ANTES ,E DEPOIS DE SÓCRATES FRANCIS MACDONALD CORNFORD. Trudução VALTER LELLIS SIQUEIRA Martins Fontes (En Pm 'Ín 700 '; PREFÁCIO O estudioso de qualquer ramo dO conhecimento, ao ser convidado a expor a uma audiência popular, no es- paço de quatro horas, o sentido geral e 0 despontar de seus estudos', deverá submeter-se à disciplina implícita & essas condições. Ele sabe que o especialista desaprovzlrá algumas de suas afirmativas, qualificando—as de questio- náveis quanto ao conteúdo e de dogmáticas quanto ao tom, observando a omissão de muitas coisas para as quais não se conseguiu encontrar espaço. Mas ele fará bem em se acomodar em sua cadeira e se concentrar no panora- ma geral, tantas vezes obscurecido pelo detalhe. Pare- ceu—me claro que Sócrates deveria ser a figura central do período a mim confiado, e qUe minha tarefa seria apre- sentar 0 significado de sua conversão da filosofia do es- tudo da Natureza ao estudo da vida humana. Assim, ten- ..................... 1. As quatro palestras contidas neste livro foram proferidas como parte de um curso de. filos.(')fia grega nos Encontros de Verão organizados pelo Board of Extm-Mural Studies dc (];unbridgc, em agosto de 1952. O assunto escolhido para os Encontros foi & cc,)ntribuiçào da Grécia Amiga pura a vida moderna . 2 ANTES |«:m—zvms DE SÓCRATES tei descrever & primitivu ciência jônica para mostrar por que ela não conseguiu satisfazer Sócrates, e tratei os sis- temas de Plank) o Arismlvlcs como tentativas de transpor para & intcrpretuçáu do mundo as conseqúências da des- coberta (Ic “matos. ()htivc maior compreensão dessa descoberta no livro de M. Henri Bergson, Les deuxsozuª- ces de la mom/e cº! (10 la religion IAS duas fontes da moral e da religião], que me chegou às mãos quando eu esta- va meditando sobre estas palestras. Um pouco antes de apresentar a última da série., sou- be da morte de Goldsworthy Lowes Dickinson, () huma- nista sábio e cortês que foi meritorizunente escolhido para abrir nosso estudo sobre a contribuição da Grécia para zl vida moderna. Nenhum outro estudioso inglês demons- trou, mais pelo que ele foi do que pelos seus escritos, como, num mundo que por vezes parece ter esquecido mais do que aprendido desde a queda de Atenas, () espí- rito de Sócrates pode. voltar a se mostrar VÍVO. FMC. Agosto, 7932 Capítulo I A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE SÓCRATES Nesta série de palestras, tocou-me falar sobre todo o período criativo da filosofia grega — da ciência iônica da natureza antes de Sócrates, do próprio Sócrates e de seus principais seguidores, Platão e seu discípulo Aristóteles. Nem sequer posso tentar um simples resumo da história do pensamento ao longo de um período que cobre qua- se três séculos — o sexto, () quinto e o quarto — antes de nossa era. Vou limitar—me à tentativa de explicar por que a vida e a Obra de Sócrates marcam a crise central ou mo- mento de transformação dessa história. Vou falar dos pré- socráticos, de Sócrates e, por fim, da filosofia socrática elaborada por Platão e Aristóteles. Por que o nome de Sócrates deve ser usado para descrever a filosofia ante- rior a ele e também a que veio depois dele? Em um de seus diálogos, Platão fez o próprio Sócra- tes descrever a revolução do pensamento por ele efetua- da — como ele converteu & filosofia do estudo da nature- za externa ao estudo do homem e dos objetivos da ação humana na sociedade. No Fédon, & conversa entre Só- crates e seus amigos no dia de sua morte aborda & ques- tão de a alma ser um tipo de coisa que pode começar a 4 AN'l'l-IS r: DEPOIS DE SÓCRATES e cessar de existir. Hsm questão exige uma revisão das ex- plicações dudas quamto ao surgimento e desaparecimen- to das coisas trunsiu'n'izls. Assim, vou relembrar & essên- cia dessa famosa! passagem. Sócrates começa zll"i1'111;1ncl.