lembremos que o rei tinha 24 anos na altura da expedição. A essa espera insistente, chamou-se sebastianismo. A espera extemporânea, que se torna fantástica com o passar do tempo, virou motivo de crença ou de tro- ça. Muitas vezes o tema sebástico, i.e., que diz respeito ao rei e aos fatos a ele relacionados, é tomado a priori por sebastianismo, assim como o sinal de com- preensão pelo rei, acusado de culpa dos infortúnios acontecidos ao reino. Além de controverso, o tema sebástico é fonte de muitos preconceitos. O romance de Aquilino Ribeiro (1885-1963), Aventura maravilhosa de D. Sebastião não é sebastianista. Data de 1936, quando ainda se ouvem ecos do que ficou conhecido como “polêmica sebástica”, havida, em 1924-25, entre António Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. Sérgio (1883-1969) e Carlos Malheiro Dias (1875-1941), ambos seus amigos.1A Uma polêmica, hipótese é que o romance dialoga com as posições de Sérgio e Malheiro Dias. dois prefácios, Para estabelecer um determinado protocolo de leitura, precisamos de destacar – um romance: ao longo do século xix – alguns acontecimentos que reavivaram discursos quer Aquilino Ribeiro e D. Sebastião a respeito do rei, quer a respeito do sebastianismo. Nos oitocentos, é comum afirmar, a matéria sebástica se singulariza por abranger a produção artística em geral. Diz Vítor Amaral de Oliveira: “(…) no século xix, quer pelas circunstân- cias políticas, quer pela nova postura estética que acompanha o Romantismo, o assunto vai ser tratado em todos os aspectos artísticos, culturais e históricos, com avultados exemplos”. (oliveira, 2002, xxxii). As invasões francesas (1807-1811) e a consequente mudança da corte para o Brasil inauguram de modo traumático o século xix português. A ausência da família real e da corte, as convulsões bélicas e a ingerência estrangeira, primeiro francesa e espanhola e a seguir inglesa, provocam um surto sebastianista, talvez por uma memória atávica dos acontecimentos pós Alcácer Quibir, quando o reino falido, sem homens e sem rei, passa ao domínio espanhol. As primeiras manifestações, de cunho popular, prenhes de crendices e superstições, nos che- gam pelo relato de José Acúrsio das Neves, na sua História geral da invasão dos franceses em Portugal e da restauração deste Reino, publicada em cinco tomos entre 1810 e 1811, no calor da hora2: A entrada dos franceses em Portugal deu-lhes [aos sebastia- nistas] novas forças, que foram crescendo à proporção que o 54 peso das suas vexações se aumentava: metade de Lisboa fez-se sebastianista. (…) Desde este momento o velho da fundição passa por um profeta, e o estampador da Praça da Alegria por um homem de raro saber; e estes dois apóstolos, rodeados de um grande número de discípulos, levam consigo as turbas. Revolveram-se mais do que nunca os antigos escritos e profecias que fazem para o caso. As do Bandarra, de que algumas trovas são terminantes, foram sempre muito respeitadas; mas agora ficaram escurecidas pelas do Mou- ro de Granada, e sobretudo pelas do pretinho do Japão, pela precisão e clare- za com que falam, designando até os nomes. Vieram em seu socorro muitos milagres e muitas revelações de santos e santas e de alguns veneráveis (…), os testemunhos de vários mudos que falaram, e de uma criancinha de três meses 1 Malheiro Dias prefaciou o livro de contos com que Aquilino estreia, Jardim das tormentas (1913); cinco anos depois, este dedica ao “meu querido e príncipe das letras”, que é Malheiro Dias, o romance Terras do demo, e a António Sérgio, em 1936, Aventura maravilhosa de D. Se- bastião. Num meio intelectual pequeno como o português da primeira metade do século xx, é compreensível que as pessoas ora partilhem dos mesmos interesses, ora divirjam nas ideias. 