() que, em sua juventude, ele se mostrava ansioso por aprender como os filósofos tinham explicado u origem do mundo e dos seres Vivos. Ele em breve abandonou esta ciência da natureza, pois não conseguia se satisfazer com as explicações ou moti- vos por ela oferecidos. Alguns filósofos, por exemplo, identificaram 21 origem da vida em um processo de fer- mentação provocado pela ação do calor e do frio. Sócra- tes achava que essas explicações não () tomavam mais esclarecido, concluindo que não possuía talento natural para inquirições desse tipo. Desse incidente, podemos inferir por que ele se mos- trou insatisfeito. Nessa primitiva ciência, supunha-se que um evento físico podia ser “explicado" quando era (por assim dizer,) decomposto em pedaços e descrito em ter- mos de outros eventos físicos que O precediam ou o com- punham. Essa explicação oferece um quadro mais deta- lhado de como esse evento ocorria; Sócrates achava que ela não dizia por que ele ocorrera. O tipo de explicação que Sócrates desejava era a da razão pelo qual algo ocorria. Sócrates, certa feita, ouviu alguém lendo em voz alta um livro de Anaxágoras, () filósofo amigo de Péricles, que dizia que o mundo havia sido ordenado por uma Inte- ligência. Isto fez sua expectativa aumentar. Uma Inteli- gência que ordenasse todás as coisas, pensou ele, com A CIÉNCIA JÓNICA ANTES DE SÓCRATES % certeza as disóoria “para o melhor”. Ele esperava consta- tar que Anaxágoras explicasse & ordem do mundo como obra de um planejamento, e não como resultado da cega necessidade mecânica. Assim, a razão dessa ordem não deveria ser localizada em um estado de coisas prévio do qual ela emergira, mas em algum fim ou propósito para o qual se pudesse demonstrar que ela servisse. Para Só- crates, razões desse tipo pareciam inteligíveis e satisfató- rias. Por que, nesse momento, ele estava sentado em sua prisão esperando pela morte? Não porque os músculos de seu corpo tivessem se contraído de uma certa manei- ra para leVá—lo até ali e o colocado sentado, mas porque sua mente havia achado melhor acatar a ordem do tribu- nal ateniense. Contudo, ao ler Anaxágoras, Sócrates des- cobriu que a ação dessa Inteligência limitara—se a dar iní- cio ao movimento no espaço; quanto ao restante, Ana- xágoras retornava às causas mecânicas do tipo habitual. Neste sistema, o mundo, afinal, não fora projetado para nenhum bom propósito. Sócrates não conseguiu fazer o que Anaxágoras havia deixado incompleto. Ele abriu mão de toda esperança num sistema inteligível da Natureza, afastando-se do estudo das coisas externas. Assim, encontramos o Sócrates pintado por Platão em conversa com Xenofonte, não sobre a Natureza, mas sobre a vida humana em sociedade, o significado do certo e do errado, os objetivos pelos quais deveríamos viver. Aqui, Platão descreveu algo com um significado mui- to mais profundo que um momento crítico da biografia de Sócrates. Não fora apenas o homem Sócrates, mas a ó ANTES E DEPOIS DE SÓCRATES própria filosofia, que se voltam, na pessoa dele, do mun- do exterior para o interior. Até aquele momento, os olhos da filosofia tinham-se voltudD para o exterior, em busca de uma explicação razoável do espetáculo mutante da Natureza que nos rodeia. Agora, sua Visão dirigia-se para outro campo — a ordem dos objetivos da vida humana - e, no centro desse campo, para íl natureza da alma indi- vidual. A filosofia pré-socráticzl começa (como vou ten- tar mostrar) com a descoberta da Natureza; a. filosofia socºática começa com a descoberta da alma humana. A Vida de Sócrates encontrou seu devido lema na inscrição délficu “Conhece—te a ti mesmo". Por que teria () homem, exatamente nessa época e nesse lugar, desco- berto em si mesmo um problemzl de uma importância mais premente que ai compreensão da Natureza externa 21 ele? Podelfíumos esperar que a filosofia começasse em casa, com a compreensão de que a própria alma huma- na e () significado da vida humana representam mais para o homem que a história natural das coisas inanima- dus-. Por que () homem estudou a Natureza em primeiro lugar, tendo—sc esquecido da necessidade de conhecer a si mesmo até Sócrates. proclamar que essa necessidade em sua principal preocupação? Para descobrir uma res- posta pam esta pergunta, devemos agora examinar os inícios da ciência iônica da Natureza, seu caráter e como ela surgiu. Esta Ciência é chamada “iônica” porqueteve início com Tales e seus sucessores em Mileto,'umz1 das colônias jônicz s da costa da Asia Menor. Tales Viveu no começo do A CIÉNCIA _]ÓNICA ANTES Dl-z sCuzMTus 7 século VI. O desenvolvimento da ciência jôniczl teve Seu ápice dois séculos depois, com () atomismo de Demócrito, um contemporâneo de Sócrates e Platão. Todas as histórias da filosofia grega, da época de Aris- tóteles até hoje, começam com Tales de Mileto. É geral- mente aceito que, com ele, algo novo, aquilo que Cha- mamos de ciência ocidental, apareceu no mundo — a ciência como (: correntmente definida: a busca do conhe- cimento pelo conhecimento, e não por qualquer uso prático & que ele se preste. A0 viajar pelo Oriente, Tales descobriu 'que os egípcios possuíam