2  Cf. Cap. xxvi: Digressão curiosa sobre os sebastianistas e suas opiniões; relações que estes tinham com os seus sucessos públicos; negociações inúteis de Junot com o Almirante Cotton para este deixar de introduzir víveres em Lisboa (…). (neves, 2008, p. 170) Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. que mesmo nesta ocasião falou para confundir os incrédulos, apontando-se o Uma polêmica, bairro, a rua, a casa em que isto sucedera (…). dois prefácios, Faz pasmar a rapidez com que estes Sonhos adquiriram imen- um romance: sos prosélitos de todas as ordens; de tanto é capaz o entendi- Aquilino Ribeiro e D. Sebastião mento humano! (neves, 2008, p. 171-2) Mas as manifestações sebastianistas não ficaram somente nos milagres en- gendrados por finórios da populaça; outro público, desta vez letrado (“letrados de segunda classe”, assim os designa José Acúrsio das Neves), serviu-se do mote. É ainda o historiador que nos dá notícia do que posteriormente ficou conhecida como “guerra sebástica”: Têm-se dito injúrias aos sebastianistas, e houve quem os qui- sesse despicar: daqui nasceu esta renhida guerra de pena, que diverte os ociosos, faz trabalhar as imprensas e dá dinheiro aos combatentes; é de sentir que também dê consumo a muito pa- pel que podia empregar-se em objectos mais úteis; gênero de que Portugal sente uma grande falta. Não há razão para dizer injúrias àquela pobre gente, que não ofende a pessoa alguma, e de que o grande apego às suas opiniões extravagantes mostra o seu ódio aos usurpadores, a sua fidelidade aos seus reis natu- rais; paixões que exaltou ao último ponto a opressão do reino, debaixo de um governo usurpado. (neves, 2008, p. 173) 55 O papel foi gasto na publicação de cerca de 30 folhetos, a favor e contra os sebastianistas, com variações de extensão, de humor e seriedade no tratamento do assunto. O mais famoso dos folhetos é o do padre José Agostinho de Macedo, Os sebastianistas (1810), em dois volumes de pouco mais de cem páginas cada. É dele a premissa “Um sebastianista é um mau cristão, um mau vassalo, um mau cidadão e o maior de todos os tolos”. Além dos dois alentados livretos, Macedo ainda alimentou a “guerra sebástica” com mais cinco folhetos.3 A vivacidade dos quadros descritos por José Acúrsio das Neves indicia o quanto tudo isto deve ter ficado na tradição oral, na memória coletiva. Desco- nheço produções literárias em que apareça referida a guerra sebástica, mas as crendices populares e aqueles que delas tiraram vantagem estão presentes em algumas obras, das quais destaco a comédia de Almeida Garrett As profecias de Bandarra (1848). O tema sebástico é igualmente tratado por Garrett no seu dra- ma Frei Luís de Sousa (1844), lido de modo controverso, como se sebastianista 3 A bibliografia sebástica, como já se disse, é imensa e está em grande parte arrolada na Se- básica, de Vitor Amaral de Oliveira, de que constam os 33 folhetos e alguma bibliografia sobre o assunto, mas indico artigo bastante abrangente da historiadora Jacqueline Hermann, “D. Se- bastião contra Napoleão: a guerra sebástica contra as tropas francesas”. Topoi, Rio de Janeiro, de. 2002, p. 108-133. Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. fora.4 Uma polêmica, Alguns anos mais tarde, em 1866, Miguel d’Antas publica, em Paris, Les dois prefácios, faux D. Sébastien: Étude sur l’Histoire du Portugal, que encontra boa receptividade um romance: em Portugal, merecendo críticas positivas. O relato sobre os quatro homens que Aquilino Ribeiro e D. Sebastião se fizeram passar por D. Sebastião nos anos que se seguiram à batalha (entre 1585 e 1602) também excita o imaginário literário. Sem nenhuma pretensão a fazer levantamentos que aqui não cabem, lembro Virtudes antigas (1868), de Camilo Castelo Branco, em que a história do pasteleiro de Madrigal é contada com humor e ironia. Um ano antes, Camilo publicara O senhor do paço de Ninães, romance histórico de temática sebástica. Tanto na narrativa sobre o pasteleiro como no romance, Camilo transcreve o sermão das exéquias de D. Sebastião, atribuindo-lhe diferentes autorias, sem se preocupar em dar qualquer esclareci- mento… Camilo e Garrett são aqui chamados por exemplificarem o quanto a figura do Desejado está no horizonte da cultura letrada, neste caso canônica, e não apenas no imaginário popular. Nossos dois autores são polígrafos (Camilo ainda escreveu versos sebásticos) e eram já, à época em que escreveram, referên- cias literárias e culturais para os seus contemporâneos. O Realismo, como se sabe, não cultivou o romance histórico, de modo que temos uma ausência do tema sebástico na narrativa de ficção, embora haja poemas, de que lembro O Desejado (1902)5, de António Nobre (1867-1900). Eça de Queirós satiriza a literatura romântica em A ilustre casa de Ramires (1900), cujo protagonista, Gonçalo Mendes Ramires, se esforça em escrever um roman- ce histórico sobre os feitos de seus ilustres familiares. Não bastasse o motivo 56 – tornar-se conhecido nos meios políticos, – as “fontes” da genealogia familiar ficam restritas ao fado do Videirinha e ao poema do tio Duarte… No entanto, a produção historiográfica e sociológica de Oliveira Martins (1845-1894) se singulariza pelo estilo rico em imagens fortes e pela agilidade da narrativa em que predominam as tomadas de posição que o afastam de uma história pretensamente objetiva e “neutra” e o aproximam do ensaísmo e até da ficção. Não quero com isto dizer ou mesmo insinuar que o discurso históri- co oliveiriano ocuparia o lugar deixado vago pelo romance histórico. Contudo, como já disse, o estilo, pródigo no uso de tropos, e as claras e indubitáveis to- madas de posição transformam-no num pensador controverso. E são polêmicas as páginas que escreve sobre D. Sebastião e o sebastianismo em sua História de Portugal (1879), em que há reflexos da famosa conferência de Antero de Quintal, “As causas da decadência dos povos peninsulares” (1871). Já o reinado de D. João iii, o Piedoso, mas impiedoso quando se tratava de aplicar os castigos inquisito- 4 Não cabe aqui esta discussão, mas recordemos que o criado Telmo é quem anseia pelo retor- no do rei e do seu senhor, D. João de Portugal, cujo desaparecimento na batalha põe em causa a legitimidade do casamento de D. Madalena de Vilhena, dada a incerteza de sua viuvez. É o próprio Telmo quem reconhece, porém, que o retorno do passado pode ser catastrófico, quando a volta de D. João, transformado em romeiro, causa a destruição da família de Manuel de Sousa Coutinho. 5 Poema publicado postumamente no livro Despedidas, com prefácio de Sampaio Bruno. Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. riais, avô e antecessor de D. Sebastião, é visto por Oliveira Martins como doen- Uma polêmica, tio, dada a beatice do rei e do reino: dois prefácios, um romance: Mas esta doença da corte já era a doença de todo o reino: os Aquilino Ribeiro e D. Sebastião doidos que apareciam por toda a parte, a fazer milagres ou endemoninhados, traduziam a loucura universal de um povo. Os terrores fúnebres da Idade Média tinham cristalizado no catolicismo peninsular; e os portugueses, exangues pela Índia, uma sanguessuga, e estonteados pelos milagres das descober- tas e conquistas do Oriente, pervertidos pelo luxo, corrom- pidos pelas pestes e pelas doenças que vinham do Ultramar, tinham perdido a noção de realidade forte. A vida era-lhes um sonho feito de loucuras e medos. (martins, 2004, p. 258) Estavam dados os sinais dos infortúnios que culminariam na derrota de Alcácer Quibir e por consequência na perda do reino. A metáfora do reino como um corpo doente e mais que doente, louco, e por isso sem controle, continua no capítulo dedicado a D. Sebastião e a Jornada de África: A dureza das infelicidades da pátria levava os espíritos aos es- tado de uma loucura febril, de uma superstição idiota, de um furor de devassidão, de medo e de extravagaria. Tudo se acre- ditava possível, com o desvairamento do delírio. (…) Portugal 57 era uma nação de loucos perdidos, e no moço rei encarnava toda a loucura do povo. (martins, 2004, p. 262) Esta última frase é exemplificada ao longo do capítulo. Todos sofrem de loucura, igual à do rei ou adversa, mas loucura. Não há, assim, escapatória do precipício à beira do qual todos, sem exceção, se encontram. O capítulo seguinte, “Sebastianismo”, descreve o quadro de desespero que se segue à chegada a Por- tugal da notícia da derrota nas areias do Marrocos e da morte duvidosa do rei: a pobreza do reino, a desesperação das mulheres, o curto reinado do Cardeal D. Henrique, velho e doente, o não mais longo reinado de D. António, o prior do Crato, que tentou em vão lutar contra os exércitos de Filipe ii. Questiona Oli- veira Martins: Não houve protestos contra a perda da independência? Houve, mas de tal natureza, que são mais uma prova da incapacidade da nação para a defender. O prior do Crato, vencido e fugido, foi pedir à política eu- ropeia o auxílio que os portugueses lhe negavam; (…) uma teima impossível de vingar – porque o povo, deprimido e