algumas regras tos- cas para a medição da terra. Todos os anos a inundação do Nilo apagam os marcos divisórios, (: as terras dos cum- poneses tinham que ser demarcadas novamente. Os egíp- cios possuíam um método para calcular áreas retangula- res, podendo assim resolver seus problenms prátium. O grego inquiridor não estava interessado na demarcação dos campos. Ele percebeu que O método podia ser trans- I'crido desse propósito particular (: generalizado em um método para se czllculzlrem árªas de qualquer formato. Assim, as regras de medida da terra foram transformadas na ciência da geometria. O problema — algo a ser resolvi- (|<)— cedeu lugar 210 teorema — algo a ser contemplado. A razão teve um novo deslumbramento ao constatar que ns ângulos da base de um triângulo isósceles são sem- prc iguais* e por que eles devem ser iguais. O topógrafo ainda faz uso desta verdade ao elaborar seus mapas; o filc'mofo limita-se & comprazer-se com ela por se tratar de um;! verdade. Da mesma forma, os gregos transformaram & arte da emirologiu na ciência“ da astronomia. Durante muitos sé- 8 ANTES E DEPOIS DE só (IRATI) s culos, os sacerdotes da Babilônia haviam registrado os movimentos dos planetas para prever os eventos huma- -nos, que, segundo sua crença, emm ('()numdados pelos corpos celestes Os gregos tomaram emprestado os re- sultados dessas ()hserzv lgoes «: "]llCS previu um eclipse oconido na Ásia Meno: em 585 :!.(J. MIS eles ignolaram todo o contexto da supersliguo ustmlogicu que, até en- tão, propiciam () motivo prático para a observação dos Céus. Praticamente não existem traços de astrologia no pensamento grego antes da fusão entre Ocidente e Orien- te que se seguiu às conquistas de Alexandre. Assim, o surgimento da ciência. significou que & inte- ligência tornam—se desinteressada e agora se sentia livre para viajar pelos mares do pensamento estranhos às men- tes voltadas para os pa,)blemas imediatos da ação. A ra- zão buscou e descobriu uma verdade que era universal, mas que podia, ou não, ser útil para as exigências da Vi- dzt. Voltando cerca de 2.500 anos no tempo, encontra- mos as cosmogonias da Escola de Mileto COmo & aurora ou infância da ciência. Aqui começam as histórias da fi- losofia, depois de algumas observações sobre o período anterior da mitologia e da superstição. Mas, para o nosso Objetivo de apreciar a revolução socrática do pensamen- to, será útil examinarmos este ponto de partida da filo- sofia de. outro ângulo — () ângulo mais afastado. Se pu- déssemos examinar todo o desenvolvimento da humani- dade, estes últimos vinte e cinco séculos, de Tales aos nossos dias, surgiriam numa proporção e numa perspec- tiva diferentes. Veríamos, então, a filosofia como & últi- ma das grandes realizações do homem. A especulação A CIÉNCIA _IÓNICA ANTES DE SÓCRA'I'RS 9 pré-socrática já não nos pareceria rudimentar e pueríl, mas () coroamento de um desenvolvimento que cobre muito mais épocas do que a história possa registrar. Já me referi & esta época como a descoberta da Na- tureza — uma expressão que exige uma explicação. Com ela refiro-me à descoberta de que todo o mundo que nos cerca, e cujo conhecimento nossos sentidos nos for- necem, & natural, e não em parte natural e em parte so- brenatural. A ciência tem início quando se compreende que o universo é um “todo natural, com comportamentos imutáveis e próprios — comportamentos que podem ser determinados pela razão humana, mas que estão além do controle da ação humana. Chegar a esse ponto de Vista foi uma grande conquista. Se quisermos avaliar sua magnitude, deveremos examinar certas características da época pré-Científica. Ou seja: 1) o distanciamento do ser com relação ao Objeto externo — a descoberta do objeto; 2) a preocupação da inteligência com as necessidades práticas de ação ao lidar com o objeto; 5) a crença nos poderes invisíveis, sobrenaturais, por trás do objeto com que se tem que lidar, ou dentro dele. 1) Quanto ao primeiro ponto — o distanciamento do ser com relação ao objeto externo — se for verdade que o indivíduo é uma recapitulação em miniatura da histó- ria da raça humana, aqui estaremos preocupados com algo que remonta ao início do desenvolvimento huma- no. Só nas primeiras semanas de Vida o bebê humano é um solipsista, aceitando sem questionar que seu meio ambiente é parte integrante dele. Esta filosofia infantil é logo perturbada pela dúvida. Algo está errado: a comida
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