mi- Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. serável, nada confiava nem esperava dos homens: pedia tudo a Uma polêmica, Deus, e a um milagre. dois prefácios, (…) Os Macabeus de 1580 não tinham sabido menear a es- um romance: pada; e o povo, perdido o sentimento da sua realidade, como Aquilino Ribeiro e D. Sebastião todo e como força, abandonava-se esperar a volta do Messias – D. Sebastião, o príncipe encantador, a divina criança, que soubera aspirar a salvação comum, que viria decerto redimir a nação! (…) A sua fisionomia simpática, os seus próprios erros que eram virtudes, por fim a sua história trágica, fundavam os ali- cerces de uma beatificação que se ia formando. O povo crista- lizava seus ideais, transfigurando o homem num símbolo das suas esperanças e desejos. (martins, 2004, p. 278-9) A loucura de D. Sebastião e do reino, o desastre da jornada, o desapareci- mento do rei,, o messianismo popular reforçado pela circulação de profecias de fonte igualmente popular (Bandarra, o sapateiro Simão Gomes) vão esboçando o quadro que Oliveira Martins se propõe traçar. Os dois primeiros falsos D. Se- bastião imprimem cor forte ao quadro: o da Ericeira, pedreiro, o de Penamacor, oleiro, um nas serras de Sintra, junto ao mar, outro nas faldas da serra da Estrela, (…) ambos no coração do país, sobre o seu dorso, junto da medula espinal, onde vibram as comoções centrais do 58 organismo: nessa cordilheira onde moram os puro-por- tugueses. (…) Por um mistério vedado à razão, encarnou em am- bos a alma colectiva e são verdadeiros cristos nacionais. (martins, 2004, p.279-89) A reflexão de Oliveira Martins demonstra como a lenda, no seio do povo, não se transforma em dogma, mas sim em mito; não é transcedentalizada, é sim naturalizada e D. Sebastião é feito herói: “Heraclés e não Zeus, o Arcanjo e não o Verbo”. O povo, categoria tão cara aos românticos, é que permite o corolário do silogismo que vem sendo construído/demonstrado: (…) quando vemos que D. Sebastião se transforma num rei Arthur, escondido na ilha viçosa dos bardos; somos, com efei- to, levados a supor que o elemento primitivamente dominante nas populações é em Portugal celta, pois que os seus frutos in- génuos e espontâneos têm a cor e a forma dos produtos dessa raça. (p.281) (…) A obra temerária dos homens caía por terra; e o povo, Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. abandonado e perdido, abraçava-se à natureza, fazendo do Uma polêmica, lendário D. Sebastião um génio, um espírito – e da sua histó- dois prefácios, ria um mito. um romance: O Sebastianismo era pois uma explosão simples da desesperan- Aquilino Ribeiro ça, uma manifestação do génio natural da raça, e uma abdica- e D. Sebastião ção da história. Portugal renegava, por um mito, a realidade; morria para a história, desfeito num sonho, envolvia-se, para entrar no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica. (martins, 2004, p. 283) Alongo-me em Oliveira Martins por algumas razões. A primeira delas é porque é considerado o primeiro a tratar o sebastianismo como referência his- tórica. Outra, porque o seu pensamento como um todo e suas ideias sobre o sebastianismo em especial repercutem pelo século xx6 . Seguindo o protocolo de leitura, chegamos a António Sérgio (1883-1969), já no primeiro quartel do século xx, lembrando, de passagem, dois nomes importantes que voltam à figura do Desejado/Encoberto: Teixeira de Pascoaes (1877-1952) e Fernando Pessoa (1888-1935). Os três participaram da revista A Águia, órgão do movimento Re- nascença Portuguesa. Mas é Sérgio quem nos interessa no momento. Por ser um devedor do pensamento de Oliveira Martins e ao mesmo tempo seu crítico pontual em al- guns aspectos, entre eles o sebastianismo. Já em 1917, publica n’A Águia o arti- go “Interpretação não-romântica do Sebastianismo”. Sérgio critica as ideias de 59 Oliveira Martins, principalmente as conclusões a que chega acerca do sebas- tianismo como manifestação do gênio da raça. Sérgio atribui origem judaica ao messianismo, origem castelhana à ideia do Encoberto, e assim por diante, refutando as afirmações sobre serem os portugueses naturalmente sebastianistas: “(…) não, senhores, não nascemos sebastianistas – e não queremos, positivamen- te não queremos viver como se o fôssemos”. (Apud. pires, 1971, p. 17) Diga-se também que a reação às ideias que consideravam o sebastianismo uma manifes- tação do gênio da raça já aparecem em O Encoberto (1913), de Sampaio Bruno, autor também ligado à Renascença Portuguesa. Todavia, António Sérgio era um polemista, o que Bruno não era. O artigo d’ A Águia reaparece no volume I dos Ensaios, em 1920, acrescido da crítica a Evolução do Sebastianismo (1918), de J. Lúcio de Azevedo. Pouco depois, em 1924, Carlos Malheiro Dias é convidado por Eugénio de Castro a proferir uma conferência aos alunos da Faculdade de Letras da Uni- 6 No prefácio da obra D. Sebastião, rei de Portugal (1925), de Antero de Figueiredo (1866- 1953), a que me referirei mais adiante, o autor defende a sua concepção da história, sempre ab- erta, em que não cabem juízos fechados: “O mistério do Futuro não é maior do que o mistério do Passado. A História é o mais profundo dos silêncios”, diz à p. xiv. E mais adiante conclui: “Os pensamentos a que atrás me refiro são de dois nossos escritores contemporâneos: Oliveira Martins e Antero de Quental”, p. xv, grifo meu. Tal afirmação corrobora a força do pensamento da geração de 70 em geral e do de Oliveira Martins em particular. Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999 Filizola, A. versidade de Coimbra. Às vésperas do evento, um grupo de jovens republicanos Uma polêmica, ironiza na imprensa acerca da conferência e do conferencista. Malheiro Dias, dois prefácios, monárquico e integralista, decide não correr o risco do boicote, eventualmente um romance: do tumulto. Anula a conferência e publica o texto num livreto. Aquilino Ribeiro e D. Sebastião O leitmotiv da conferência pode resumir-se em duas palavras: patriotismo e ação. O autor dirige-se a uma geração que vai seguir-se à sua (e que é tam- bém a da Renascença Portuguesa, qualificada por ele como “atormentada”): a das convulsões do Ultimatum (1891), do regicídio (1908), da República jacobina e anticlerical (1910), da I Grande Guerra (1914-18), do consulado e assassínio de Sidónio Pais (1915-16) e da instabilidade política do regime republicano. A juventude deve agir em prol da pátria e da nação, recusando qualquer interna- cionalismo e restaurando os valores das grandes figuras da história, maxime “o rei cavaleiro e virgem”, D. Sebastião, apresentado como modelo aos jovens da nova geração. O autor inverte o significado da derrota em Alcácer Quibir e a consequente derrocada da nação, tornando-a símbolo de coragem, ação, honra: António Nobre, a quem perguntaram qual o herói da histó- ria que mais admirava, respondeu ser D. Sebastião. Todavia, emendando o poeta, um dos atuais mentores do pensamento português no-lo apresenta como um fanfarrão mentecapto. Não, mocidade! Quem tem razão não é o racionalista, mas o poeta visionário. D. Sebastião foi uma reencarnação do Portu- gal do século xv: o seu misticismo, a sua bravura, a sua pureza 60 reencarnadas. Como ele, quisera que tivésseis o ímpeto da luta, o ardor do ideal, a candura patriótica. Combater! – eis o programa e o lema, mocidade. Combater a anarquia que nos dissolve; com- bater o egoísmo que nos degrada; combater os credos malsãos que nos desnaturam. E se a vitória não coroar o vosso nobre esforço, vós a tereis preparado para a geração vindoura, e com altiva consolação de ter cumprido um dever sereis abençoa- da pela vossa descendência. Perder combatendo vale mais do que ganhar jogando. Perder com honra como aqueles moços ventureiros, reedição quinhentista da Ala dos Namorados, que compareceram no campo funesto de Alcácer, em redor do seu rei místico e virgem. (…) Perder porque a estrela propícia se eclipsou, não porque a bravura se estiolasse. Cair no sangue, não na lama! (dias, 1925, p. 51-53) A citação é longa, mas revela o propósito da ação patriótica apontada à nova geração: qual Ala dos Namorados, fazer de Alcácer Quibir uma nova Alju- barrota (1385), i.e., transformar o momento em que Malheiro Dias escreve, der- Revista Letras, Curitiba, ufpr, n. 94 p. 51-68, jun./dez. 2016. issn 2236-0999

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Este artigo aborda o romance de Aquilino Ribeiro (1885-1963) Aventura maravilhosa de D. Sebastião, rei de Portugal, depois da batalha com o
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